Valéria Nogueira Eik
Dualidade
Ele vinha de longe, onde as ruas eram
de terra, sujando os sapatos velhos de uma poeira vermelha, também
envelhecida pela falta de chuva.
Alcançava as poucas ruas pavimentadas
com paralelepípedos, e vinha num quase gingado, balançando o corpo
negro, num resquício de juventude, que lhe permitia caminhar
vagarosamente e dessa forma, chegar à grande casa da pequena cidade.
Corpo cansado, pele enrugada, olhos de
quem já viu tudo e mesmo assim, tão doces.
Era filho de uma escrava e se ele
trazia na alma as marcas do cativeiro e das injustiças, jamais
saberei.
Tocava a campainha e esperava,
humilde, a porta ser aberta e uma voz feminina e calorosa lhe dizer:
- Bom dia, Seu Adelmo! Como está?
E o pobre diálogo transcorria sempre
em torno das mesmas palavras e fatos, ocorrendo, quem sabe, alguma
mudança em torno de uma doença ou dificuldade novas, apenas isso e
nada mais que isso.
Atrás da dona da casa, aparecia a
menina, que, sem coragem de chegar perto daquele homem tão grande,
ficava espiando por detrás da porta, tentando enxergar e decifrar
todos os mistérios da senzala, seus muitos sofrimentos e
pouquíssimas alegrias.
Aos poucos e somente aos poucos é que
entre eles foi acontecendo uma empatia, que se transformou em
amizade, e num futuro seria saudade.
O velho homem descobriu que a menina
gostava demais de plantas e passou a trazer-lhe sementes raras, que
ao invés de serem plantadas, eram guardadas como tesouros, numa
caixinha de sapatos, para não ficarem expostas ao descaso do tempo
ou do próprio esquecimento da criança em cuidar de novas crianças
num jardim de adultos.
E muito tempo se passou.
Não sei se de semana em semana, ou de
mês em mês, mas lá vinha o velho homem, cada vez mais velho,
balançando o corpo num esforço para manter os passos e as visitas, e
apesar disso, ainda deixava transparecer uma noção de infinito e de
para sempre.
Até que um dia, quem veio em seu lugar
foi a filha, para avisar que ele estava morto.
A criança, que já não era tão criança,
sem saber se deveria, mesmo assim tomou a decisão e foi sozinha ao
velório, perfazendo todo o trajeto que antes o homem fizera.
Seus sapatos limpos, aos poucos foram
se cobrindo de terra, a mesma terra que por tantos anos sujara os
pobres sapatos do velho, e a mesma terra que cobriria o corpo do seu
amigo em pouco tempo, por longo tempo, por um tempo eterno.
O dia prometia chuva e a casa era
muito pequena e escura.
No meio da sala, o caixão estava
expondo a carcaça imóvel e fria, e, pela primeira vez, a menina viu
a morte.
Ficou apenas por breves instantes
naquela sala abafada e cheia de gente e odores.
O cheiro da morte e das flores
mostrava a cara tétrica e sobrenatural da vida, e sem compreender
como e porquê as pessoas param de se mexer, de conversar, e de
sorrir, ela foi embora, sentindo medo e uma inexplicável solidão.
A chuva caía, e a terra agora era
lama, fazendo de seus passos uma dança desengonçada e de sua mente,
um amontoado de perguntas que só seriam respondidas alguns anos mais
tarde, quando ela compreendesse finalmente que sementes precisam ser
plantadas e acariciadas, para que possam germinar e florescer.
E mesmo que o tempo seja muito bom, e
que sol e chuva façam um revezamento oportuno, ainda assim existe o
risco da perda.
E, que além da perda, há o desgaste
natural e próprio da vida, que produz a morte.
Presença e ausência, vida e morte.
Dualidade da existência, um sinônimo
de saudade.
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