Salomão Souza
Recorte sobre a Poesia Brasileira
Contemporânea
Em todo momento de ruptura histórica,
sobretudo quando se manifestam a crise e a descrença num setor da
arte, são muitos os temas a ofertarem seu rosto à abordagem crítica.
Neste instante, mereceria debate a especificidade jurídica do ato
literário. Qual o momento em que um escritor deve ser levado ao
tribunal e daí à solitária em razão de sua atuação? Num possível
código penal das letras, quantos anos de prisão atribuir a cada
crime cometido pelos autores?
Sempre entendi a idéia da arte como
campo de liberdade, onde não cabe o trânsito da condenação jurídica
e da conseqüente ação punitiva. Sempre considerei que a atuação do
homem de letras merece apenas admoestação crítica caso os resultados
de sua obra sejam criminosos. E o único crime do artista é a
mediocridade, que basta ser punido pelo esquecimento e pelo limbo.
Portanto, na avaliação das tendências da poesia brasileira atual,
não pretendo emitir sentenças, condenando esta ou aquela prática do
verso, ou este ou aquele autor. E reconheço que as minhas forças são
insuficientes para desimpedir os leitos em que os poetas se debatem
para desagüar o destino de seus versos. Estou incapacitado até para
condenar com o esquecimento, já que em mim ainda atua alguma
memória. Às vezes sou obrigado a praticar alguma esquivança, pois é
impossível escapar da ronda de alguma mediocridade que busca
grudar-se em nós de forma punitiva.
Há anos, desde que identifiquei a
atração dos escritores pelo vazio como tema de seus textos,
instiga-me o chamado para a abordagem dos rumos da poesia brasileira
que se seguiu ao movimento Marginal. Tão marginal que foi um
afluente, já que não alterou significativamente o curso do rio da
história da poesia brasileira, e vai perdendo a capacidade de
influir nos autores que estão vindo a seguir. Assim, atrai-me na
atual poesia de pós-vanguarda essa liberdade de não querer nada —
nem engajamento, nem bordado de um texto estruturado numa forma
definida, nem a estrutura sólida dos objetos da natureza e da
cultura. Atrai-me e me preocupa.
E, dentro desse curso maior, onde se
destacam com melhor clareza uns três autores deitados em berço
esplêndido (Manoel de Barros, Adélia Prado, talvez Ferreira Gullar,
já que perdemos Carlos Drummond e João Cabral), impossível
desconhecer o corolário de nomes que determina seu curso pessoal,
sem que consiga contribuir com sua água para fertilizar solos mais
distantes que a ambiência de sua ação. Mesmo que estes nomes sejam
renegados com hostilidade crítica, e não alcancem expressividade em
vendagem, os poetas que integram este corolário não deixam de
existir e de dominar e de impor algumas normas que acabam sendo
absorvidas até pelos seus detratores.
Enfim, nas atividades política e
artística, aqueles com visões divergentes precisam fechar acordos
para alcançar resultados de interesse comum.
Temos de convir, no entanto — sendo
que esta problemática já sugere necessidade de outro debate —, que
diversos fatores, no Brasil, impedem o aumento da radiação dos
escritores. A televisão passou a ocupar na imprensa o espaço antes
destinado à Literatura; os próprios agentes culturais, além de
viverem em conflito, não se entendem para desbloqueio das
resistências à divulgação da expressão literária.
Neste momento, independente do espaço
que cada um tem ou deixa de ter, ou de quem é detrator ou detratado,
impossível continuar virando as costas para algumas situações que
acontecem dentro do panorama da atual poesia brasileira.
Principalmente a programada miopia de não querer olhar detidamente
as suas tendências, criando barreiras que impedem a visão global do
assunto. Só que, em literatura, também caímos na excrescência do
fundamentalismo — pois cada um julga que só existe a sua razão
pessoal, só a verdade de sua igrejinha, com desnecessidade total de
aceitação daqueles que também buscam deitar as suas verdades em bons
leitos para escoamento desimpedido.
