Wilson Martins
Prosa & Verso, O Globo
A literatura no limiar de
um universo retórico
É modelar e até monumental a edição
Ivan Teixeira das Obras poéticas de Basílio da Gama (São Paulo:
Edusp, 1996), tanto no que se refere aos preceitos da ecdótica
quanto ao enquadramento historiográfico e crítico dos poemas. É
certo que introduz um elemento de anacronismo social e político ao
apresentá-lo como patriota brasileiro preocupado com os direitos
humanos dos indígenas, coisa de que o poeta, como todos os seus
contemporâneos, não tinha, nem poderia ter, a menor consciência, da
mesma forma por que escamoteia tanto quanto possível (e era pouco)
as verdadeiras razões do pombalismo que o levou, antes de mais nada,
a ser o Homero embrionário de uma guerra obscura.
Tudo foi dito por Capistrano de Abreu
quando o caracterizou como "um poeta de mais talento que brio",
embora esteja longe de ser "deplorável" a campanha por ele celebrada
e celebrizada num poema que tampouco pode ser qualificado de épico
(se quisermos manter um saudável rigor na terminologia literária).
Impunha-se, no caso, cumprir tratados internacioanis sobre questões
de território e fronteiras, tão graves que se prolongaram até aos
nossos dias. Basílio da Gama não louvou o "massacre dos índios
americanos", antes o deplora, sem por isso lhe contestar nem por um
momento a necessidade militar.
Encarar o problema pela ótica dos
nossos dias é cometer evidente anacronismo mental, pecado
irremissível em boa historiografia. Numa das notas marginais, Ivan
Texeira escreve que Basílio da Gama se deixou impregnar pelo
"espírito pombalino e antijesuítico" de Jacinto Rodrigues da Cunha
no "Diário da expedição", tópicos, ambos, que exigem o clássico
distinguo da retórica inaciana. Sabendo-se o que se sabe das suas
origens pelo menos espúrias, o pombalismo do poeta tinha tanto de
hipócrita quanto de oportunista (palavras sinônimas), da mesma forma
por que é justamente o seu jesuitismo profundo que explica a
simpatia por assim dizer instintiva pelos indígenas (que encara como
vítimas, não dos portugueses, mas dos jesuítas espanhóis.
Não se tratava de sentimentos
políticos ou humanitários, mas simples resquícios do seu passado, do
jesuitismo de que se havia... impregnado na Companhia, mais o
remorso subconsiciente de havê-la traído. Eram as camadas arcaicas
do seu espírito que emergiam a partir de sedimentações psicológicas
profundas. "O Uraguai" foi escrito pelos mesmos propósitos
estratégicos de sobrevivência que o levaram a compor, anteriormente,
o espitalâmio pelo casamento da filha de Pombal e que, de fato, o
salvou da prisão e do degredo africano. Membro da Companhia de Jesus
no momento da expulsão, Basílio da Gama, diz Ivan Teixeira em
gracioso eufemismo, "obtém, enfim, a atenção de um dos mais
poderosos homens de Estado da Europa, o marquês de Pombal". Mas, de
que maneira pôde obtê-la, sendo até então completamente
desconhecido, pertencendo a uma corporação condenada e, por isso
mesmo, suspeito por definição? Escrevendo febrilmente e até
jesuiticamente, em 1769, o "Epitalâmio da excelentíssima senhora d.
Maria Amália"...
Mesmo encarando a glorificação do
Tratado de Madrid como "forma original de brasilidade de "O Uraguai",
Vânia Pinheiro Chaves, em estudo incorporado ao aparato crítico
desta edição, reconhece que "o simples fato de "O Uraguai" realizar
um ataque cerrado à Companhia de Jesus basta para o incluir no campo
da "literatura pombalina", mas não se esgota nisto a manifestação da
simpatia de Basílio da Gama pelo ministro de D. José, visto que ela
é abertamente assumida no poema épico, nas notas e no soneto
introdutório". Ela mesma admite, embora em formulação dubitativa,
que "a simples presença do ameríndio e da natureza americana não
confere brasilidade" ao poema, citando, a esse propósito, a
legislação pombalina "que pôs o ameríndio em igualdade com o homem
branco". Ora, essa legislação era expressa e deliberadamente
antijesuítica.
Os historiadores modernos encontram
perceptível dificuldade em compreender a semântica completamente
diversa, se não oposta, em que a palavra "Brasil" era empregada na
época colonial e a que adquiriu depois da Independência (ou, se
quisermos, depois da vinda de d. João VI). Para perceber o sentido
mental do topônimo, basta lembrar que o famoso Regimento de Tomé de
Sousa, em 1548, começava com estas palavras: "Querendo El-Rei
conservar e enobrecer as terras do Brasil (...)" Não era o Brasil
nação ainda inexistente como Estado e da qual, por conseqüência,
decorria apenas a naturalidade, não a nacionalidade. Não havendo
Brasil, havia as mesmas "terras do Brasil" recuperadas da posse
espanhola não pelos brasileiros, mas pelos portugueses, segundo os
princípios congeminados por um ministro português natural do Brasil
(de onde saiu definitivamente ainda na adolescência).
É, portanto, fantasioso sugerir que a
"brasilidade" de Basílio da Gama tivesse algum pressuposto político
ou, mesmo, nativista, não o sendo menos descobrir "parentesco" entre
ele o Oswald de Andrade, embora reconhecendo que "a diferença entre
ambos é grande". Se a diferença é grande, concluiria sem hesitação o
Conselheiro Acácio, não há semelhança. No afã de procurar uma imagem
vantajosa e politicamente correta para o poeta, tais como a
brasilidade e a modernidade, Ivan Teixeira não recua das
incongruências. Assim, por exemplo, contesta, contra as opiniões
aceitas, que "O Uraguai" seja mal composto, para demonstrar, em
seguida, que isso realmente acontece, acentuando-lhe as tênues
conexões entre as seqüências narrativas e lembrando que os amores de
Cacambo e Lindóia "destróem a unidade clássica da ação e a
integridade do gênero épico".
Assim, os defeitos são transformados
em "experimentalismo formal", acrescentando-se mais esse anacronismo
a um poema cujas inovações (?) ocorrem "dentro dos limites do
universo retórico do Neoclassicismo".
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