Walmir Ayala

POEMAS INÉDITOS EM LIVRO
[Uma recolha realizada por André Seffrin]
 
 
 
        LICOR

        Dulcíssimas cerejas
        no ritual de outubro.
        Se eu te mordesse os cílios
        e gemesses de espanto
        eu diria que o amor
        é uma invenção do sonho,
        que o corpo com que exerço
        esta dança secreta
        não tem definição
        mas é garça e poeira,
        lasca de unha, mancha
        de sangue num lençol.

        Riríamos do amor
        de tal forma alumbrados
        que o sonho passaria
        e eu veria a verdade
        que paira quando tudo
        é prazer triturado.

        Prazer? Eu sondaria
        milímetros de nervos
        e pesaria os gestos
        as mínimas torções
        concluindo com o nada
        de uma nuvem traçada
        numa folha vadia.
        (Nem sequer uma nuvem
        distante e verdadeira.)

        Se quisesses me ouvir
        eu contaria a história
        de uma imagem que quis
        roubar do que é real
        uma gota de mel.

        Diria que este furto
        sem dimensão exata
        seria toda a glória
        desta imagem sem voz.
        Se quisesses me ouvir
        eu te prometeria
        logo após dispensar
        levando a minha história.

        E eu te desejaria
        o porto da loucura
        para que só falasses
        desta opaca memória.

        Dulcíssimas cerejas.
        Outubro, a névoa, nada
        reconstrói o perdido
        quando é mito refeito
        de improvável delícia.

        Dulcíssimas cerejas,
        imponderável gesto
        suspenso entre o remorso
        e a frustrada carícia.

Walmir Ayala, 3-10-1990. 



      JAPÃO 

      O outono e o príncipe herdeiro 
      movem um pincel de ar 
      e avermelham 
      as árvores 
      da porta do sol. 

      Silêncio e ausência penteiam a grama, 
      houvera ali um canto anunciador. 
      O jardim é um leque de ouro 
      ou cauda 
      de pássaro esponsal. 
      Os deuses invisíveis tangem 
      rebanhos de lã. 
                               O outono 
      é menos que um murmúrio. 

 

Walmir Ayala, 4-10-1990 
 

        Deus é o Incriado
        é o tudo e o nada
        o presente e o ausente
        o respirado
        e o expirado,
        é a primeira imagem
        e a última imagem
        tocando-se num tempo
        sem tempo; 
        é anterior 
        a todas as imagens,
        é o que não teve espelho
        é o que não se vestiu
        e se vestiu de tudo
        de água de ar de pó,
        é o que manipulou
        o pó e a brasa ardendo
        ciclo perfeito, o anel.

        É o brilho, a matéria
        o símbolo do anel
        é o invisível dedo
        da aliança, o espírito
        do vinho, violeta
        violáceo rá.

        Deus é o que há
        sem ter sido, no entanto
        inacabado sendo
        o que não evolui,
        é o santo
        o címbalo
        o fumo
        o absinto
        o abismo
        o projeto
        do amor
        mais que perfeito.
        É o último 
        teto
        do inimaginável. 
        É a algema,
        a asa livre:
        é a Imagem.
         

        Apago a luz e penso:
        mais uma vez apago a luz,
        e respiro para me sentir respirando
        com cautela e pasmo.

        Hoje vi retratos de meus mortos,
        sorriem em praças e paisagens
        inatuais.

        E eu aqui, ainda vivo,
        como? por que? até quando?
        Cada trilha me inspira
        a despedida,
        e eu me vejo ao lado dos mortos
        e eles não me vêem
        na névoa dos retratos.

        Quem me esqueceu neste lado?

 

WALMIR AYALA, Rio, 30-11-90.
 

      Um dia ele inventou o Bem Supremo: 
      um castelo numa cidade santa e povoada 
      de tempestades, raios e sinais 
      da Grande Noite. 

      Nessa cidade o Bem Supremo transitava 
      com seus exércitos e magos 
      com seu zoológico de feras e pastores, 
      seus bailarinos, padeiros e cristais. 

