Urariano Mota
Encontro de amigos
O motivo inicial foi o câncer.
Descobriram, de repente, que um deles poderia desaparecer,
definitivamente desaparecer. Que todos desaparecem, mais cedo ou
mais tarde, não tinham nenhuma dúvida. Todos, algum dia, todos todos
todos sem dúvida um dia iriam, num futuro remoto, sumir. De morte
morrida, matada ou suicídio. Todos. Mas uma coisa, que só a lógica
humana explica, uma coisa é todos desaparecerem. Outra, bem
distinta, era desaparecer um deles, um indivíduo conhecido, com quem
viveram, conviveram, alguém íntimo, sim, outra bem distinta era
desaparecer aquele indivíduo chato, aborrecido, mas que tinha, “ah,
todos temos”, algo de humano e amoroso. E como se não bastasse, um
alguém com a embaraçosa qualidade de ser “um dos nossos”.
- Saturnino pegou um câncer!
- Como foi isso?
Era a pergunta imediata, que vinha como resposta. Isto queria dizer:
o que foi que ele fez de errado? Sim, alguma e algumas ele deveria
ter feito. Está vendo? não se cuidou, é o pau que dá: não se cuidou,
usou e abusou de extravagância, está aí, câncer. E isto queria
também dizer, nós, que nos cuidamos, que seguimos dietas saudáveis,
que praticamos exercícios físicos, que caminhamos, que fazemos amor
dentro dos limites, que bebemos pouco, que comemos só o necessário,
nós, a caminho da imortalidade, nos cuidamos.
- Como foi isso?
Vamos, queriam dizer, comprove-nos o quanto ele errou, o quanto não
erramos nós, o quanto ... não diziam, mas pela progressão da
exigência de fatos explicadores, poderiam dizer, o quanto ele é
culpado do câncer que pegou.
- Ele mesmo não sabe. Havia deixado de beber, fazia cinco anos que
não fumava, fazia caminhada, vivia de casa para o trabalho, do
trabalho para casa, estava com uma vida de santo. E câncer...
- Ele estava sentindo alguma coisa?
Era a pergunta seguinte, porque isto também queria dizer, diga,
vamos, enumere urgente os sintomas que não temos.
- Nada, ele não sentia nada. Absolutamente nada. Entende? Nem uma só
dorzinha, nem o mais leve mal-estar, nada.
Ah, e como um fel que se masca e mastiga, diziam ah, e isto queria
dizer o quanto a doença era traiçoeira, o quanto ela avançava em
silêncio, como um fila, pior, pior que um cão fila brasileiro,
porque ao sentir as dores da mordida o indivíduo está no ponto final
Ah. Então foram lembrando, aos poucos, sem reunião, sem que se
comunicassem, como uma reflexão coletiva, como um pensamento que
corre sem que se enuncie, o quanto outros males vinham se
anunciando. Ah. Todos haviam ultrapassado os cinqüenta anos. Bolívar
estava com regurgitação, e isto queria apenas dizer que não podia
mais comer como antes, o que engolia voltava, contra a sua vontade.
(Mas isso era melhor que o câncer!) Elísio estava com uma
palpitações estranhas no peito, depois que recebera umas pontes de
safena. Três, três pontes, mas benditas, porque isto ainda era
melhor que um câncer. Isaltino fizera uma cirurgia remodeladora do
estômago, da vesícula, extraíra um dos rins, essas coisas
secundárias, que não se sabe por que temos dois, que felicidade,
divorciado de alguns órgãos, mas paciência, isto, ainda assim, era
melhor que um câncer. Vespúcio, com receitas infalíveis de vida
saudável, alimentação milagrosa, chás de ervas de qualidades ainda
não descobertas, exercícios e meditação budista, estava a caminho de
perder o outro equilíbrio, o mental. Demente, mas saudável,
diziam-se. Será um atleta sênior, com um sorriso idiota, que fazer?,
de qualquer modo, isto era ainda muito melhor que câncer.
Sim, mas ainda aqui, nesse levantamento em que tudo era o melhor dos
mundos, porque ausente de câncer, e o mundo com tal ausência,
dever-se-ia dizer, era o paraíso sem a oposição do satanás, ainda
aqui, descobriram, se deixassem de ter como referência o mal maior,
se voltassem os olhos para a vida de quando jovens, ah, se se
comparassem aos que nada têm, ah. Era de amargar. Fel que não dava
nem para mascar com aparência de jovens com chicletes. Ah. Porque
então se deram conta, terrível novidade, que já haviam vivido mais
que 70% dos seus melhores anos.
