Gilberto Mendonça Teles
Para o estudo de Lorca no Brasil
Creio oportunas
duas pequenas digressões iniciais, sugeridas pela própria natureza
deste artigo: uma ligeira incursão pela teoria comparatista; e
algumas observações sobre este tipo de estudo no Brasil.
O estudo da
literatura comparada no Brasil, como de resto em toda parte, não tem
conseguido libertar-se da metodologia herdada do positivismo em que
se criaram ou se consolidaram as ciênciais sociais. Os principais
"gêneros" da Poética (crítica, ensaio, teoria, história literária,
literatura comparada e os vários tipos de exegese textual), ainda
que não possuam — alguns deles — a sua tradição estética ou
filosófica, obtiveram o seu reconhecimento a partir do fim do século
passado, no auge do evolucionismo. Aí se fundou o comparatismo
literário, o qual, como tudo ligado à velha história literária,
permaneceu aferrado às técnicas tradicionais, principalmente no que
diz respeito aos processos de comparação.
Isto explica o
sucesso e a permanência (e também a crise) da fórmula "x e y", de
que fala Pierre Brunel, em que o ponto de vista especulativo, sempre
unilateral, sempre cronológico e descritivo, vai, inevitavelmente,
de um receptor para uma fonte emissora. Por trás, como dado
absoluto, a visão eurocentrista, dominadora. Tudo se passa, ou se
passava, como se na literatura não houvesse imaginário, como se não
houvesse desejo de originalidade e como se a "influência" só se
desse a partir da Europa, isto é, de Paris. E mesmo que a fórmula
evoluísse para "x versus y", com ênfase na tensão entre comparante e
comparado, a natureza da comparação era, no fundo, a mesma: de uma
literatura, de um movimento, de uma obra, de uma imagem da
literatura européia para, digamos, um movimento, uma obra ou uma
imagem da literatura latino-americana.
Na verdade, "x e
y" ou "x versus y" devem ser vistos hoje como níveis de um processo
mais vasto de comparação, em que as noções de contexto e de
intertextualidade põem em movimento uma complexidade de relações que
exigem do estudioso não somente o conhecimento dos dois objetos
comparados (seus contextos, suas ideologias e suas tendências
transformadoras), mas também a consciência da multiplicidade das
"fontes", além, é claro, de uma abertura para as inúmeras
possibilidades de análises postas em cena pelas correntes da crítica
contemporânea e que, a bem dizer, acabaram confundindo o aluno e
quantos se iniciavam nos estudos literários. A idéia tradicional do
senso comum desapareceu das universidades brasileiras, onde cada
professor de teoria literária se esforçava por exibir "o último
tango de Paris".
A noção de
"discurso paralelo", que desenvolvemos em a Retórica do Silêncio —
I, de 1979 (e que aparece ou reaparece com o nome de "parataxe" em
Palimpsestes, 1981, de Gérard Genette), rompe com o sentido
unilateral (de A para A¹ ou de A para B), põe o comparatista nos
"limites da intertextualidade", leva-o para além do princípio
visível das semelhanças e mostra-lhe, sob a forma das diferenças, o
lado "invisível", a dimensão paradigmática dos textos comparados.
* *
Num dos texto de
suas Poesías Juveniles, escrita entre 1917 e 1919, García Lorca fala
de seu "bosque negro y centenario" e pede aos meninos e adolescentes
da época que guardem "el corazón muy bien del Tiempo" e do
desengano. Possivelmente estaria se referindo aos "Niños
buenos" de sua Fuentevaqueros, de Granada ou de toda a Andalucía,
por onde deve ter andado na sua infância e adolescência. Mas a
referência, numa universalização que tem muito a ver com os
horizontes de expectações em que se move a sua obra, poderia ser
também estendida aos "niños" poetas da Espanha, da Argentina, do
Uruguai, do Chile e de Nova Yorque, países e cidades onde conquistou
a admiração de quem o conheceu, expressando ao vivo a nova força
poética da literatura espanhola. Já se disse que a sua popularidade
causou inveja aos seus "amigos" de Espanha, que o "deduraram",
durante a guerra civil. O termo foi inventado pelos brasileiros para
indicar os que apontavam (denunciavam) os seus inimigos ao Serviço
Nacional de Informação (SIN), na revolução militar de 1964.
