Veias
ainda não vazadas na poesia
Dois
jovens e uma artista plástica questionam um panorama conservador
que impõe seus limites e suas tradições a uma literatura
hoje acomodada
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Elisa Tessler,
Manoel Ricardo de Lima |
Dois livros lançados
há pouco dão a dimensão do que vem acontecendo na
poesia brasileira: um, ao apontar para as interfaces que a poesia pode
buscar para multiplicar-se; outro, ao assumir a forma da língua
viva e entrecortada da cidade e seus sons; e os dois, juntos, mostram como
os mais jovens podem encontrar veias ainda não vazadas na poesia.
Em Falas Inacabadas, fotografias dos inventos plásticos da gaúcha
Elida Tessler escapam de páginas desdobráveis compartilhadas
com o poeta cearense Manoel Ricardo de Lima, e não passa desapercebido
o fato de que a costura do livro seja aparente, externa, para lembrar que
ali está um só trabalho: não são duas falas
inacabadas aproximando-se com o objetivo de fortalecerem uma à outra.
São duas falas que se costuram e, mesmo juntas, amarradas, permanecem,
pois assim preservam-se, inacabadas, precárias, insuficientes, como
o mundo circunstante.
O livro é isto: uma leitura/escritura
do mundo circunstante, um mundo que não se limita a Fortaleza, de
Manoel, nem a Porto Alegre, de Elida. Falas Inacabadas admite que “a melancolia
abrange e transforma cada não dizer das falas”, e por isso a incorpora,
assumindo a forma dos mundos de todas as pessoas: formações
interrompidas, palavras pela metade, conversas elípticas, sons sem
sentido, imagens inconstantes, esboços, pedaços, destroços.
E disso tudo saltando infinitas possibilidades de diálogo, em que,
adjetivando as falas, ‘inacabada’ é sinônimo de ‘sem fim’
e reconstrói o discurso incompleto a partir de suas próprias
faltas.
Os poemas de Manoel, ao redimensionar
e redirecionar as pessoas que Elida faz pensarmos que já passaram
pelas imagens do livro, confundem naquelas pessoas que não estão
ali as pessoas do poeta e as pessoas da artista, umas de Fortaleza (onde
Manoel se encontra) e as outras de Porto Alegre (de onde Elida as retira)
e transformam estes ausentes na única certeza do livro, varado e
vazio deles.
Já na Fábrica,
do poeta Fabiano Calixto, pernambucano residente no ABC paulista, há,
como se suspeita de seu título, a incorporação do
ronco maçante, da algaravia, da irritação, da decadência,
enfim, da vida no momento crítico por que passam as cidades, vida
forçosamente submetida a padronizações nada igualitárias,
mas sim perpetuantes de diferenças acentuadas. Poesia urbana não
da rua, mas do que é a rua dentro de casa e da cabeça, do
mundo do trabalho e da convivência.
A voz do poeta não mimetiza
a voz de fora para poder circular. Sua voz fecha-se: fala de leituras,
fala de flores, fala de vidro, fala de plástico, fala do que não
viu. Fábrica recobra momentos da memória e sua voz – como
a pele no poema “17:49” – fica “povoada de arrepios”, o que faz da poesia
de Fabiano, por trás de uma espécie de dureza que tem suas
raízes em vários poetas brasileiros desta metade do século,
uma poesia de imagens líricas, de cenas em que, por exemplo, observa-se
alguém “dormindo sob/ as pálpebras enfloradas/ da primavera”
ou os cigarros fumados para passar o tempo se converterem em esperas acesas
pelo tempo de uma estrela.
A poesia de Fabiano Calixto
demonstra vitalidade rara não só entre poetas da sua geração,
mas que também não se encontra facilmente mesmo entre poetas
cujo nome ouvimos sempre, sejam eles de quaisquer das categorias que têm
utilizado vez ou outra para identificar as diferenças entre os poetas
atuais, dos novos aos velhos. Um livro como Fábrica é resposta
segura aos tantos atentados cometidos contra a poesia.
Se a poesia feita no Brasil
hoje, especialmente entre os jovens, pode ser caracterizada pelo que supõe
de variedade e de buscas diferenciadas talvez a um lugar nenhum, estes
dois livros são para esse contexto a medida de qualidade que, em
visão histórica conjunta, aguardamos.
FALAS INACABADAS, OBJETOS
E UM POEMA, de Elida Tessler e Manoel Ricardo de Lima. Tomo Editorial,
48 págs. R$ 20,00.
FÁBRICA, de Fabiano
Calixto. Alpharrabio Edições, 64 págs. R$ 15,00.
Tarso
M. de Melo é poeta, autor de A lapso (Alpharrabio, 1999), e editor
da revista Monturo
(in Estado de São
Paulo, Caderno 2, 8.8.2000) |