Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa e Verso, 11.01.97


Igreja e escola na letra de Cecília Meireles

 


‘A farpa na lira’, de Valéria Lamego, mostra o lado combativo da poeta, que tinha uma coluna no ‘Diário de Notícias’
 

Sabia-se que, nos anos 30, Cecília Meireles mantivera no "Diário de Notícias", do Rio, uma seção regular dedicada a assuntos educacionais, mas, salvo engano, Valéria Lamego é a primeira a recuperar essas páginas esquecidas, para o estudo sistemático, no contexto de uma conjuntura política mais complexa e contraditória do que a têm feito os historiadores convencionais ou tendenciosos ("A farpa na lira - Cecília Meireles na revolução de 30". Rio: Record, 1996).

Eram os anos em que grupos conservadores, nomeadamente os católicos, tendo se oposto à Revolução, recuperavam-se da derrota e organizavam-se para neutralizar o tropismo esquerdizante que a havia provocado. Daí, naturalmente, a fundação da Liga Eleitoral Católica, e a luta, afinal vitoriosa, pelo predomínio ideológico na Constituinte de 1934, tudo sob o comando do prestigioso Alceu Amoroso Lima. No que se refere à educação, as forças se polarizaram no grande debate sobre o ensino religioso nas escolas, assim como se haveriam de polarizar, na década de 50/60, em torno da Lei de Diretrizes e Bases - num caso e noutro com a derrota da escola pública e do ensino leigo, o mesmo acontecendo com a nova lei de 1996.

Nas palavras de Valéria Lamego, "a disputa em torno da educação configurou três grupos distintos no movimento político: os estrategistas mineiros, representados por Francisco Campos, a Igreja Católica e o grupo da Escola Nova." Na verdade, havia apenas dois grupos: adversário ideológico da Escola Nova, Francisco Campos estava identificado com os interesses e o programa da Igreja, embora Alceu Amoroso Lima o denunciasse como comunista por haver introduzido a Sociologia no currículo universitário.

Em 1931, o decreto de sua autoria, instituindo o ensino religioso nas escolas, com aplausos dos meios católicos, "caiu como uma verdadeira bomba no campo de aspirações liberais dos escola-novistas" Mas, como ficou dito, eram apenas dois os grupos envolvidos na "batalha ideológica", como a denomina Valéria Lamego: nesse aspecto restrito, não era nem mesmo ideológica, mas de tática imediata.

Assim como a Igreja procurava reconquistar o terreno perdido em 1891 com o laicismo da constituição republicana, o governo provisório de 1930 pretendia obter o apoio do grande eleitorado que ela representava.

De fato, tudo se encaminhava para a constituinte prevista pelo decreto que implantara o governo provisório; o Código Eleitoral, com o voto feminino, foi promulgado em 1932, marcando para 3 de maio do ano seguinte as eleições para a Assembléia Nacional Constituinte. Ocorrendo a revolução paulista de 1932, as eleições só se realizariam em julho de 1933. Cecília Meireles reconhecia que o "decretozinho do ensino religioso" fora baixado "para agradar a alguns curas e atrair algumas ovelhas." Esse artigo, assinala Valéria Lamego, "inaugura a luta de Cecília Meireles contra as estratégias da Igreja Católica, aliada aos revolucionários, pela mobilização nacional.

Afastada do poder público desde a proclamação da República que, influenciada pelo positivismo e pela maçonaria, decreta o Brasil um país leigo, a Igreja Católica vê na Revolução de Outubro um meio de emergir da obscuridade política imposta pelo regime republicano".

Nos começos do século, o padre Júlio Maria procurou reconciliar a Primeira República com os católicos, que até então se mantinham refratários por nostalgias monárquicas da religião de Estado: já era possível ser católico e republicano, dizia ele em substância. Na década de 30, a Igreja viu a oportunidade de investir Alceu Amoroso Lima como diretor de consciência da Segunda República, papel de que se vangloriava sem rebuços em carta de 1935 a Xavier Marques: "Agradeço-lhe também as palavras sobre as emendas religiosas (na Constituinte). Obra exclusiva da Providência divina, posso dizê-lo "de cadeira" pois há três, digo,quatro anos que acompanho dia a dia a marcha das nossas reivindicações dos meandros escusos, confusos e obtusos da "política" nacional! Triunfarem assim todos elas, num meio como esse, sem quebra da dignidade ou dos princípios, só mesmo o milagre cotidiano da Providência divina. Saibamos defender agora o que foi tão laboriosamente arrancado ao agnosticismo e à hostilidade ambiente".

Em 1929, convertido recente sob a poderosa influência de Jackson de Figueiredo, figura antonomástica do pensamento reacionário, ele votara contra Cecília Meireles num concurso da Escola Normal, no que desde logo se manifestava forte incompatibilidade de espírito, pois a tese era "um trabalho francamente liberal", diz Valéria Lamego. No manifesto da Escola Nova ele viu a "ameaça comunista" contra a qual alertava o país: "Já temos a nossa NEP! Não se trata, porém, da Nova Política Econômica de Lenin. Trata-se da nova política educacional (...). O materialismo pedagógico, em que assenta essa concepção da NEP brasileira, se manifesta na finalidade exclusivamente ‘biológica’ da educação, pela qual julgam nossos ‘pioneiros’ realizar o trabalho, a solidariedade social e a cooperação... grandes valores permanentes que elevam a alma, enobrecem o coração e fortificam a vontade (...)."

Em alguns aspectos, Valéria Lamego revela insuficiente familiaridade com o contexto da época: assim, quando louva Cecília Meireles pelo destemor com que enfrentava Francisco Campos e Getúlio Vargas. Ela não os "enfrentava": apenas tomava partido, ao lado de muitos outros, na discussão aberta sobre um tópico específico. Da mesma forma, supor que então ainda vigorava a Constituição de 1891 corresponde a desconhecer as estruturas políticas e jurídicas implantadas pela Revolução: o ato que instituiu o governo provisório tinha natureza constitucional, "oriunda de um poder de fato". Palavras que Francisco Campos repetiu, em 1964, como um eco revigorado das ideologias juvenis, ao decretar o Ato Institucional nº 1.

 




Leia a obra de Cecília Meireles

 

 

 

 

09/08/2005