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Antônio Houaiss


Fotuna crítica: Sérgio Paulo Rouanet

Jornal do Brasil
Sábado, 29 de maio de 1999


Uma dedicatória
 

Num mundo em que as notícias envelhecem tão depressa, teria ainda cabimento um artigo sobre Antônio Houaiss, mais de dois meses depois de sua morte? Além disso, que poderia eu dizer de novo depois da excelente cobertura feita pelo JB, com a participação de Ernesto Soto e Marcos de Castro, e dos belos artigos de Tarcisio Padilha, Arnaldo Niskier e José Mario Pereira?

Pensando bem, achei que um artigo como este era oportuno, sim, por duas razões. Primeiro, a morte de um amigo não é um fato jornalístico, que exija uma reação imediata, e sim um acontecimento existencial, que mobiliza camadas muito profundas de nossa personalidade, e que precisa ser processado longamente, na solidão, no sofrimento, até que se complete o que Freud chamava a Trauerarbeit, o trabalho do luto, transformando vivências subjetivas em conteúdos comunicáveis. Segundo, quase todos os necrológios trataram da persona pública de Houaiss, como intelectual e homem de ação, ao passo que neste momento, depois de uma perda familiar dolorosa, ocorrida uma semana depois da morte de Houaiss, sinto-me incapaz de outra coisa que não seja um depoimento pessoal, exprimindo emoções, e não idéias.

Não é que eu não tivesse tentado o caminho das idéias. Quando soube por um telefonema de Tarcisio Padilha que Houaiss tinha falecido, fui remexer em minha biblioteca, na esperança confusa de reencontrar meu amigo entre os livros que ele tinha escrito. Mas não tirei da prateleira nem O português no Brasil nem A crise de nossa língua de cultura. Deixei em seus lugares todos os volumes da Grande Enciclopédia Delta Larousse e da Enciclopédia Mirador Internacional. Não toquei sequer na Magia da cozinha brasileira, um dos livros prediletos daquele grande cerebral, que era ao mesmo tempo um delicado epicurista. Não, meu inconsciente (ou o espírito de Houaiss atuando através do meu inconsciente) escolheu a coletânea organizada por Vasco Mariz, Antônio Houaiss: uma vida, sem que eu soubesse bem a razão. Só descobri quando me dei conta de que o livro continha uma dedicatória de Antônio. Escrita numa letra tremida, a dedicatória continha poucas palavras legíveis, mas entre elas estava a palavra "amizade." Não há dúvida: era a maneira que Houaiss tinha encontrado para se despedir do amigo que ficava.

De reminiscência em reminiscência, a dedicatória me levou até o remoto ano de 1961, em Nova Iorque, quando conheci Houaiss. Eu era um jovem terceiro-secretário e ele um Conselheiro já respeitadíssimo. Ele representava o Brasil na 4ª Comissão da Assembléia-Geral, e foi um dos responsáveis por um dos instrumentos internacionais mais decisivos das Nações Unidas, a Declaração de Outorga de Independência a Países e Povos Coloniais.

Graças a seu amplo círculo de relações, conheci muitos nomes importantes da inteligência brasileira. Um deles foi Gilberto Amado, que ia todos os anos à Assembléia-Geral. Uma vez Gilberto decidiu jantar com o casal Houaiss. Antônio e Ruth ficaram aterrados, porque não tinham lido as memórias do escritor, das quais já tinham saído os dois primeiros volumes, e sabiam que esse delito os exporia à cólera olímpica do mais irritável dos memorialistas brasileiros. Ruth deu a solução: cada um passaria a noite lendo um volume, e no dia seguinte diriam que tinham lido a obra inteira. O ardil deve ter dado certo, porque o terrível autor da Chave de Salomão não assassinou nenhum dos dois.

Houaiss foi meu verdadeiro mentor intelectual. Nas horas vagas, ficávamos passeando em Manhattan, visitando livrarias e trocando idéias. Nessas trocas, suspeito um pouco que Houaiss tenha saído perdendo. Minha cultura política era vacilante. Meu socialismo tinha mais a ver com Sartre que com Marx. Sobre o marxismo, eu dizia barbaridades que sujeitavam a uma dura prova a paciência do meu amigo. Quando eu disse a Antônio que achava os Manuscritos econômico-filosóficos, do jovem Marx, mais importantes que O Capital, ele foi acometido pela ira dos justos e chamou-me de revisionista. A verdade é que na ocasião o existencialismo me interessava mais que a política. Uma vez mostrei a Houaiss, orgulhosamente, um ensaio que eu tinha escrito sobre Kierkegaard e Heidegger, cheio de palavras como angústia, desespero, ser-para-a-morte, estar-jogado-no-mundo, e outras expressões eriçadas de hífens. Houaiss me deixou arrasado dizendo que achava tudo aquilo muito mórbido, e aconselhou-me leituras mais sadias. No fundo, ele estava me acusando de infantilidade, e tinha toda razão.

Veio o golpe militar. Houaiss foi removido para o Brasil, onde foi submetido a um inquérito. Ele sabia estar condenado de antemão, mas mesmo assim escreveu uma primorosa defesa, que na verdade era um J’accuse. Pela segunda vez, foi afastado do Itamaraty.

Os acasos de minha carreira nos separaram fisicamente, mas não afetivamente. Quando ia ao Rio almoçávamos juntos, quase sempre no Albamar. Retomávamos a conversa no ponto em que a tínhamos deixado, meses antes. Antônio, você já leu o Cru et le cuit, de Lévi-Strauss? E que é que você acha de Lacan? E você, Rouanet, qual sua opinião sobre a Glasnost? E a abertura política no Brasil? Mas coma, homem, em vez de falar tanto. E não beba assim, sem degustar direito, essa garrafa de vinho Boticelli. Pode não ser um Châblis, mas não é mau, se você levar em conta que se origina de uma uva cultivada à margem do rio São Francisco, numa região semi-árida.

No meio tempo, Houaiss produzia enciclopédias, fazia conferências, escrevia prefácios, promovia acordos ortográficos. Foi um dos primeiros a saberem de minha decisão de aceitar o convite para o cargo de Secretário Nacional da Cultura, na tentativa de salvar a cultura brasileira desmantelada. Encorajou-me a entrar na Academia e foi quem me recebeu, na cerimônia de posse. Ministro, manteve comigo a mesma relação fraterna de sempre. Ficamos amigos até a morte. E creio que até depois da morte, a dar crédito às coisas misteriosas que seu espírito me segredou, naquele dia 7 de março de 1999, quando eu tentava decifrar sua dedicatória.
 

 

 

John William Godward (British, 1861-1922),  A Classical Beauty

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Nelly Novaes Coelho