Whisner Fraga
O tempo avelhado
A viabilidade da literatura depende
da honestidade de quem a faz. Isso implica dizer que um escritor só
pode ser reconhecido além dos círculos literários e críticos
voltados para os próprios umbigos e morais, se não fizer concessões.
Mesmo que para isso tenha que pagar o preço do ostracismo, ou seja,
sinônimo de fracasso junto ao senso comum. Falta respeito à
literatura nas rodinhas dos grandes escritores brasileiros
contemporâneos, ocupados demais com a administração de suas vaidades
tão fugazes quanto (espera-se) suas obras.
Emanuel Medeiros Vieira é um que
jamais arredou o pé do caminho que pensa ser o melhor para sua
trajetória literária e que certamente o é porque em mais de três
décadas de atividade erigiu uma obra que resistiu aos mais
minuciosos e exigentes juízos críticos. Não pensem com isso se
tratar de um escritor inflexível, ele apenas sabe fugir dos modismos
e seguir a sua rota, sem cair no canto de sereia das facilidades
literárias e na troca de favores entre editores e a redação de
jornais.
Chega-me em casa o novo livro de
Emanuel, Os Hippies Envelhecidos, e antes de saber que havia sido
eleito o melhor livro do ano pela Academia Catarinense de Letras, já
tenho a convicção de ter nas mãos uma obra densa, que ficará, a
despeito de toda onda que viceja hoje na crítica de ocasião. Nela,
Emanuel beira os extremos do memorialismo, relatando os últimos dias
de Franz Kafka no conto O cabalista tardio. Mas o faz com tamanho
domínio que em vez de enfadar, nos transporta com sensibilidade a um
enredo que acaba por ser impossível de ser desvencilhado daquele que
levou o autor de A metamorfose a uma morte inevitável.
Através do prefácio de Ronaldo
Cagiano, que leio somente depois de terminada a leitura das
narrativas, fico sabendo que o livro tem dez contos. É também ali
que encontro uma citação de Paul Auster, que vem ao auxílio de minha
teoria: "Um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao
fundo, ao céu, ao inferno, doa a quem doer”. Mesmo que o atingido
seja o próprio autor? Creio que sim.
Há n'Os Hippies Evelhecidos muitos
personagens escritores e portanto, leitores, o que justifica a
intromissão necessária de Manuel Bandeira em um conto, de Ruy
Espinheira Filho em outro e mesmo de Machado de Assis o tempo todo.
Percebendo suas palavras encurtadas pelo seu próprio limite de
símbolos, Emanuel recorre à música, trazendo para suas páginas a
melodia de Beethoven e Carlos Gomes, porque é assim que os contos
devem ser degustados, como quem passeia pelas tragédias e êxitos de
uma sinfonia sagrada, mas calcada na realidade.
O conto que para mim foi mais bem
construído e por pura coincidência é o que tem menos citações, é o
Blue Eyes, história da loira que se desconfia oxigenada, linda
entretanto, que não consegue conter o motim impregnado na sua
vidinha corrida, nos seus trinta anos tumultuados, e por isso
resolve se matar num hotelzinho em Pirapora, olhando o rio mágico
que Gabriel, o escritor, jamais compreenderá.
Os escritores brasileiros, ao
contrário do que se anuncia por aí, cada vez mais se lambuzam com a
realidade, mas enquanto uns tiram o corpo fora da denúncia,
aproveitando somente da condição humana para chocar o leitor,
outros, como é o caso de Vieira, se servem dela para construir uma
história sem maiores interesses que o de contar e sensibilizar.
Trata-se de um escritor que precisa
ser resgatado e de um livro tão magnífico que ainda é impossível
abarcar com a limitação de nossas sensibilidades e raciocínios
desajeitados a amplitude de seu lirismo.
* Whisner Fraga é escritor, autor de Coreografia
dos Danados (Edições Galo Branco, 2002).
Leia Emanuel Medeiros Vieira
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