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Vera Lúcia Albuquerque de Moraes




Letras de saudade e amor


[in Jornal OPOVO, 07.06.2005]




José de Alencar: esforço de conferir identidade à nação que acabará de conquistar a independência

 

Os romances O Guarani e Iracema fundaram o romance nacional. Importa ver como a figura do índio modelou-se em um regime de combinação com a franca apologia do colonizador. Essa conciliação, dada como espontânea em Alencar, viola abertamente a história da ocupação portuguesa, principalmente no primeiro século, levando Alfredo Bosi a considerá-la ''pesadamente ideológica'' como interpretação do processo colonial, embora divise, no projeto utópico de José de Alencar, uma linguagem narrativa que se transfigura, deixando-se embalar pela tecla da poesia.

Machado de Assis, em crônica que escreveu no ano de 1866, emite preciosa avaliação sobre o livro Iracema: ''O livro do Sr. José de Alencar, que é um poema em prosa, não é destinado a cantar lutas heróicas, nem cabos de guerra; se há aí algum episódio, nesse sentido, se alguma vez troa nos vales do Ceará o poema da guerra, nem por isso o livro deixa de ser exclusivamente votado à história tocante de uma virgem indiana, dos seus amores e dos seus sofrimentos''.

Roberto Schwarz, no ensaio ''A importação do romance e suas contradições em Alencar'', considera que a obra desse escritor é uma das minas da Literatura Brasileira e, embora não pareça, tem continuidades no Modernismo. De Iracema, alguma coisa veio até Macunaíma: as andanças que entrelaçam as aventuras, o corpo geográfico do país, a matéria mitológica, a toponímia índia e a História branca; nossa iconografia imaginária das mocinhas, dos índios e das florestas deve aos seus livros muito da sua fixação social. Schwarz conclui, afirmando que, de modo geral, a desenvoltura inventiva e brasileirizante da prosa alencariana ainda hoje é capaz de inspirar grandes obras.

Sânzio de Azevedo, no prefácio que elaborou para a reprodução fac-similar da primeira edição (1865) do romance Iracema, tece a seguinte reflexão: ''O certo é que o escritor tudo fez, sabiamente, para dar à sua história foros de lenda, e com tanta arte o fez que a virgem dos lábios de mel, se não era um mito antes da aparição do romance-poema, tornou-se mito e hoje a idéia que temos é a de que ela existe mais do que se houvera realmente vivido''.

Angela Gutiérrez, na apresentação do romance Iracema publicado pela Editora ABC, comenta: ''Tantas e tão freqüentes são as referências a esse romance em nosso dia a dia que, por seu acúmulo, podem até passar despercebidas. Surgem, no entanto, em nomes de pessoas (Iracema, Caubi, Poti, Araquém, Irapuã, Jacaúna); em nomes de entidades (TV Verdes Mares, Rádio Iracema), em nomes de lugares (Praia de Iracema); em nomes de casas comerciais (Pontal de Iracema, Casa Iracema); em expressões do falar coloquial ('mais rápida que a ema selvagem', 'mais negros que a asa da graúna', 'virgem dos lábios de mel', 'cabana de Araquém', 'tudo passa sobre a terra')''.

Iracema é um livro de saudade e de amor à terra natal, escrito por um filho ausente, exilado de suas reminiscências da infância, quando ''os meninos brincavam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses, que figuram a boiada''. Alencar acrescenta: ''Era assim que eu brincava, há quantos anos, em outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável, manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme do buriti para refrigerar o esposo, que há pouco recolheu de sua excursão pelo sítio, e agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede''. Mais adiante, o escritor reafirma: ''O livro é cearense. Foi imaginado aí, na limpidez desse céu de cristalino azul, e depois vazado no coração cheio das recordações vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na varanda da casa rústica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da rede, entre os murmúrios do vento que crepita na areia, ou farfalha nas palmas dos coqueiros''.

Iracema, expressão de um dos maiores escritores brasileiros, chega à marca dos 140 anos de sua primeira publicação. O romance, um dos mais populares de Alencar, foi escrito com a intenção de abrasileirar a nossa literatura e conferir identidade à nação pós-independente. A narrativa combina o encontro do colonizador português com os nativos da terra, e do guerreiro português, Martim, com a musa indígena Iracema. Para o Ceará de hoje, representa bem mais que um livro: é um ícone que perpassa os anos e se firma como uma marca de nosso povo, de nossa terra e de nossa cultura.


Vera Lúcia Albuquerque de Moraes é vice-coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras (UFC) e doutora em Sociologia (UFC) com tese sobre a obra de José de Alencar.


CRONOLOGIA:

1829, 1º de maio - nasce José Martiniano de Alencar, em Messejana.
1830 - ano da migração para o Rio de Janeiro, com a família.
1846 - já em São Paulo, ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Forma-se em 1850.
1854 - inicia, no Rio de Janeiro, a vida como jornalista (pelo Correio Mercantil).
1856 - estréia, na ficção, com o romance Cinco Minutos. Por essa época, é redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro.
1857 - ano de O Guarani (que nasceu em folhetins).
1861 - é eleito deputado. A carreira política prossegue até 1870, quando abandona a política magoado com Pedro II que vetara seu nome para Ministro da Justiça.
1877, 12 de dezembro - data da morte. Alencar é vítima da tuberculose.
 



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04/07/2005