- Setenta? Olhe, você está sendo muito otimista, contestou Elísio.
Olhe, para alguns de nós, estamos nos dez por cento finais.
Então decidiram fazer uma reunião de amigos. Um reencontro. A
pretexto de uma solidariedade ao infeliz que sofrera o que não
queriam , resolveram ter um reencontro, antes que fosse tarde. E
aqui, somente aqui, nos dez por cento finais começa a nossa
história. Porque aqui começam as nossas dificuldades.
A começar pela estrela, o canceroso. Não queria falar com ninguém.
Danem-se! “Deixem-me em paz”, espalhem aos quatro cantos,
“esqueçam-me”, eu quero ficar sozinho, eu quero morrer só, eu estou
sentindo um fedor de hipocrisia, vão pra puta que os pariu.
- Ele não está bem do juízo, dizia a sua esposa, ao telefone.
- Por quê? Ele está agressivo, quero dizer, ele está mais agressivo
do que antes?
- Não, ele só quer ouvir João Gilberto.
- Ah, então o caso é sério, e desligavam.
Mas não desistiram de, aqui e ali, fazerem uma ligação. E ele,
melhorou? Diga-lhe que todos desejamos vê-lo, revê-lo, que todos
torcemos por ele, que ele é muito importante para nós, e demais
frases e fórmulas de adulação, que por serem corteses, educadas, são
enganosas, mas guardam, por isso mesmo, o doce gosto de uma
consolação.
- Como foi mesmo que ele disse? perguntava à esposa.
- Que você é importante para eles.
- Mas você disse antes que eu era “muito, muito importante”.
- Sim, eles disseram assim: ele é muito importante para nós.
- Só isso?
E continuavam o assédio, por mensagens, por mails. Exageravam, no
estímulo: “Levante a cabeça, o câncer é uma doença como outra
qualquer”. Isto muito, muito o irritava. Uma doença qualquer?!
Respondia, no mesmo tom: “Recomendo ao amigo essa doença qualquer. É
uma bobagem, é como uma gripe, um sarampo”. E vinha outro, com
estímulo semelhante: “Todos vamos morrer...”. E vinha uma bondosa
amiga: “Existem uns passes de energia, com os dedos, feitos com a
proximidade das mãos, que conseguem uma cura revolucionária”. (E
aqui, mesmo no esoterismo, não se perdia o jargão: passes de energia
“revolucionários”.). E outro: “Melhore o humor, homem. Eu tenho uma
tia, que com bom humor...”, o que seria algo, o paciente resmungava,
algo como a cura do câncer pela risada. E se imaginava numa câmara
de cócegas. Nela, um médico com máscara de cirurgião, como um boneco
de marionetes, lhe anunciava: “A terapia das cócegas venceu a sua
doença”.
Ao fim, no entanto, de 90 longos dias venceram. Aconteceu de
repente, naquele que desejava ficar sozinho, morrer sozinho, como se
a morte não fosse em si uma imensa solidão, aconteceu de repente no
homem de vidro uma saudade, uma vontade de beber, um desejo imenso
de rever os amigos, de entrar com eles num bar, num café do quadro
de Van Gogh. De conversar bobagem, de ver suas caras, como se fosse
pela primeira vez. Está certo, como se fosse a última ou penúltima
vez. E pediu que marcassem o dia, o dia e a hora para o reencontro.
Então os safados, surdina e quixotescamente, disseram-lhe, por mail,
que as esposas não iriam. Que esse era um encontro tão-só e somente
deles, sem mulheres, para melhor, não diziam, mas era isto, para
melhor delas poderem falar. E quem sabe, talvez, possibilidades aos
cinqüenta anos de idade abertas, se energias e fogo houvesse,
talvez, quem sabe, a fuga para um bar que fosse um quadro de
Toulouse-Lautrec.
As mulheres não aceitaram , estava escrito. Dizia uma:
- Então eu sou boa para ser enfermeira. Mas não para companheira...
Dizia outra:
- O que vai fazer um bando de homens juntos?
Ao que outra completava:
- Procurar mulher, é claro.
A isto respondiam com protestos os amigos, com sentidos e ofendidos
protestos:
- Que é isto? Assim você nos ofende. Mulheres já temos. Vocês já nos
preenchem, completamente... (Até o pescoço, até a fronte, acenava um
safado, por trás.)
