Vássia Silveira
Piolhos do tempo
Dia desses resolvi dar uma folga para
o coelho que existe dentro de mim e que insiste em dizer "é tarde, é
tarde, é tarde, é muito tarde"... Não dei comida aos cachorros, não
fiscalizei o trabalho de minha secretária, não esquentei o jantar e
não reclamei das contas a pagar. Troquei as fraldas da pequena Clara
mas não a fiz dormir. Espichei-me na rede e pela primeira vez em
muitas semanas, lembrei de folhear um livro que ganhei recentemente
de um amigo.
O tempo, esse famigerado senhor que a
cada dia nos afasta mais das coisas simples da vida, tem sido meu
maior inimigo. Graças a ele, ou à sua falta, perdi as contas de
quanto tempo faz que não me deleito com o saudável hábito de não
fazer nada. Os defensores da máxima o "ócio é oficina do diabo", que
me perdoem, mas Milan Kundera tinha razão: se quisermos fazer algo,
é preciso ter tempo para não fazer nada.
Lembro-me bem do tempo em que o
relógio ainda não apontava para os meus possíveis atrasos. Os dias,
quase intermináveis, contados numa ótica diferente. São desse
período os meus parcos poemas, algumas tentativas insidiosas pela
aventura da prosa e os livros, muitos livros. A maioria carecendo de
uma releitura mas, cadê tempo para isso?
Talvez por isso recuso-me a usar
relógio. É certo que meu marido, por três anos seguidos, insistiu em
dar-me um novo modelo a cada Natal. No último, para alegria minha e
felicidade da união, desistiu de presentear-me com mimo tão inútil.
Deu-me, se não me falha a memória, Os Sertões, de Euclides da Cunha.
Nada menos que 726 páginas em uma edição crítica de Walnice
Galvão... E para ser honesta, devo dizer que por mais fascinante que
me pareça aos olhos, ainda não consegui tempo para passar da 5ª
página, onde se lê uma singela dedicatória.
Semana passada fui surpreendida pelo
bloqueio do acesso à Internet. E justo quando queria economizar
tempo, fugindo das filas no banco e vendo meu saldo pelo computador!
No final, nada como uma pressão. Arrumei tempo para ir ao meu
provedor, que fica na esquina de minha casa, e pagar a conta.
Fizemos as pazes.
Mas vezes há que não consigo fazer as
pazes comigo mesma. Outro dia, descobri minha filha coçando a
cabeça. Não era o calor que a incomodava, mas algumas dezenas de
piolhos que Deus sabe, há quanto tempo se escondiam nos seus cachos.
Nesse caso, decididamente, não fiz as pazes comigo. Pensei nas
dedicadas mães que sabem deixar de lado suas próprias ambições e
quando põe os pés em casa encontram tempo para cuidar das pequenas e
grandes coisas que se escondem num lar.
E antes que o leitor me acuse de mãe
desnaturada devo dizer que os piolhos não perturbam mais minha
filha, e que o incidente serviu para que todos os dias eu encontre
tempo para olhar seus cabelos. Uma lição que ainda não pude estender
para as cartas não enviadas, os livros não lidos e o Inglês sempre
por aprender. Mas se é verdade que o tempo é o melhor remédio,
talvez ainda encontre algum para pôr em dia tantos itens escritos,
sempre repetidos e nunca cumpridos, da minha lista de fim de ano.
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