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Responsável:
Soares Feitosa Endereço |
Biografia e entrevistas |
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A polêmica se instaura tão logo começamos a leitura
do terceiro volume de poemas de Frederico Barbosa, pois o título,
"Contracorrente", já anuncia a posição aguerrida,
reforçada imediatamente pela orelha, do próprio poeta, e
pelo posfácio, de
"Negatividade" e "áspero inconformismo" são algumas das marcas que Antonio Candido lhe atribui, na contracapa. Todos esses comentários suscitam uma impressão inicial que inclina o leitor a penetrar no livro despertado previamente para uma atitude de disputa ou adesão, dependendo de seu ponto de vista (se é que hoje tais questões ainda carregam um potencial combativo). A diagramação cuidada, em letras capitais destacadas em negrito, visíveis como um cartaz futurista, proclama a vocação para o bramido que vários poemas portam. Desde a dedicatória e a epígrafe, o livro enfatiza o protesto: "EXISTIR! RESISTIR!". O caráter de manifesto aparece já no primeiro, "Poesia e Porrada", que insiste, veemente, no enfrentamento agressivo do tédio e do bom-mocismo correto da poesia contemporânea, que considera parnasiana e comportada. Em vez do versinho de "pé no gesso/ regrado", prefere "chutes feridas/ de pé descalço// Arrisco sem meta/ Ou metro estimado". A força do poema advém da ira e do ressentimento, agora potenciados pela linguagem contundente e rítmica: "Eu/ insulto/ Revolto o gesto.// Solto minha rocha em versos/ Pedras-de-raio". Energia concentrada explode em "I, The Tempest": "VIVER INTEMPESTIVO ESTRONDO RAIO RISCO SEM ENSAIO ARRISCO// VIVOVIVOVIVOVIVO". Será que esse poema de carnadura "verbivocovisual" não afirma, contradizendo-se, que a melhor maneira de exprimir a vitalidade estaria na realização do impulso do instante, "sem ensaio", contra as simetrias formais que ele mesmo realiza? Por que diz expurgar de sua poética os lampejos "intempestivos" dos anos 70, como se os riscos da liberdade fossem necessariamente sinônimos de negligência? Os cortes e assepsias exigidos pela perfeição lúcida e autocrítica podem levar, no extremo, ao mero trocadilho intelecto-sonoro. Labirinto ruinoso Felizmente, tal não ocorre neste livro, que aprofunda os desvãos de uma revolta cavada no pó: a rebeldia inicial reverte num sentimento amargo de quase fim e nada: "Desexistir". Para exprimir o labirinto ruinoso da agoridade, Frederico Barbosa escolhe o olhar incisivo sobre o momento, o que se vê em fresta: cenas rápidas capturadas como fotografia ampliada em que se pode imaginar o que anima os movimentos da moça que passa, da jovem que lê, da garota que o visita... discretas epifanias na intimidade registradas com beleza. Chama a atenção do leitor o trabalho com a palavra, que insiste nos ecos de som e sentido: "São? Somos? Sombras de assombros?". Em "Quando Chove", a cidade de São Paulo, inundada, parece palimpsesto: sobre e sob as ruas, rios correm, alguns invisíveis. Ainda que descrente e esquivo, não escolhe se refugiar só na intimidade ou apelar para a objetividade gravurista, como extremos pontos de fuga: decide resistir na contracorrente, alternando brabeza e doçura para incitar a indignação e a vontade de viver, se comprometendo com o possível: "Raro cantar de amor entre os escombros". Seu poema em homenagem a Cabral, um ponto alto do livro, participa da estética do toureador, que volteia firme e conciso em seu "não" e na morte não se rende. Sabendo de antemão que o sujeito é resquício
que viveu demais e "passara do ponto" em seu anelo de transformação,
propõe, na série "31/12/1999", uma contagem regressiva
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Viviana Bosi é professora de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de "John Ashbery – Um Módulo para o Vento" (Edusp). | |
[Folha de São Paulo,
22.11.2000] |
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Vestígios
de vida na cidade
Em seus poemas,
Sérgio Alcides dá voz ao sentimento do homem urbano de não