Na época em que
García Lorca escrevia os poemas mencionados, havia no Brasil toda
uma plêiade de poetas adolescentes que viriam a ser conhecidos como
Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e
Murilo Mendes, todos eles futuros admiradores do poeta do Cancionero
Gitano.
O Modernismo
brasileiro, iniciando em 1922, ia atingir o melhor de si por volta
de 1930, quando se dá a revolução que conduziu Getúlio Vargas ao
poder. Foi um período de inquietação política e intelectual. Muitos
escritores foram convocados a servir ao governo, como Carlos
Drummond de Andrade, por exemplo, nomeado chefe do gabinte do seu
amigo Gustavo Capanema, ministro da Educação e Saúde, como era o
nome do ministério naquela época. Em l932, rebela-se o Estado de São
Paulo, exigindo o cumprimento da Constituição; em 1935, o governo
reprime uma possível intentona comunista; e em 1937, acaba criando o
Estado Novo, sob influência facista, fechando o congresso nacional e
impondo uma constituição feita especialmente para os seus propósitos
ditatoriais, e que durou até o fim da segunda guerra mundial.
Criou-se então o famoso e famigerado Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), que tanto mal fez aos intelecutuais e políticos
brasileiros, cassando-os, aposentando-os e exilando-os ou
obrigando-os a exilar-se, tal como iria acontecer novamente a partir
de 1964. Foi, no entanto, um período de grande transformação social
no Brasil, com benefícios que vêm sendo aperfeiçoados a favor da
população brasileira.
Os escritores
mencionados, agora com os seus quarenta anos e já conhecidos como
grandes poetas, só começam, entretanto, a escrever sobre García
Lorca depois da queda do Estado Novo. Parece que tiveram algum
receio de desagradar a censura da época. Lorca havia sido fuzilado
pelo governo espanhol, e não se sabia bem por quê, possivelmente por
atuação comunista, como se pensava e não se dizia. A repressão ao
comunismo veio dos Estados Unidos e cresceu no Brasil, só terminando
recentemente, por verdadeira inanição mental.
O primeiro a
escrever sobre a morte de Lorca foi Carlos Drummond de Andrade, em
1947, no livro Novos Poemas, de 1947, mas só publicado em 1954, em
Fazendeiro do Ar & Poesia até Agora. É o momento em que o poeta,
resolvido o conflito entre a participação social (do modernismo) e o
engajamento na linguagem (no seu próprio projeto poético), penetra
cada vez mais na palabra, a usar aqui uma de suas imagens,
transformando a sua linguagem no sentido da lucidez criadora, numa
luminosidade órfica, de grande força poética, na direção do que
escreverá depois em Lição de Coisas, em 1962: "O nome é bem mais do
que nome: o além- da- coisa, / coisa livre de coisa, circulando".
O poema de
Drummond se intitula exatamente "A Federico García Lorca" e assim
aparece na edição de sua Obra Completa (Aguilar, 1964):
Sobre teu corpo,
que há dez anos
se vem transfundindo em cravos
de rubra cor espanhola,
aqui estou para depositar
vergonha e lágrimas.
Vergonha de há tanto tempo
viveres — se morte é vida —
sob chão onde esporas tinem
e calcam a mais fina grama
e o pensamento mais fino
de amor, de justiça e paz.
Lágrimas de noturno orvalho,
não de mágoa desiludida,
lágrimas que tão-só destilam
desejo e ânsia e certeza
de que o dia amanhecerá.
(Amanhecerá.)
Esse claro dia espanhol,
composto na treva de hoje
sobre teu túmulo há de abrir-se,
mostrando gloriosamente
— ao canto multiplicado
de guitarra, gitano e galo —
que para sempre viverão
os poetas martirizados.