Cinco nomes, na realidade cinco
livros, foram escolhidos para abonação do tema. Apenas Teia (2002),
de Cristina Bastos, é de autor de Brasília. Poderia escolher outros
autores da cidade, mas ela é a poeta brasiliense (ou candanga, para
quem prefere o termo, como é o nosso caso, que conseguimos sugerir a
sua abonação na Enciclopédia da literatura brasileira, de Afrânio
Coutinho), portanto, Cristina Bastos é, dentre os poetas candangos,
a que mais adensa aspectos da poesia de pós-vanguarda, que serão
objeto da abordagem aqui proposta. O mineiro Iacyr Anderson Freitas
é aquela descoberta que se tornou predileção. Já é um amigo dileto,
mas deixo claro que o reconhecimento de sua obra se deu num contexto
de total desligamento do afeto de nossa amizade. Escolhi seu último
livro — A soleira e o século (2002), que recolhe seis títulos
produzidos entre 94 e 97, divergindo dos livros anteriores pelo
aumento da carga lírica. Depois vieram três escolhas aleatórias:
Duplo cego (1977), de Armando Freitas Filho, que também reúne poemas
escritos entre 94 e 97; Margem de uma onda (1977), de Duda Machado;
e Corola (2000), de Cláudia Roquette-Pinto.
No início, tinha escolhido A regra
secreta (2002), de Sebastião Uchoa Leite, pois, recentemente,
recebeu abordagem desfavorável em jornal do sul do País, e, em
contrapartida, grupo de escritores de sua relação revidou com amplo
abaixo-assinado de desagravo. Mas, após melhor avaliação, reconheci
que o autor começou suas atividades literárias muito antes do
período aqui delimitado. Seu primeiro livro, Dez sonetos sem
matéria, é de 1960. Julguei que, pela data de sua publicação,
deveria ser descartado; mas o seu título motivou ainda mais a
inclusão do autor, já que, na realidade, a poesia de pós-vanguarda
teria nascedouro na sua proposta. Pois, além de vir após Jorge de
Lima, a indicação de ausência de matéria em seu conteúdo apareceria
como o vazio de realidade que os poetas de pós-vanguarda
transformariam no motor central de suas produções. Assim, Sebastião
Uchoa Leite fica sendo um sexto autor nesta abordagem, já que, em
debate literário, é impossível escapar da inclusão de mais um.
Se existe objeto, cisco na poesia
brasileira, é porque não existe palavra sem objeto que possa nomear,
que não traga significado nela mesma. É por isso que não existe
ruptura total em literatura, já que ela, além de dar, tem de
aumentar o significado. E, no instante de nomear, tudo já está
conhecido, tudo já está definido com leis próprias. Só existiria
total ruptura se existisse o mundo sem palavras, que devesse ser
nomeado. Mas a grandiosidade de uma obra reside na possibilidade de
criar sugestões novas num mundo já vivenciado.
No andamento do estudo do assunto,
constatamos que muitos poetas integrados à pós-vanguarda publicaram
seus primeiros livros ao término da Geração de 45 ou então em
paralelo ao Concretismo, quase se confundindo com esse movimento.
Armando Freitas Filho começou a publicar também em 1966, e, conforme
declarações suas, chegou a copiar à mão o livro A luta corporal
(1954), de Ferreira Gullar. Duda Machado publicou o primeiro livro
em 1977, com um título extraordinário — Zil, título que traduz bem a
agressividade, a densidade, a sonoridade, e a ausência de um
significado explícito. Estas seriam as características que a poesia
iria assumir nos anos seguintes.
Zil. Brasil. Fuzil. Busilis. O bater
na pedra. E oh zil. Este zil que é tudo e nada na poesia bra- sil
-eira contemporânea. Esse reducionismo, quase ausência de tudo. Zil.
Só a indicação, a sugestão. Só a sonoridade a se intercalar no
cotidiano.
Ao apresentar A um (1997), de Robert
Creeley, Michael Palmer aponta que interioridade, lacunas e
hesitações são as características dessa nova poesia de medidas
freqüentemente fraturadas. Robert Creeley, que manteve contato
pessoal e de influência na pós-vanguarda brasileira, demonstra essas
tendências de condensação, cortes e sugestões, de que nada está na
frente, explícito no poema, basta ver uma estrofe do livro citado:
Eu a vi/e atrás havia/flores, e atrás delas/nada. O oco, o vazio.
