William Lial
Inacabável fazenda de animais
30.06.2003
Comemoramos este ano
o centenário de George Orwell, autor de obras magníficas como: 1984
e Revolução dos Bichos. Esta última, uma crítica acirrada ao
autoritarismo, ao obscurantismo e ao imperialismo soviético.
Rememorando
Revolução dos Bichos e comparando ao nosso hoje, podemos nos
questionar: o que há com a humanidade? Já tivemos Roma, já tivemos a
França, a Alemanha, a Rússia, e como se não bastasse, ainda nos
aparece hoje mais um a arvorar-se poderes de um Deus? Será que a
luxúria e a sede por poder são doenças genéticas?
O obscurantismo e o
imperialismo, que por diversas vezes a Europa viveu sob suas
próprias nações, vivemos hoje, mas sob a bandeira de uma nação
não-européia. O mundo ainda vive sucessões de déspotas, como algo
intrinsecamente ligado à natureza humana. Vivemos numa fazenda
mundial, somos os porcos dominados por aquele que se veste de
patrono do bem para nos ludibriar enquanto nos domina. A fazenda de
animais ainda existe, só que agora espalhada por todo o mundo.
A tecnologia avança,
cresce, o mundo muda, globaliza-se para o bem e para o mal, mas a
sede de reinar sob outros é a mesma. O totalitarismo ignóbil e a
vaidade continuam a cercar a política social no mundo, o
imperialismo ainda está aí, bem perto, bem acima de nós, onde ele
sempre quis estar: acima de nós. Poucos porcos daquele passado
sobreviveram, mas outros nasceram: nós, seus herdeiros de mazelas e
desventuras; o gado tangido para onde o chicote fustiga.
Quando leio autores
como Orwell, lembro-me que vez por outra, alguém me pergunta qual a
utilidade da Literatura, o que pode ganhar ao ler uma ficção; e eu
respondo: leia Kafka, Saramago, Graciliano Ramos, Machado de Assis
ou George Orwell, compare com seu mundo e depois veja se ainda me
deve fazer essa pergunta.
O ontem já passou
Ah, o passado. Não
poderia ser mais passado do que é. Nosso hoje é tão diferente do
ontem que só restou ao ontem ser passado. Claro que não poderia
deixar de ser, mas não precisava ser tanto assim.
Lembro-me de um tempo em que eu caminhava pelas ruas, já tarde da
noite, voltando para casa, sem temer qualquer perigo, sem, se quer,
lembrar da possibilidade de haver qualquer um, tão remoto me parecia
ser perseguido por qualquer assaltante ou agressor de adolescentes
farristas. Bons tempos que foram e não deverão voltar mais.
Recordo-me também de conversar com os amigos até altas horas, nas
ruas ou no portão, sem a necessidade de olhar para as esquinas,
prevendo o surgimento de algum assaltante. Diferente de hoje quando
não só as esquinas nos são perigosas, mas todos os lugares, todos os
momentos.
Antes o que limitava nossa diversão, nosso prazer, eram nossos pais,
nossos escrúpulos ou nosso pudor. Agora nossos pais são liberais,
nossos escrúpulos são menores e o nosso pudor diminuiu. Porém outra
coisa surgiu para nos limitar: a violência. Ela nos regra,
conserva-nos sob a sua força, dizendo o que devemos ou não, o que
podemos ou não fazer; ela, nossa companheira indigesta de todos os
momentos. Melhor seria ainda termos os nossos pais nos limitando os
prazeres; melhor seria nos guiarmos por nossos escrúpulos, nosso
pudor e nunca pelo desejo de um outro, contrário a toda a liberdade
de ir e vir, que é nosso direito, direito, nesse momento, impossível
de ser realizado.
Vendo o que vejo, sentindo o que sinto, só me resta despedir-me dos
dias de ontem, guardá-los na memória e dizer: adeus passado, adeus!
(Vedes Mares, 29.06.2004; O Povo – Opinião, 31. 06.
2004; O Povo -Jornal do Leitor, 02.08.2004)
O povo ainda chora
06.09.2004
Estive pensando nos
dias cinzentos. Os dias de hoje se encontram cinzentos. As pessoas
parecem cinzentas, caminhando pelas ruas como se não caminhassem. Os
olhos, quando miram ao longe, parecem não ver, ou ver e não enxergar
o que de ordinário lhes perece ao redor. Alguém cegou nosso povo.
Hoje, a barbárie é
vulgar. Em algum bueiro escuro ficou a capacidade de se indignar.
Chacinas causam discussões bem humoradas, estupros produzem piadas
de humor negro, e as péssimas ações políticas passam como um fio de
linha voando entre o engarrafamento.
Contudo, nem tudo
está perdido. Na realidade nosso povo ainda chora, ainda se emociona
diante à TV. Sensíveis, choram copiosamente com dó da moça, aquela
da inverossímil novela das oito, a reles milionária, com seu sotaque
da Bahia, apesar de ter nascido e vivido no Recife, que reencontrou
sua irmã ainda jovem como uma senhora de trinta e cinco anos, apesar
de ter desaparecido há cinqüenta anos atrás, entre os canaviais do
nordeste; mas que foi amparada por uma família de lavradores donos
de uma casa de dois andares, com três TVs e uma caminhonete seminova.
Os anos a conservaram jovem graças à crença que possuía em retornar
aos braços da irmã, agora ali, na sua frente, rica, entretanto
sofrida por sua perda, sofrimento que, para aturar, precisou namorar
metade do Rio de Janeiro, a pobrezinha.
Como disse, nem tudo
está perdido. Ainda há esperança, só precisamos começar a transmitir
as atrocidades do mundo em linguagem mais dramática. Os jornalistas
precisam de aulas de dramatização. Como podem continuar a narrar
crimes dessa forma?! Como alguém pode se emocionar com algum crime,
se estes são transmitidos da forma mais insossa e sem sal que já
vimos?! Ora, sejamos sensatos, nossas atrocidades andam muito pouco
criativas.
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