Como se vê, o
poema retrocede a um ano depois da morte de García Lorca: é como se
em 1937 (o ano do Estado Novo, que vai aparecer em 10 de novembro)
Drummond, escrito o poema, houvesse vacilado em incluí-lo em A Rosa
do Povo, preparado desde 1943 e publicado em 1945, ainda dentro da
ditadura de Getúlio Vargas e, claro, do General Franco. Todo o eixo
semântico do poema se estrutura sobre as palavras "vergonha" e
"lágrima", como se o poeta sentisse remorso de ter-se calado durante
tanto tempo. Mas na última estrofe faz uma bela antítese entre o
"claro dia espanhol" e "a treva de hoje" (que pode ser aplicada à
Espanha e ao Brasil, como também a todo o mundo conflagrado), e,
mostrando leitura do Romancero Gitano, se vale das imagens de
"guitarra" e de "gitano" para concluir positivamente com o tópico da
eternidade da arte e da poesia.
Outro poeta
importante do Brasil, Manuel Bandeira, cognominado o São João
Batista do Modernismo, logo depois de Drummond publica "No Vosso e
em meu Coração":
Espanha no coração:
No coração de
Neruda,
No vosso e em meu coração.
Espanha da liberdade,
Não a Espanha da opressão.
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Velha Espanha de Pelaio,
Do Cid, do Grã-Capitão!
Espanha de honra e verdade,
Não a Espanha da traição!
Espanha de Dom Rodrigo,
Não a do Conde Julião!
Espanha republicana:
A Espanha de Franco, não!
Espanha dos grandes místicos,
Dos santos poetas, de João
Da Cruz, de Teresa de Ávila
E de Frei Luís de Leão!
Espanha da livre crença,
Jamais a da Inquisição!
Espanha de Lope e Góngora,
De Góia e Cervantes, não
A de Felipe II
Nem Fernando, o balandrão!
Espanha que se batia
Contra o corso Napoleão!
Espanha da liberdade:
A Espanha de Franco, não!
Espanha republicana,
Noiva da Revolução!
Espanha atual de Picasso,
De Casals, de Lorca, irmão
assassinado em Granada!
Espanha no coração
De Pablo Neruda, Espanha
No vosso e em meu coração!
Percebe-se que
Bandeira também se deixou encantar pelo Romancero Gitano, tanto que
na sua homenagem à Espanha (e a Lorca) utiliza o verso setissílabo
(em português), procurando aproximações rítmicas com os versos de
Lorca e extraindo dos romances populares, bem conhecidos no Nordeste
brasileiro, uma estrutura narrativa que só não se completa pelas
constantes interrupções de versos e palavras que se vão repetindo ao
longo do poema. Professor de Literatura Hispano-Americana na
Universidade Federal do Rio de Janeiro e tendo publicado, um livro e
sobre essa matéria, Bandeira conhecia muito bem a literatura
espanhola. Mas, como ele mesmo se dizia "poeta menor", isto é, não
capaz de cantar os grandes temas épicos (e políticos), chama a
atenção o seu tom de engajamento neste poema, publicado logo depois
do de Drummond, no livro Belo Belo, de 1948. Mais tarde, no volume
de Poemas Traduzidos, publicado em Poesia e Prosa, em 1958,
traduzirá para o português o poema de Lorca "Toada de Negros em
Cuba", cujos primeiros versos são:
Quando chegar a lua cheia, irei a Santiago de Cuba, Irei a Santiago,
Num carro de água negra
Irei a Santiago.
Outro poeta de
grande nome no Brasil e no estrangeiro é Vinícius de Moraes, que
apareceu na segunda geração do modernismo, a partir de 1930. A sua
obra trouxe ao modernismo o sentido de equilíbrio entre o velho e o
novo, restaurando formas como o soneto e a balada e, principalmente,
dando ao verso tradicional uma nova linguagem e um ritmo novo aos
versos livres, numa musicalidade que agradou bastante o leitor. Não
é, portanto, por acaso, que Vinícius de Moraes veio a tornar-se um
dos maiores compositores da música popular brasileira. No seu livro
Nossa Senhora de los Ángeles e Nossa Senhora de Paris, escritos no
fim da década de 1940 e publicado em Obra Poética (1968), dedica um
poema à morte de García Lorca: "A Morte na Madrugada", com uma
epígrafe tomada a Antonio Machado ("Muerto cayó Federico"). Este
poema retoma também o sentido narrativo do Romancero Gitano,
intertextualizando alguns de seus versos, como na primeira e na
última estrofes:
Uma certa
madrugada
Eu por um caminho andava
Não sei bem se estava bêbado
Ou se tinha a morte n’alma
Não sei também se o caminho
Me perdia ou encaminhava.