Assim, dá para ver o emaranhamento de
leitos em que escorre a poesia brasileira após a publicação, em
1952, de Invenção de orfeu, de Jorge de Lima. É certo que João
Cabral publicara Cão sem plumas em 1950, mas suas obras definitivas
só sairiam em 1956 (Morte e vida severina e outros, em reunião da
Ed. José Olympio). Ao escrever a orelha de Margem de uma onda, de
Duda Machado, Luiz Costa Lima reconhece a existência de uma nova
fundação da poesia brasileira após João Cabral e os concretos, que
trata de poetizar um mundo em cacos e em que o eu não mais ocupa a
figura de centro, portanto de esvaecimento do lirismo. Não cita
Jorge de Lima, pois este poeta ainda intimida a crítica brasileira,
e muitos que bebem dele escondem a taça a seguir. Jorge de Lima —
reconheçamos — fundou a possibilidade de aproximação de palavras, de
semas, letras, para que a sonoridade e as metáforas raríssimas
sobrepujassem em encantamento o tema.
Este instante de pós-vanguardas é
qualificado de diversas formas. Alguns preferem passar à margem. É o
caso de Lêdo Ivo ao apresentar o livro de Iacyr Anderson Freitas,
que o situa na contemporaneidade sem nome e sem rótulo — navio que
se liberta das amarras e ganha o mar largo. Ao montar antologia
sobre o período, Frederico Barbosa diz que há uma poesia de
invenção; Armando Freitas Filho, ao dar depoimento à Fundação
Memorial da América Latina, diz que há uma poesia construtiva. Tanto
não poderia ser construtiva já que o próprio significado do livro de
Armando Freitas Filho — Duplo cego — decorre do desconhecimento do
resultado da aplicação de uma droga, portanto um processo alquímico.
Assim, as duas denominações anteriores se revestem de equívoco, pois
não há invenção onde predomina a instantaneidade; e muito menos há
construção quando se busca a desconstrução da forma e do conteúdo.
Talvez até a negatividade do conteúdo chegue à abjuração, já que o
poeta não tem lugar no mundo e sequer deseja encontrar algo
estabelecido com os mesmos parâmetros da realidade.
Se se trabalha no escuro, na tentativa
de obter resultados claros, seria, então, o poeta pós-vanguardista
praticante de uma “poesia alquímica”?
Retomando afirmação anterior,
poderíamos dizer que o paralelismo ao Concretismo demonstra que há
uma fundição de idéias com aquele movimento, só que numa nova
corrente. O próprio título do livro de Sebastião Uchoa Leite — Dez
sonetos sem matéria —, quase descartado para ilustração deste
trabalho, sinaliza essa fruição. Levava a poesia por um leito fora
do concretismo, pois se agarrava à palavra, mas desgarrava-se do
conteúdo. Podemos, então, deixar como ponto de partida da poesia
atual esta sinalização de Sebastião Uchoa Leite. Os poetas não
queriam mais um puro concretismo, mas também descartavam o conteúdo.
As palavras teriam de agir em novos cortes da realidade, em que elas
não se apresentassem de corpo inteiro; as frases deveriam ser
inconclusas ou se limitassem a pequenas indicações, e até a memória
se manifestasse só em recortes.
O ápice desta situação iria
transparecer na orelha do livro de Armando Freitas Filho, Duplo
cego, pois, na impossibilidade de dizer ou na escolha deliberada de
não querer dizer ou de se camuflar, traz na orelha um texto em
latim. E, se não é para dizer nada, o texto sequer traz autoria. E a
tendência de questionar a autoria irá transparecer em outros livros
aqui analisados.
Num poema de três fragmentos, já que a
poesia de pós-vanguarda guarda as palavras e os poemas uns dentro
das lavras uns dos outros, Cristina Bastos chega a ficar em dúvida
de quando surge realmente o poema, pois indaga: quando assino? Não
há como fugir da autoria, que insiste em escapar diante da
instantaneidade da construção, da falta de presença do eu na
contextualização da realidade. Só podemos assinar quando marcamos a
nossa presença, quando conhecemos a realidade, quando assumimos as
nossas obras, a nossa autoria. Quando não assinamos a nossa presença
no mundo, caímos na ruptura da personalidade, no abismo do
desconhecimento do eu. E, num poema de resgate lírico, pois a
pós-vanguarda não esconde totalmente o autor, que pode estar na
frente ou atrás da ação ou do vazio do poema, Cristina Bastos
assume, num poema que qualquer um assinaria em baixo, que: poetar/é
gosto/e vício, mas quando nada há/digo o vazio/e findo. E Cristina
fala por todos os autores de sua geração: somos mestres/em preencher
vazios.