pertencer a nenhum lugar
O AR DAS CIDADES
O ar das cidades pode tornar os homens invisíveis, fazê-los sentir-se impalpáveis. O segundo livro de poemas de Sérgio Alcides, carioca residente em São Paulo, divide-se em três partes: ''Suíte'', ''O ar das cidades'' e ''Apartamentos''. Estes nomes não reforçam a concretude própria de espaço, antes, ao contrário, mais acentuam o aspecto vago da humanidade gasosa que habita a cidade como fantasma incorpóreo, manifestando solidão e distância, até em relação a si mesmo. Vários títulos de poemas se ecoam, como na seqüência ''Guardado'', ''Recordação'' e ''Lembrança'', ou ''Vertigo'' e ''Um corpo que cai (em si)'', e mesmo versos se correspondem e se entrelaçam. Assim, os textos parecem células interligadas que indicam a continuidade de um motivo central a se desdobrar: o estranhamento e a busca de si, como alguém que se força para fora do auto-exílio e procura, quiçá, alguma origem remota e incerta - um Kaspar Hauser no meio da praça, sem âncoras, com a memória embaçada pelas rupturas desfiadas do tempo... O eu é representado como espantalho, vodu, clone, presença simulada: ser flutuante, não se pertence depois de haver abandonado o antigo corpo, e se vê em pedaços, análogo à cidade que habita - alienados ambos. O tempo é transitório nas contínuas mutações da paisagem urbana, nos bruscos ruídos mecânicos da rua ou do apartamento ao lado: ''instante que passou vazio''. Mas o sujeito recolhe o mínimo vestígio a fim de reconhecer a própria experiência, ainda que partida e tendendo à ruína. Cada slide-poema tenta apanhar farrapos, troços, estilhaços, para reconstituir um impossível coração em meio às transformações. No passado, algumas imagens sólidas resistem, como as raízes de um oiti rompendo a calçada, e referem-se a ''um sonho feliz de cidade'', tempo vivido de fato, no Rio de Janeiro, menos abstrato do que o agora desenraizado de São Paulo. Os cheiros que impregnam os guardados são como essências que despertam para o reencontro consigo, quase inalcansável em outra pele, nadando em seu aquário interno, abrindo a porta do armário ou a frasqueira de perfume antiga - troncos enterrados - agarrando-se na memória para superar a distância de si, numa ''Volta ao coração'': ''Vem o sangue nadando a montante. Não é o passado que retorna e me percorre o corpo a cada poro: sou eu mesmo presente / ausente que não tenho onde escorar e coro desamarrado no tempo jamais devolvido a mim.'' Mesclam-se inextricáveis o tempo, o espaço e a pessoa, de modo que só poderíamos considerar a busca do tempo perdido como reconstituição do próprio eu, que o poeta compara a uma estátua de cavalo quebrada que deveria ser colada para poder ser cavalgada de novo, mas jaz esfarelada, pó de gesso sujando o ''chão presente'', fluxo que continuamente se desfaz em nuvem e sonho: ''agarrei este nada? Nem isto.'' Sem projeto de vida coeso, sem eu íntegro, sem fio de narrativa, o habitante da metrópole alimenta-se assim mesmo dos cacos do passado, apegando-se a eles, de modo a sobreviver em contínua metamorfose. Desse modo, Sérgio Alcides captou com sensibilidade e imaginação uma disposição anímica característica da vida contemporânea, que se esvai tênue nas grandes cidades. Mesmo a fotografia da capa do livro reflete a temática da deambulação sem aura: a rua larga, de pedra, asfalto e cimento, e pessoas andando na calçada, achatadas quando vistas de cima (da janela do apartamento?) e pequenas em relação às suas sombras que avultam: ''Passageiro do passageiro/pensar que é ronda ainda estar vivo.'' * Viviana Bosi é professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada do curso de Letras da USP e autora de John Ashbery, um módulo para o vento (EDUSP)
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Viviana Bosi é professora de teoria literária na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autora de "John Ashbery – Um Módulo para o Vento" (Edusp). |
[Folha de São Paulo,
22.11.2000] |
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