E quando pensavam que haviam vencido, numa tola esperança, porque
desconheciam que ao fim e ao cabo as mulheres sempre vencem, quando
pensavam que com tais declarações de amor conjugal haviam vencido,
eis que vinha a carga, mais pesada:
- Um bando de homem junto, sem mulher... Então vão dar o cu! Quem
vai comer o cu de quem? Era bom saber. Quem come quem?
- Minha querida, em nossa idade....
- Não perca a esperança. Velhice é desespero!
Então houve um grau supremo de apelação. Os amigos proferiram
discursos comoventes, que argumentavam com o mundo só de homens, de
recordações só masculinas, de necessidade imperiosa de se fazer um
balanço sentimental desde a infância, de se contar fatos vexatórios
que os homens não contam às mulheres, “vocês também possuem o seu
mundo, entendem?”, discursos verdadeiros e mentirosos, demagógicos e
grandiosos, de ternura e de raiva em iguais proporções. Inútil. Como
diria mais tarde o sociólogo do grupo, a passar a mão no ventre
esvaziado do rim esquerdo e de pedaços dispensáveis do estômago,
como diria ele, a passar a mão pelas cicatrizes do abdômen, “o
impasse estava configurado”. E completava:
- O amor é guerra, bicho. Se você se fizer de fraco, a mulher monta,
monta e não desce. Então eu virei a mesa, e gritei: “Eu vou, eu vou
de qualquer forma e jeito! Eu vou sozinho, e fim!”.
Mas se o amor é guerra, o vencedor não é o que grita. Pelo
contrário. Todos tiveram a generosa permissão de ir sozinhos, “era
uma questão de princípio”, proclamavam. Mas sob a condição, o que
não se disseram nem exaltaram, de deixarem a informação exata do
bar, do local, da hora, e com os telefones celulares acesos, dentro
da área de cobertura. Sozinhos, mas... Liberdade condicional, sob
controle remoto e vigiada. Então chegaram.
Estavam jovens, joviais e serelepes. E aqui a mão que escreve oscila
entre o cômico e a comoção. A flor breve da juventude havia
murchado. Todos estavam de cabelos grisalhos, com exceção de um,
cujos cabelos enegrecidos deviam ser objeto de muita tinta e
cuidados. Ativos, pesados, ágeis, mas só no olhar, na rapidez com
que os olhos evitavam questões desconfortáveis.
- Você é feliz?
- Eu sou um homem prático.
E se olhavam, e se mediam, “será que estou velho como ele?”.
- Você está com a mesma cara! (Era o supremo elogio, porque o corpo
não era mais o mesmo). É impressionante.
- Você acha? A gente se acostuma com o espelho e não nota. É preciso
que outra pessoa diga. Você acha mesmo, a mesma cara?
Feitas as “apresentações”, as retomadas dos contatos, voltaram então
as brincadeiras, as ácidas e pesadas brincadeiras, ferinas, uma
herança da adolescência.
- Como você faz para ficar assim, tão jovem?
- Eu? Alimentação, alimentação saudável e exercícios.
- Sei, pão, queijo e café?
- Não, eu já notei que você não come frutas. Vai ver que foi por
isso...
Ia dizer que “pegou um câncer”, mas suspendeu a frase. Ao que o
atingido responde:
- Então comi errado nos meus últimos cinqüenta e cinco anos. Sim,
como devo comer? Ensine-me, como devo comer?
A ironia não é percebida, porque o cultivador de “saúde é tudo, em
primeiro e perimeiríssimo lugar saúde”, passa a enunciar uma
receita:
- Olhe, pela manhã, um copo de suco de laranja, uma folha de couve,
uma fatia de pão de centeio. Seis ovos de codorna, uma xícara de chá
preto. E limão. Pode usar e abusar do limão, se quiser. Limão é
muito bom para as artérias, até pra potência.
- Limão? - Todos se interessam na mesa . - Limão?
- Sim, limão.
- Via oral, você quer dizer.
- Sim, e água, muita água. A receita da felicidade é a água.
- Água água?
- Sim, água, água. Bebam 8 copos de água por dia. Mas o ideal são
dois litros de água. Limpa a pele, desintoxica, emagrece, lubrifica
e dá tesão.
- Água mesmo, sem aditivo?
E entra-se então no capítulo de observações que se apresentam como
gerais, como se dissessem respeito a outros.
- Há pessoas que na maturidade, no envelhecimento, não, porque todo
velho é feio, mas há pessoas que na maturidade ficam melhores de
aparência. Já notaram?
- Já, não é o teu caso.
- Mas você disse que a minha cara era a mesma.
- Então, isto mesmo: estás tão feio quanto antes.