Então, o verdadeiro poeta será sempre
um pioneiro, que encontra a vastidão, o vazio, e vai preenchendo com
o giz de suas borboletas, como diz um verso de Iacyr Anderson
Freitas.
A seguir, o poema “Fonte”, em que
Cristina Bastos mostra toda a densidade desta “poesia alquímica” da
geração de pós-vanguarda. Concisão, precisão, economia de palavras;
uma única vogal, o “i”, sugerindo o fluir; a expressão “a tira” traz
uma polissemia incontida, podendo significar pedaço longo e fino em
si mesmo, algo que se atira num destino, e um significado literal de
algo que não se perde.
O dia
de uma fonte
é jorro
nada
a tira
de si
Há toda uma metalinguagem do poeta em
se comparar a uma fonte. Há um silêncio em jorrar, um infinito
esvaziar-se sem se esgotar. Ora direis ouvir estrelas, saberiam os
poetas de outros movimentos nomear o mundo e ao mesmo tempo
participar de seu silêncio e vazio?
Em Cláudia Roquette-Pinto retorna a
dúvida quanto ao momento de o poeta assinar a sua presença no mundo,
pois há essa vertigem ciclotímica de anular-se. Aqui há um eu se
esvaindo para o mínimo, o lírico em agonia. No primeiro poema, há
uma descida a um ponto cego, registre-se a consonância com o livro
de Armando Freitas Filho, e o eu feminino do poema segura apenas por
um fio, frágil e físsil,/ínfimo ao infinito,/mínimo onde o
superlativo esbarra/e é tudo de que disponho/até dispensar o sonho
de um chão provável/até que meus pés se cravem/no rosto desta última
flor. O mundo vai se esgotando, talvez por não ser mais matéria de
poesia, sobrando uma flor que não é algo que seja palpável ou
passível de ordenamento mítico. O poeta-fonte quase fica sem solo
por onde se jorrar.
A seguir, um poema de Cláudia
Roquette-Pinto, que mostra a tendência da pós-vanguarda de não
nomear os poemas, pois, se os poetas do período diminuem a presença
da nomeação do mundo para aumento da polissemia, o poema é o
primeiro a se isolar numa incógnita. Numa metalinguagem explícita, o
poema de Cláudia Roquette-Pinto indica outras características do
período: abandono do ritmo, mudança de logradouro ou mundo para
nomear algo novo, as palavras não dominam mais o autor, não o
buleversam, muito pelo contrário, é o poeta que tem de dominar a
palavra, extrair tudo dela, mesmo que tenha de amputá-la, como vimos
em Duda Machado e veremos em Armando Freitas Filho.
O torneado hábil das palavras
o dissonante vão das consoantes
não podem mais — nem por um instante —
buleversar o meu pequeno alento.
E já nem tento, ainda que fugaz
fosse o prazer no momento do encontro
satisfazer com tais materiais
minha volúpia pelo contratempo.
Abandonar o ritmo, eis tudo:
mudar de logradouro — ou de logro —
que isso de escrever é jogo
perdido de antemão, no mano a mano.
Mas sem ressentimentos: o mais são nuvens,
e todos os poemas um engano.
Logo no primeiro poema, Duda Machado
lembra que os objetos estão desconectados, imersos/na mais compacta
exterioridade//já não se atingem/em seus próprios domínios//no mútuo
desgarre/desterra as partes/que parem o mundo. Assinala que a
realidade não se desgarra, mas não é a argamassa que adensa o poema.
Basta ver um poema central do livro, onde o tempo independe da
realidade dos objetos: é só depois/do que foi/um porque/foi
como/foi. E por aí segue depois. O autor reconhece o pacto/com o
silêncio. O poema tem de ser curto para predomínio do vazio e do
silêncio.
De Duda Machado, escolhemos o poema
“Poética do Desastre”, que traz a metalinguagem explícita do autor.
Mostra a predileção da pós-vanguarda pelos detalhes, pelos cortes da
realidade, mesmo que eles não tenham nenhum vínculo, moldam-se
através da desagregação. O poeta da pós-vanguarda, assim como os
detalhes moldados pela desagregação, resiste em sua clausura.
Cada detalhe se emancipa; entre
eles vínculo nenhum subsiste,
nem sua disparidade implica
qualquer combinação imprevista.
Moldados pela desagregação,
apegam-se ao enclausuramento
que os faz resistir.
Contra-organizam o desastre:
são sua composição.
