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Vássia Silveira



 


A mulher, o bimotor e uma cidade desconhecida

 


 

 

Primeiro ela planou, sentiu-se uma andorinha, e até pensou que estava mirando, mas veio a pista, o pouso, a cabeça quase batendo no teto, e as piadas de um possível acidente, ah, as piadas, ela resolveu apagá-las da memória, achou melhor descer as escadas e pisar em terra firme, seguir para o hotel e esquecer os caminhos, e foi isso que fez, deixou que o esquecimento lhe tomasse à mão, subiu e desceu novas escadas, andou pelas calçadas, deslumbrou-se com o vento que roçava o rosto, talvez porque isso lhe fizesse lembrar de algum outro toque, são as armadilhas da memória, ou da saudade, não, não, a saudade só chega quando se está falando de futuro, lembrou-se rapidamente, e seguiu para o encontro consigo mesma, era noite e chovia, as ruas estavam líquidas, misteriosas, lembrou-se de uma imagem antiga, alguma música de Montserrat, com os cabelos molhados seguiu caminhando por lugares desconhecidos, sentiu alguma vontade de chorar, que vinha da alegria de sentir-se livre, porque liberdade é andar sozinha pelas ruas, e ao mesmo tempo, sentir-se preenchida, pensou, é um encontro silencioso, quase mágico, ela achou que seria bom voar, cortar o céu escuro de olhos fechados, jogar-se no despenhadeiro, como Ícaro, não, as asas não derreteriam, não acredita no mesmo sonho, ela procura por uma luz em sua própria escuridão, sabe que não é fácil, mas a chuva, o silêncio, as ruas molhadas, a camisa branca colada no corpo, os sapatos encharcados, tudo lhe faz pensar que é possível descobrir, ela escuta vozes distantes, lembra do cheiro de mar, dos olhos de suas meninas, de um toque, um beijo, um abraço na noite, novamente o vento embaraça os cabelos, é preciso amarrá-los, ela pensa, mas resolve deixá-los soltos, como soltos ela gostaria que estivessem os gestos, os sonhos, os passos, lembrou-se então que já haviam lhe dito que caminhava como se chutasse marolas na praia, marolas na praia, considere isso uma interrogação, é uma imagem leve, fez com que ela pensasse numa borboleta, em uma cobra encantando a presa, ela quis ser cobra e borboleta, porque queria voar com leveza, graça, e também encantar, mais uma vez pensou no futuro, e sorriu, sentiu-se abraçada, enrolada em lençóis nos quais depositava seu perfume, sob olhares que perscrutavam-lhe a alma e os segredos, porque são tão perturbadores os olhos, ela pensou, e antes que lhe viesse à mente a resposta, o relógio soou, era hora de voltar para casa.


 

 

 


 

18/10/2005