Wilson Martins


A teoria e a prática do soneto


O exercício do poema de forma fixa teve significados diferentes para os modernistas e a Geração de 45.

Se um soneto sem defeitos vale por si só um longo poema (Boileau dixit), deve-se compreender que a idéia central está na cláusula excludente, não na comparação pura e simples: poema de forma fixa, o soneto, sob pena de se desfigurar como soneto, só se pode equiparar em qualidade às outras composições e não apresentar nenhum defeito segundo as suas próprias especificações técnicas. Forma fixa, mas não rígida, como pretendem os espíritos simplistas e simplificadores que o encaram como inimigo pessoal. Todos os poemas de forma fixa são parnasianos, no sentido de que se fundam na disciplina intelectual e na intransigência do rigor: como dizia Théodore de Bainville no tratado clássico da matéria, não há liberdades poéticas.

Às dificuldades genéricas, o soneto acrescenta a brevidade (de ordem material) e a organicidade, de ordem espiritual, porque não se trata apenas de escrever 14 versos distribuídos em dois quartetos e dois tercetos para obter o soneto: é preciso que as estrofes obedeçam a uma coerência de concepção e pensamento (da qual a tão malsinada "chave de ouro" é a conclusão de um silogismo). Claro, Petrarca propôs-lhe o modelo paradigmático e por ele se guiaram os puristas posteriores, mas, com o correr dos tempos, a perfeição originária acabou por parecer monótona, como sempre acontece, e o esquema canônico passou a aceitar modificações de estrutura. Mesmo parnasianos acima de qualquer suspeita, como Olavo Bilac e Guimarães Passos ("Tratado de versificação", 1905), admitiam variações mais ou menos comparáveis às variações das igrejas protestantes de que falava Bossuet.

Alguns autores datam do século XIII a criação do soneto, com o trovador Girard de Bourneuil (morto em 1278), passando da França para a Itália, e, de torna viagem, da Itália para a França desde o século XVI. Sobre o tema, e a propósito dessa data na história de nossa poesia que é a tradução da "Lírica" de Dante por Jorge Wanderley (Rio: Topbooks, 1996), Guilherme Figueiredo escreveu dois artigos brilhantes em que se identificou a presença do soneto com a sensibilidade humana e o sentimento poético ("A invenção do soneto" e "Ainda a invenção do soneto". O GLOBO, 15 e 22/8/1996). Nesse contexto, não fica mal lembrar o livro dedicado por Melo Nóbrega ao mais célebre de todos, estudo de erudição e empatia poética a que sempre vale a pena voltar ("O soneto de Arvers", 2 ed., 1957) - página pungente, lembra Guilherme Figueiredo, em que Félix Arvers "se lamenta de que a fidelidade da mulher do próximo a impossibilitava de compreender sua declaração de amor".

Os historiadores da literatura já lhe desvendaram a identidade civil, mas os leitores de poesia preferem viver para sempre no mistério, repetido, de geração em geração e de poeta para poeta, com relação às mulheres que não se reconhecem em outras tantas histórias de amor impossível. Melo Nóbrega passou em revista as incontáveis traduções e até paródias desrespeitosas que fazem do soneto de Arvers um mito literário (em que muitos espíritos azedos já descobriram incontáveis defeitos...).

O soneto "italiano", que se transformou em soneto "inglês" pelo prestígio de Shakespeare, "italiano" continuou para o resto do mundo e pelos tempos afora. É o soneto clássico, petrarquiano e camoniano, escrevia Olavo Bilac, "em versos decassílabos ou heróicos. Mas, nunca houve regras fixas para a colocação das rimas dos quartetos e tercetos, se bem que a colocação mais geralmente seguida tenha sido (...) o primeiro verso com o quarto, o quinto e oitavo; o segundo com o terceiro, o sexto e o sétimo; o nono com o undécimo e com o penúltimo; o décimo com o duodécimo e com o último".

Boileau mostrava-se sensível à musicalidade das rimas, referindo-se aos sons que surgiam e se respondiam em diversos momentos da estrutura rítmica, dando a pensar que o verso chamado branco já é uma descaracterização da natureza profunda. Há outras variações, reconhecia Bilac, como, por exemplo, a inversão das estrofes ou sua consolidação num bloco único, com ou sem o dístico final dos ingleses. O soneto, na sua enigmática perfeição e aparente facilidade, continua a ser uma tentação permanente, não só em poetas como Alphonsus de Guimaraens Filho, que com ele se identificou ("Todos os sonetos". Rio: Galo Branco, 1996), mas também nos que praticam com mais regularidade e maior espontaneidade a poesia "moderna", isto é, o verso livre em todas as sua modalidades: Antônio Brasileiro e Ruy Espinheira Filho, cada um com a sua "Antologia poética" e ambos editados em 1996 pela Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, em coedição com a Copene, Petroquímica do Nordeste S.A.).

Os dois últimos são "modernos" no sentido genérico da palavra, posteriores ao esteticismo da Geração de 45 a que, pelo menos cronologicamente, pertence Alphonsus de Guimaraens Filho. O Modernismo realista e regionalista, repudiado pelos poetas de 45, retorna com Ruy Espinheira Filho e Antônio Brasileiro, para nada dizer do caçador solitário que se chama João Cabral - e o simbolismo psicológico a que os modernistas eram estranhos prolonga-se marginalmente na obra de Alphonsus de Guimaraens Filho.

Nesse contexto, a prática do soneto tem significações diferentes: é um exercício espiritual neste último, e um exercício artesanal nos outros dois. Mas todos se identificam pela presença de dois valores a que os modernistas e o quarentacinqüistas se mostravam indiferentes: o Tempo e a Morte, os primeiros porque identificados com a permanência ilusória do presente, e os segundos pela perpetuidade livresca do passado abstrato.

Assim, o que varia são as prospecções que soubermos aplicar na leitura de uns e de outros.



(in O Globo, caderno Prosa & Verso, 04.01.97)


  • Leia João Cabral de Melo Neto
  • Leia Antônio Brasileiro
  • Leia Ruy Espinheira Filho

    * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * *