Vicente Freitas
O homem de cadeira de rodas
A vida é provavelmente redonda.
Vincent van Gogh
A casa do homem de cadeira de rodas
ficava ao lado de um enorme terreno que era usado como campo de
futebol pela molecada da favela próxima. No pequeno quarto da casa
havia um Vincent van Gogh que mais parecia um espelho refletindo o
quarto do homem de cadeira de rodas: uma cadeira, uma porta, uma
toalha pendurada, um pequeno espelho, uma mesa, uma janela
entreaberta, outra cadeira, um cabide, quadros, uma cama, outra
porta. Uma das diferenças estava apenas na segunda cadeira, pois a
que havia lá era de rodas. Alguns dos meninos traziam bolas de meia
para jogar no campo improvisado. Era um tumulto infernal que faziam
o dia inteiro. Mas o homem de cadeira de rodas, abandonado pela
família e pelos amigos, em vez de se perturbar com tamanho barulho,
parecia sentir um grande prazer.
Vezenquando, ele se servia de um par
de muletas e dava uma voltinha no campo empoeirado. Às vezes, apesar
de sua solidão e outros elementos psicológicos ignorados por ele e
os demais, rompia numa bebedeira que se prolongava por toda a
madrugada – vinho, cerveja, conhaque, cachaça: álcool puro.
Por mero acidente, descobrira um
barzinho, nos fundos do terreno baldio. A atmosfera era das mais
acolhedoras. A dona, uma mulata jovem. Belíssima. E o homem de
cadeira de rodas, aparentemente indiferente, precisava de um lugar
para fazer hora à noite. E, a partir daí, todos os dias, ao cair da
tarde, de muletas ou de cadeira de rodas, o homem se dirigia pro
barzinho.
Lá embaixo (os tetos irregulares das
casas) a cidade negra se estendia – cheia de luares – com suas putas,
travestis, maconheiros, trabalhadores, desempregados, gente de bem e
sua (des)organização geométrica. A ordem e o caos. Um Antônio
Bandeira, possivelmente. E o homem de cadeira de rodas, quase sempre
assobiando “O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor”,
chegava, olhava como se olhasse num espelho e, em seguida, se
recolhia. Mesmo calmo, sentia-se um pouco assustado com aquela
abstração. E assim ele prosseguia em seu anonimato.
* * *
Ninguém suspeitou do homem de cadeira
de rodas. Mas o homem de cadeira de rodas e, às vezes, de muletas,
com sua generosidade, seu orgulho, sua superstição, seu preconceito,
sua experiência, seu cachimbo e sumidura, era apenas um detetive. E
achava também que a vida era possivelmente redonda.
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