Só sei que a sede queimava-me
A boca desidratada.
Era uma terra estrangeira
Que me recordava algo
Com sua argila cor de sangue
E seu ar desesperado.
Lembro que havia uma estrela
Morrendo no céu vazio
De uma outra coisa me lembro:
… um horizonte de perros
ladra muy lejos del río…
[ …]
Atiraram-lhe na cara
Os vendilhões de sua pátria
Nos seus olhos andaluzes
Em sua boca de palavras.
Muerto cayó Federico
Sobre a terra de Granada
La tierra del inocente
No la tierra del culpable.
Nos olhos que tinha abertos
Numa infinita mirada
Em meio a flores de sangue
A expressão se conservava
Como a segredar-me: — a morte
É simples, de madrugada…
Percebe-se neste
poema a força da influência da poesia de García Lorca, sobretudo a
partir do Romancero Gitano, de 1928. Os poetas jovens do Brasil,
vindos da dicção modernista, haviam abandonado a redondilha, talvez
considerando-a demasiadamente popular. Lorca ajudou portanto a
restaurar uma forma poética na literatura brasileira, a que tinha,
aliás, como contraponto popular, o uso quase exclusivo dos versos de
sete sílabas, como nos poetas de cordel, principalmente do Nordeste.
Via-se que tal ritmo, tido como superado, estava sendo trabalhado
por Lorca no sentido de juntar o popular ao erudito. Daí uma série
de poemas em redondilhas, a partir de 1945, o que fez a crítica
pensar numa volta aos movimentos literários anteriores ao
modernismo. Chegou-se a falar num Neomodernismo — a geração de 45,
de onde saíram João Cabral e Lêdo Ivo.
Encontro, também,
na obra de Murilo Mendes um "Canto a García Lorca". Está no livro
sintomaticamente denominado Tempo Espanhol, de 1950, e na Poesia
Completa, de 1994. Com uma linguagem contida e rigorosa e imagens
como "linguagem corporal", o "sal da inteligência", "EL DUENDE", o
poeta brasileiro homenageia o sentido poético de García Lorca, em
cuja obra "Espanha é calculada/ Em número, peso e medida", como se
lê no final do poema:
Não basta o sopro
do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.
Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.
O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,
Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto
De vermelho: cor de mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.
*
Consolo-me de tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde EL DUENDE é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.
*
* *
Pelo que se vê
destes exemplos, dez anos depois da morte de García Lorca, quatro
dos maiores poetas brasileiros deste século — e todos na mesma época
— prestaram a sua solidariedade ao poeta espanhol. Celebraram
principalmente a sua morte, deixando aqui e ali referência a seu
espírito andaluz, à sua temática gitana e popular, captando e
absorvendo algo de sua estilítisca, tendo sempre como ponto de
partida o Romancero Gitano.
A obra de Lorca
deve ter demorado a chegar ao Brasil e só ganhou repercussão com a
morte do poeta, despertando assim os ânimos políticos que já
cresciam entre os intelectuais. Mas a verdade é que houve um período
de silêncio entre a sua morte e o primeiro poema que lhe foi
dedicado, em 1947, por Drummond. que, parece, iniciou a moda de
poemas dedicados ao poeta de Granada.
Os poetas da
geração de 45 entram em cheio na leitura de García Lorca, traduzindo
seus versos e algumas de suas peças, como se vê numa coleção da
Editora Agir, no Rio de Janeiro. No entanto, as gerações seguintes
parece que já não conhecem mais o poeta. E os comparatistas,
preocupados com o "x" e o "y" das teorias literárias — pelo que se
deduz das teses de mestrado e doutorado defendidas nas
universidades brasileiras — não foram ainda capazes de entrar no
"bosque negro y centenario" do poeta nascido em 1898, há cem anos
precisamente e para quem, como escreve num de seus "Poemas en
Prosa", é preciso romper com a "literatura vieja"
para que los dogmas se purifiquen y las normas
tengan nuevo temblor.
Salamanca, diciembre de 1998.
Leia
mais Federico García Lorca
na página da Banda Hispânica
|