Em uma de suas conferências, de 1944, T. S. Eliot trata da
dificuldade do crítico diante do poeta novo e iniciante, dizendo que
um bom critério para avaliar a possível originalidade (ou não) de
sua obra é o de "deixar a nossa sensibilidade livre para reagir
naturalmente". Mas o melhor teste - escreve - "é quando alguma
expressão, alguma imagem (ou verso) voltam à nossa memória".
Pois foi o que se deu com este Coração na boca, de Alexandra Maia.
Li-o à noite e, de manhã, na minha caminhada, algumas imagens,
versos, temas e até o jeito especial de terminar o poema foram
surgindo e me acompanhando, atraindo a minha atenção, por mais que
eu insistisse em olhar as palavras que passavam pedalando e as ondas
que se movimentavam pelo calçadão.
Assim, boca a boca, fui fazendo respirar o corpo inanimado dos
originais que me olhavam de cima da mesa, a me fazer a mesma
pergunta do poeta: Trouxeste a chave? O título servia para a
percepção da diferença entre os significados lingüísticos das
expressões "com o coração na boca" (o suspense) e "com o coração na
goela" (a fraqueza) e a significação literária de Coração na boca, a
exprimir, na redução do título, o elevado grau de emoção que
percorre o sentido mais profundo deste livro.
A idéia de um corpo de emoções em Coração na boca - o corpo
despedaçado de Osíris ou de Orfeu - me ajudou a organizar um
itinerário de leitura, a partir das duas palavras do título, vistas
numa cadeia descontínua de imagens corporais. Reunidas pelo olhar
amoroso do leitor, elas compõem o eu lírico que fala sempre em
primeira pessoa e se deixa perceber, de maneira fragmentada, ao
longo dos poemas. Isto explica a freqüência de palavras como corpo,
braços, mãos, dedos, pernas, coração, sangue, pés, rostos, língua,
olhos, boca, seio, cabelos, peito, pulmões, cotovelos, sem as
repetições, e na ordem em que aparecem no volume. É claro que a
enumeração aumenta se se contam as citações indicadas e metafóricas
que fazem do livro de Alexandra Maia um todo emocional que enleia o
leitor, como no canto amoroso da Iara.
Esse corpo fragmentado se mostra mais facilmente nas suas duas
vertentes de emoção: a do Amor, com a sensualidade percebida mais
nas imagens que nas palavras, e a da Terra, projeção quase mítica do
imaginário amoroso no sentido da fertilização. Os poemas iniciais
deste livro passam a imagem do amor como coisa do passado, como uma
grande emoção recolhida na tranqüilidade do poema, como diria o
poeta inglês; são "memórias ecoando em meus vazios", são "as pernas
cada vez mais distantes,/ cada vez menores/ diante de um chão
impossível". Mas a partir do poema "Diário" , o amor se transforma e
se presentifica, torna-se mais sensual e atinge o erotismo numa
linguagem expressiva e original.
Versos como "E sobram pernas, línguas e estremecimentos/ até o
amanhecer" (de "A noite"), "tocamos o inefável"(de "Ah") e os do
pequeno poema "Copo de leite" dão a dimensão maior do amor sem
fronteiras com o corpo atingindo sua plenitude erótica (no bom
sentido latino) e esbarrando na frustração da continuidade, da não
maternidade, como no poema "Todo mês".
Logo a seguir, o poema "Enfermaria" leva a metamorfose a um nível de
alta sensualidade: o sujeito lírico se diz terra e fala no
"movimento da língua escavatória" e em "desejo escorrendo no azulejo
branco", num belo verso nominal que deixa o poema em suspense.
Vacilando e transitando entre o amor e a natureza, em busca de uma
saída para o impasse de uma filosofia existencial que se documenta
em vários poemas ("Recorte" e "Estar humano", por exemplo),
Alexandra Maia se vê diante de uma dupla solução: de um lado, Deus,
mas um Deus um tanto anestesiado, mítico ou metafórico; e, de outro,
a consciência da construção de uma linguagem poética à solução na
Poesia.
Assim, quando fala em Deus é como se estivesse falando de limites,
como no poema "Ah", onde o amor atinge o "inefável" e os amantes
encostam-se "nos pés de Deus" para depois caírem de novo na cama.
Mas é em "Sinal" que Alexandra Maia cria a mais bela imagem de Deus:
falando da garça que vive nos esgotos da Visconde de Albuquerque no
Leblon, escreve: "É o desenho livre de Deus amassado no chão".
O livro de estréia de Alexandra Maia, Coração na boca, se não revela
ainda uma artista capaz de fundir as técnicas tradicionais com a
modernidade, mostra, de maneira exemplar, uma vocação poética
indiscutível, uma linguagem nova, uma dicção límpida e convincente,
uma intuição admirável na conclusão dos poemas, quase sempre com
versos apodícticos, como em "Pesadelo", cujo último verso, melhor
diria monoverso, tem a serenidade de uma proposição poética
necessária: "O saber do mundo me escorre das mãos".