Em Armando Freitas Filho, encontra-se
o poeta pós-vanguarda que se atira em vários recortes, onde a
palavra também tem dificuldade em nomear a realidade. Logo no
terceiro poema do livro escolhido, confessa que não posso escrever,
pois estão as idéias com falta de lago. Mas continua vivendo, pois o
poema conclui mostrando o rosto lírico: respiro. Será prova de que o
poeta estará sempre vivo, mesmo que esteja esfacelado diante da
arrebentação? Assim como no título do primeiro livro de Duda Machado
— “Zil” —, no poema “Algo”, Armando Freitas Filho também recorta a
palavra para impedir de dizer demais e ainda assim dizer mais. Algo
nomeia tudo num mundo em que todos desaprenderam o nome dos
compostos da natureza. Para aquilo que não há nomeação, lasca-lhe
algo. Aqui as consoantes “l”, “m” e “n”, além da óbvia sonoridade,
estabelece a concretude, a espacialidade e a textualização do poema.
“Algo”, a seguir:
Algo além. Ultrapassa a alma
o algarismo. É princeps e último.
E se precipita, implícito, sem halo
nódulo, ninguém, inominado
mas com brio, brilho de nebulosa
ânimo anônimo, não-numerado
posto que inumerável, no entanto
único, a irradiar-se do núcleo
somente no encalço do seu eco:
anel de agonia e glória, al
Finalmente, Iacyr Anderson Freitas.
Esse não se desvencilhou do lirismo, mas também não chega a ser um
Ruy Espinheira Filho ou um Alexei Bueno, que insistem em viver à
margem de um mundo pós-vanguarda, quase aferrados num fogo morto da
Geração de 45. Há que manter a tradição sem, no entanto, ser
fundamentalista, pois a arte é desvirtuar a tradição, sem
descartá-la. E Iacyr desvirtua a tradição lírica, beirando a poesia
do vazio, pois não se reconhece nesse novo universo. A meu lado, sem
palavra,/urge um ouro derruído. Iacyr Anderson Freitas é ouro que
emerge da derruição. Então, é uma vasta procura e uma vasta dúvida.
E, também, quem disse que a literatura é para oferecer o universo
das certezas? Mas é Iacyr que insiste em descortinar este universo,
em fazer uma chamada para o entendimento do mundo. Se não é uma
metalinguagem, pelo menos ela não pode ser descartada. Estamos cegos
para o mundo.//Não podemos ouvir/as árvores crescendo, a
tempestade/que move o coração/de uma formiga, o telegrama/impresso
nas nuvens. Há um milenarismo de dúvidas, não sabemos o que
fazer/por isso não fazemos nada. E o universo da poesia vai se
erigindo com os materiais da dúvida.
Para terminar este preenchimento de um
vazio, que qualquer outro poderia ocupar com seu nada, encerro com o
poema “Agenda do Professor de Filosofia”, em que Iacyr Anderson
Freitas aponta a impossibilidade de o homem e o poema serem livres,
pois tudo acaba em som e fábula no universo da Poesia, mesmo num
universo de total desgarramento do pós-vanguardismo:
Agenda livre
amanhã de manhã?
Mas livre como?
Livre onde? Livre
em que sentido?
Talvez esse avesso
de coisa, jamais vista,
jamais tocada,
esse sentido serve?
Tamanha pergunta
pega a gente de joelhos.
E a palavra remoendo
o osso, o sexo, os cabelos.
Palavra sem sabor,
de corpo médio assim,
corte médio assim, feitio
mediano assim, nem alegre
nem triste.
Palavra apenas som e fábula
: livre é coisa que não existe.
k k k k k k k k
Bibliografia:
1. BASTOS, Cristina. Teia. São Paulo: Varanda/Massao Ono Editor
(2002)
2. CREELEY, Robert. A um. São Paulo: Ateliê Editorial (1997)
3. FREITAS, Iacyr Anderson. A soleira e o século. São Paulo: Editora
Nankin/Edições FUNALFA (2002).
4. FREITAS FILHO, Armando. Duplo cego. Rio de Janeiro: Editora Nova
Fronteira (1997).
5. LEITE, Sebastião Uchoa. A regra secreta. São Paulo: Editora Landy
(2002).
6. MACHADO, Duda. Margem de uma onda. São Paulo: Editora 34 (1997).
7. ROQUETTE-PINTO, Cláudia. Corola. São Paulo: Ateliê Editorial
(2000).
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