      De tudo ele era o poeta, o oficiante, 
      o subjugado, 
      o arauto. 

                    O coração da Grande Noite 
      foi seu último refúgio. 

 
 

WALMIR AYALA, Saquarema/RJ, 24-11-90. 
 
 

 
 
      Viver, um breve espanto, uma alegria 
      instantânea, uma centelha, um átimo, 
      viver, estar vivendo, nem trincar 
      o rubi da romã e já não ter 
      noção da fruta, perceber 
      no rosto a brisa e ao gesto 
      de tentar reter a pétala, perder 
      a flor, viver, viver? crispada 
      a pele o gelo da parada 
      do coração, perder 
      a brecha da visão, e o gozo 
      tênue, perceber 
      o invisível tremor como lamento 
      de um sonho em fuga, desprender, 
      viver e desprender-se, e escorregar 
      nas paredes do poço unhas, gemido, 
      terror da escura e demorada morte. Ah, 
      disse teu nome ó inominada, disse 
      e pousas na minha pálpebra o veludo 
      da tua eterna voz, supensa 
      nas proas naufragadas, nas escuras 
      virgindades dos bosques, morte, 
      ardil de seda no morango aceso, 
      atrás do reposteiro vigilante, espiã 
      de segredos, torturada 
      deusa do rito excuso. Morte, 
      eu te nomeio como o tanger 
      de uma unha pelo som de uma corda 
      tensa, eu te nomeio 
      perdendo o sopro, andante do afogado 
      que se integrou no mar. Eternidade. 
 

WALMIR AYALA, Rio, 20-08-90. 
 
 

    BALADA 

    Toquei a fronte da morte. Era fria. 
    Tinha os lábios desenhados de ironia. 
    O olhar retinha uma estrela 
    que luzia. 
    O olhar da morte, entre pálpebras, 
    quase fechava - era dia - 
    a morte toda de noite se vestia. 

    Vi as flores da morte, um jardim 
    que fenecia. 
    Tentei respirar a morte, anoitecia. 
    Pouco a pouco andamos perto 
                                                    a morte e eu, 
    me comprazia 
    em sentir seu vestido que uma aranha 
    infinitamente serzia. Era mendiga, a morte 
    e lentamente se despia. Nua, 
    a moldura do olhar me consumia, 
    e invisível deixava-me à mercê 
    do que morria. 
    E já não era então, a morte, a fantasia 
    da minha dor, nem intérprete ou cicerone. 
    Varria 
              aos meus pés a poeira de onde vim 
    e para onde ia. 

    O Campo-Santo era uma pátria sem valia. 

 

WALMIR AYALA, Rio, 20-09-90. 
 

    Meus amigos, meus conhecidos, meus afetos e desafetos, 
    meus leitores e detratores, ouçam e atendam: 
    quando chegar a hora do meu último repouso, 
    busquem meu corpo onde ele estiver, 
    na poeira do Rio ou na neve gaúcha, 
    nalgum Japão antípoda, ou aqui mesmo, 
    na rua Dr. Luiz Januário, uma rua que 
    possivelmente já tenha perdido os belos paralelepípedos 
    em nome do duvidoso progresso. 

    Busquem meu corpo de carro ou rabecão, de carrinho de mão 
    ou num simples lençol usado, 
    e depositem ali, atrás da Igreja da mãe de Nazaré, 
    naquela terra que o mato insiste em invadir, 
    e onde não há sinal de diferença de classe ou de sonho, 
    tão singelas são as lápides. 

    Deitem-me ali, com toda memória possível que tenham de mim, 
    lembrem e inventem sobre a minha vida, mas deixem-me ali. 

    Quero enfrentar a vida eterna com prazer, 
    o vento e o azul do céu fazendo um toldo móvel sobre o meu leito. 

    Eu e o silêncio 
    ouvindo eternamente o mar. 

 

WALMIR AYALA 
Rio, 11-08-1990.

 
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