Riem. E as vítimas rodam, substituem-se, como num jogo de bola, de
“doidinho”, em que um indivíduo perde a bola para outro, e passa a
tentar recuperá-la, que vai de um pé a outro, em roda.
- Você se lembra do dia em que o ladrão invadiu a sua casa?
- O ladrão jamais invadiu a minha casa.
- Então foi pior. Você pensava que o ladrão havia invadido. Você
ficava a pular, de coluna a coluna da sala, com uma faca de mesa,
sem ponta, a gritar para a sua filha: “o que é, porra?, o que é,
porra?”. Aparentemente, era o chefe do lar a pôr ordem na histeria
da filha, apavorada. Na verdade, eram anúncios para o ladrão, “vá
embora, que estamos acordados”.
Riem.
- Mas o pior foi no outro dia. A filha lhe perguntou: “papai, por
que o senhor ficou a pular, de uma coluna para outra?”. E a
resposta: “era para o ladrão errar a pontaria do revólver, minha
filha”. Mas dizes bem: jamais houve ladrão em tua casa. Houve só o
pavor.
Então os casos, os “doidinhos” se sucedem. Até a exaustão, até o
ponto em que os ridículos de cada um são mais do que conhecidos, e
por isso perderam o interesse, ou então, são conhecidos, mas não se
dizem, mesmo na bebedeira, porque ainda ferem, magoam, mesmo sendo
cômicos. Ninguém diz, por exemplo, que a miséria humana, sexual, era
tamanha na juventude que galinhas pretas, no quintal, eram adoradas
pelas frestas do banheiro do quintal, em vigorosas masturbações.
Ninguém diz tampouco que um deles recebeu um falso bilhete, onde uma
enamorada marcava um encontro, e que ele ao comparecer ao local,
perfumado e em sua melhor roupa, recebeu uma sonora vaia dos
colegas. Isto não se diz. Nem tampouco a miséria material de outro,
que para comer um prato de carne, deixou-se masturbar por um
homossexual. Não, isto ninguém diz. Não se fala tampouco de
casamentos que não deram certo, de filhos separados, fodidos, longe.
Não se diz. Porque isto ficou além do ridículo. Há uma lâmina fina
que separa o riso da dor. O limite talvez seja o ridículo que dói.
Então descobre-se que, por nada, os senhores cinqüentões ficaram
sentimentais, estupidamente sentimentais, brutalmente sentimentais,
que por nada choram, de repente choram, em meio a um relato
aparentemente objetivo, trivial, perdem a voz, ficam com a voz
embargada, e não conseguem avançar. Escondem o rosto, vão ao
banheiro, e voltam com a cara inchada e os olhos vermelhos. E então
se dá um silêncio, e uma vontade imensa de gritar:
- O que é, porra?
Mas não se grita, porque o grito seria um berro de menino sem mãe,
órfão. Então sem aviso, começa-se a cantarolar, como se estivesse
marcado, como se fosse uma música marcada no script do encontro, o
Hino de Batutas de São José:
“Eu quero entrar na folia, meu bem
Você sabe lá o que é isso?
Batutas de São José, isto é parece que tem feitiço.
Batutas tem atrações que ninguém pode resistir
Um frevo desses que faz demais a gente se distinguir.
Deixa o frevo rolar
Eu só quero saber
Se você vai ficar
Ai, meu bem, sem você
Ai, não há carnaval
Vamos cair no passo
E a vida gozar”
E repete-se o refrão, com os braços nos ombros, os velhos, os jovens
amigos:
- Vamos cair no passo, e a vida gozar.
Então a voz começa a fraquejar. Então começa uma saída para o
banheiro. Então começam a virar a cara, uns para os outros, a se
ficarem de costas, a buscar um lenço.
- O primeiro a chorar é bicha. O primeiro a chorar é veado. Certo?
- Certo.
E o banheiro começa a se encher de amigos. Até que um deles desaba,
literalmente desaba, e se põe num pranto alto. O choro contagia,
todos os amigos se contaminam. Num fiozinho de voz, alguém diz:
- O nosso mundo está indo. O nosso mundo está se acabando.
Cai uma chuvinha fina, de fim de tarde, no bar que seria o Café de
Van Gogh, se fosse de noite, em Arles, em setembro de 1888. Mas é um
bar em Olinda, onde o mar bate, insensível àquele bando de velhos
que acenam para um mundo que não volta. Um celular toca. Toca,
chama, em vão. Silêncio, só murmúrio dos homens que choram. Todos
estão fora da área de cobertura.
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