Wilson Martins
Hermetismo Vocabular
Os perturbadores estudos que Charles
Chassé realizou sobre a poesia de Mallarmé constituem, antes de mais
nada, uma grave advertência para a crítica, sempre disposta a
superestimar o valor daquilo que não compreende. Temendo a acusação,
repetida com freqüência, de aplicar à leitura da poesia inteligência
demais e sensibilidade de menos, os críticos se têm esforçado por
demonstrar a mais larga compreensão dos poemas em que precisamente
nada entendem, e inventam interpretações variadíssimas e
contraditórias, que só têm um defeito: o de serem justamente as
interpretações "lógicas" que pretendiam evitar. Quanto às
contradições, não têm a menor importância: todo o mundo sabe que a
riqueza das obras-primas, em particular as da poesia moderna,
revela-se antes de mais nada por aí, nessa possibilidade ampla que
oferecem às significações mais variadas. (Significações, porque
afirmar, como se faz freqüentemente, que a poesia não necessita ter
nenhum sentido é recurso gratuito e insustentável, que vai contra a
natureza mesma da literatura: nesse particular, é o processo inteiro
de grandes panos da chamada "arte moderna" que necessitamos fazer.)
É claro que, no impulso desses processos interpretativos, a crítica
em geral diz mais do que o próprio autor pretendia, e, não raro,
fora do que ele expressamente desejava: é conhecida a réplica de
Mallarmé a um admirador que o felicitava por ter condensado o cosmo
em algumas palavras de um poema: "Pas du tout! Ce que j'ai décrit là,
c'est mon buffet."
Thibaudet foi o primeiro a afirmar
que, longe de serem "vagos" e de admitirem praticamente todas as
interpretações, os poemas herméticos de Mallarmé tinham um sentido
preciso, o que, de resto, confirma-se plenamente pelas confissões do
próprio poeta a respeito dos seus métodos de trabalho. (É sabido que
ele "obscurecia" voluntariamente os seus poemas, o que implica uma
primeira forma em que não eram obscuros, em que tinham um sentido
claro — sentido que Thibaudet indicava para alguns deles.) Essa
primeira forma, com o correr do tempo, pode ter deixado de ser
escrita, pode ter sido simplesmente mental, o que em nada invalida o
fato em si mesmo: é uma necessidade do espírito humano normal a de
pensar logicamente. É verdade que Mallarmé passava por crises
profundas de anormalidade, de que seria infantil negar a natureza,
mas essa anormalidade não chegava a perturbar-lhe o funcionamento
das faculdades lógicas, que eram, ao contrário, para um poeta,
vigilantes demais — como os estudos de Chassé revelaram.
As descobertas sensacionais de Charles
Chassé, que os "donos" de Mallarmé por tanto tempo pretenderam
sufocar ou ridicularizar, trazem uma confirmação definitiva a
conjecturas que não se afirmavam senão a medo, porque ele documenta,
demonstra de forma irrefutável o que Thibaudet avançava por simples
acuidade mental. Os primeiros resultados de conjunto — e a primeira
tribuna por assim dizer oficial encontrada por Charles Chassé —
foram publicados pela Revue dhistoire Littéraire de la France
(julho-setembro 1952). Para Chassé, a chave dos poemas herméticos de
Mallarmé esconde-se, simplesmente, nos dicionários. É forçoso convir
que, pelo menos no que se refere aos exemplos por ele mencionados, a
demonstração é convincente: Mallarmé, ao contrário do que tantos
ilustres comentadores vêm afirmando, não apresenta nenhum hermetismo
de pensamento (que seria o único a dar à sua poesia a eminente
dignidade que lhe foi atribuída). O seu hermetismo é puramente
vocabular, e se funda num processo elementar de que Chassé teve a
genial intuição: o de empregar as palavras não em seu sentido
corrente, mas no sentido etimológico. E, de preferência, não no
sentido etimológico próprio, mas no sentido etimológico aproximativo
Assim, por exemplo, quando se trata das palavras oublié ou oubli e
oublier. O dicionário de Littré indica-lhe a origem ob, mais um
radical liv, que se ligaria a livor, livere, lividus; oblivisci
significaria, então, empalidecer, obscurecer-se. Mallarmé, em
conseqüência, toma oublié no sentido de: "tornado lívido", e oubli
no sentido de "lividez". Assim, o "dur lac oublié" do poema famoso é
o lago que o gelo tomou lívido. No soneto que começa com as palavras
Sur les bois oubliés quand passe l'hiver sombre. Os "bois
oubliés" são bosques cobertos de geada. Em numerosos casos, a "chimère"
é a cabra, porque em grego é esse o sentido primitivo da palavra.
A análise etimológica de Charles
Chassé se prolonga, assim, em inúmeros outros exemplos que não
posso, evidentemente, repetir. Mas, um dos mais curiosos (e que
mostra outro aspecto do hermetismo mallarmeano) é o do famoso ptyx,
cujo sentido fez correr oceanos de tinta, e sobre o qual Guy Michaud,
em livro aliás excelente (Message poétique du Symbolisme), achava
"ridículo" continuar discutindo, "en sachant qu'il n'a aucun sens".
Ora, Chassé descobriu que o Larousse grande é uma das fontes dos
conhecimentos mitológicos de Mallarmé e encontrou no verbete Styx
uma passagem de Pausânias que explica os versos misteriosos do
soneto em yx. O próprio Mallarmé tentou apagar a pista, afirmando na
correspondência (carta a Lefebvre, 3/5/1869) que ptyx era palavra
inventada a fim de arranjar uma rima para Styx. E Noulet,
entretanto, especialista em estudos mallarmeanos, descobriu no
Thesaurus Linguae Graecae que ptyx é a prega de um órgão qualquer,
sendo também o nome da casca de ostra (cit. por Chassé). De casca de
ostra a corno, a extensão, indicada no texto, era fácil para
Mallarmé. Pausânias nos ensina (e aqui me limito a citar Charles
Chassé) que na Arcádia, perto da cidade de Monacris, existia uma
montanha de cujo topo "gotejava sem cessar" uma água que os gregos
denominam "água do Styx". Isso esclarece desde logo os versos que
nos mostram o poeta indo "puiser des pleurs au Styx". Essa água do
Styx, além disso, tinha a propriedade de destruir a matéria de quase
todos os recipientes e não podia ser recolhida senão em vasos de
chifre. O "ptyx" de Mallarmé não seria, pois, outra coisa que uma
velha guampa, existente como enfeite em sua sala, que servira
outrora de trompa a algum pastor, fechada pelo orifício menor,
incapaz, em conseqüência, de produzir qualquer som:
Aboli bibelot d'inanité sonore
e transformada em vaso, em receptáculo de água:
Le seul objet dont le néant s'honore
Um resultado inesperado das pesquisas
de Charles Chassé é a revelação do sentido... obsceno de grande
número dos poemas de Mallarmé. No Figaro Littéraire de 12/9/1953,
André Billy comentava esse aspecto de uma nova interpretação
mallarmeana, a propósito de um dos poemas intitulados "Petit air":
Indomptablement a dú
Comme mon espoir s’y lance
Eclater là-haut perdu
Avec furie et silence,
Voix étrangère au bosquet
Ou par nul écho suivie,
L'oiseau qu'on n'ouit jamais
Une autre fois en la vie.
Le hagard musicien
Cela dans le doute expire
Si de mon sein pas du sien
A jailli le sanglot pire.
Déchire va-t-il entier
Rester sur quelque sentier!
Jean Royère tinha visto nesses versos
"a ascensão de um suspiro". De um suspiro, sem nenhuma dúvida,
confirma Charles Chassé, mas antes uma descida que uma ascensão... É
que, abrindo o seu Littré, o implacável analista descobriu que
sanglot, segundo Ambroise Paré, "é a expulsão de ar por uma
contração do diafragma". Sanglot pire queria, por conseqüência,
dizer: expulsão de ar num sentido contrário ao habitual e normal...
Não é difícil adivinhar a que expulsão de ar se entregara Mallarmé
na floresta de Fontainebleau...
Chassé afirma que o hermetismo
aparente de Mallarmé serviu-lhe com freqüência para dissimular suas
preocupações eróticas. Pode-se, mesmo, ir um pouco além dos
sentimentos delicados, visto que é esse poeta o autor de uma
quadrinha "para os freqüentadores dos w.c. de campo, assim redigida:
Toi qui soulages ta tripe,
Tu peux dans cet acte obscur
Chanter ou fumer la pipe
Sans mettre des doigts au mur
Simples brincadeira? Certamente, nesse
caso, embora Chassé cite versos mais... comprometedores, em estudos
que, por sua própria natureza, andam por assim dizer
obrigatoriamente secretos. É possível que as suas pesquisas não
expliquem todo Mallarmé, como é quase certo que ele se deixa levar,
muitas vezes, a conclusões precipitadas, ou, pelo menos, um pouco
artificiosas, na ânsia de tornar um grande poeta imediatamente
"traduzível" ao senso comum, Mas, é inegável que, desde já, os
estudos mallarmeanos se encontram completamente revolucionados, que
a poesia de Mallarmé deve ser encarada em perspectivas inteiramente
novas e que, por conseqüência, toneladas de papel escrito
arriscam-se a tornar-se para sempre inúteis.
Depois do seu artigo na Revue de l'Histoire
Littéraire de la France, Charles Chassé publicou em livro um balanço
mais ou menos completo das suas pesquisas (. Paris: Montaigne,
1954), ao mesmo tempo em que um escritor americano, Gardner Davies,
entregava à crítica um "ensaio de explicação racional" do Coup de
dês, o mais famoso de todos os poemas herméticos (Vers une
explication rationnelle du "Coup de dês". Paris: José Corti, 1953).
Mallarmé está, pois, no primeiro plano
das preocupações e nem todos se mostram satisfeitos com essas
investidas mais ou menos irreverentes contra o mistério do ídolo
(mesmo o respeitoso Gardner Davies, ungido com a apresentação
ortodoxa do professor Henri Mondor, não deixa de ser, no fundo, um
condenável "racionalista"). O livro de Charles Chassé despertou
diversas reações incompreensíveis, como as dos que, de toda
evidência, já o tinham condenado antes de lê-lo: muitos escritores
"sensíveis" mostram-se pessoalmente ofendidos com o fato de que se
diga terem os poemas herméticos de Mallarmé um sentido preciso. Eles
preferem continuar vogando na sugestiva atmosfera do incompreensível
e do nebuloso. A verdade é que, como já há alguns anos dizia E.
Noulet, "perante Mallarmé somos sempre ímpios. Tratemo-lo como o
quisermos. Supondo que a categoria dos caçoístas esteja
desaparecendo, podemos perguntar se os leitores mais desrespeitosos
não são os que afirmam admirá-lo sem compreendê-lo e admirá-lo tanto
mais quanto menos procuram compreender. Para eles, a poesia se lê
como quem se embriaga, o espírito ausente (...)". E ela própria,
seguindo, de resto, o exemplo corajoso de Thibaudet, atira-se
valentemente ao que se poderia chamar, com o título de Gardner
Davies, uma "interpretação racional" da poesia mallarmeana.
Acredito que a explicação do maior
desagrado causado pelo livro de Charles Chassé esteja no seu tom de
deselegante suficiência, na auto-satisfação com que encara os
próprios trabalhos e na pesada ironia que reserva para os
adversários. Um pouco mais de circunspecção não lhe faria mal e
maior severidade exegética poderia, talvez, aumentar-lhe a força
demonstrativa. Colocando a interpretação de Mallarmé no terreno
polêmico, ele tem provocado reações polêmicas; melhor seria que,
como Noulet, se conservasse estritamente nos domínios da
interpretação literária, capaz de obter precisamente dos que deseja
persuadir uma aceitação de princípio mais larga. Diga-se, de
passagem, que nem sempre as suas afirmações são convincentes, no
sentido de que provam demais: algumas delas exigem tal movimentação
de fontes eruditas, de leituras variadas e de conhecimentos
enciclopédicos que o leitor não se furta a uma ponta de ceticismo: o
espírito criador do poeta não percorreria esses imensos caminhos
antes de originar as suas linhas mais despretensiosas...
Mas, resta, pelo menos como
extraordinária hipótese de trabalho, o "método" mesmo de Charles
Chassé, as suas descobertas que, em muitos casos, são irrefutáveis.
O mais curioso é que ele tenha comentado de forma inteiramente
inaceitável um soneto de Mallarmé que confirmaria por completo todas
as suas idéias. É o próprio Mallarmé que aí se "denuncia" como
leitor de dicionários, "expondo" de maneira impressionante as
associações de idéias que culminaram, afinal, na criação do poema.
Absorvido pelas grandes "máquinas" herméticas, Charles Chassé como
que passou distraído ao lado de uma peça que poderia constituir uma
demonstração decisiva. Atrevo-me, por minha vez, a afrontar os raios
vingadores dos fanáticos "mallarmistas", ao tentar uma nova
interpretação do soneto, cujo texto é o seguinte:
Mes bouquins refermés sur le nom de Paphos,
Il m'amuse d'élire avec le seul génie
Une ruine, par mille écumes bénie
Sous l'hyacinthe, au loin, de ses jours triomphaux.
Coure le froid avec ses silences de faulx,
Je ny bululeraipas de vide nénie
Si ce três blanc ébat au ras du sol dénie
A tout site l'honneur du paysage faux.
Ma faim qui d'aucunsfruits ici ne se régale
Trouve en leur docte manque une saveur égale
Qu'un éclat de chair humain et parfumant!
Le pied sur quelque guivre où notre amour tisonne,
Je pense plus longtemps peut-étre éperdûment
A l'autre, au sein brúlé d'une antique amazone.
E. Noulet, oferecendo desse poema a
melhor interpretação que se poderia desejar (e, aliás, não se trata
dos mais herméticos), nada nos diz sobre a significação de bouquins,
no primeiro verso. Ora, essa palavra é uma chave de primeira
importância e, se ela corresponder, como penso, a dicionários
enciclopédicos, confirmaria desde logo um ponto fundamental das
teses de Chassé. Com efeito, que "livros" seriam esses que o poeta
fecha ao encontrar a palavra Paphos? Evidentemente, diversos deles
poderiam, por coincidência, apresentar um vocábulo que provoca no
poeta uma longa associação de idéias e um soneto; mas é natural
pensar, também, que, se não se tratasse de uma enciclopédia, por ele
folheada com curiosidade, qualquer menção de um outro volume o teria
obrigado a procurar numa obra dessa natureza a significação exata,
as precisões indispensáveis para compreender a alusão a Paphos. E,
se o tivesse feito, que encontraria Mallarmé? Que Paphos, e mais
particularmente Palé-Paphos, situada a oeste (e não a leste, como
escreve Noulet) da ilha de Chipre, era uma das cidades cuja fundação
se atribuía às amazonas. São os esclarecimentos oferecidos por E.
Noulet, que não deixou igualmente de observar o que, antes de mais
nada, chama a atenção, quando se conhece o sentido de Paphos: é que
o poema termina com a idéia evocada pelo primeiro verso. Como o nome
da cidade estivesse inseparavelmente ligado à evocação da lenda de
suas fundadoras, Mallarmé "parafraseou" simplesmente, no soneto, o
artigo da enciclopédia (provavelmente o Grande Larousse) com todas
as imagens de natureza histórica por ele sugeridas.
A suposição é tanto mais aceitável
quanto se sabe que a lenda das amazonas e os nomes das cidades por
elas fundadas não constituem matéria comum dos livros e, a menos que
Mallarmé estivesse preparando um estudo especial sobre o assunto, o
que não é o caso, não poderia encontrar com facilidade a mesma
palavra, a mesma evocação. Assim, pois, o mais plausível é que,
tendo encontrado, ao acaso de uma leitura, o nome de Paphos, tivesse
procurado na enciclopédia as informações puramente teóricas de que
necessitava. Esses dois "livros" justificariam o plural de bouquins,
a menos que ele se deva a simples caprichos de harmonia. Mas,
encontrando na enciclopédia a história maravilhosa das amazonas,
Mallarmé se deixou naturalmente levar pela imaginação poética e
criou o seu soneto que é, como já disse, uma nítida paráfrase dos
verbetes comuns dos grandes dicionários.
A construção do soneto e as suas
sucessivas evocações confirmariam esses pontos de vista. Seguirei,
no essencial, as explicações de E. Noulet. Antes de mais nada,
observe-se que existe entre os vocábulos do soneto o que ela chama o
"apelo mútuo das palavras", do qual o exemplo mais significativo
seria o que acima indiquei entre Paphos e amazone, através de
divagações à primeira vista caprichosas. Mas, é o próprio poeta quem
afirma que o nome Paphos o impele a um jogo de espírito, a um
exercício poético: "", jogo que consiste em recriar na imaginação
"uma paisagem de calor e luz, a de Paphos no tempo do seu esplendor
(Sous l'hyacinthe... de ses jours triomphaux)". A palavra génie é
constantemente empregada por Mallarmé no seu sentido latino de
espírito", ingenium.
Nessa paisagem mental, o poeta vê
imediatamente outro episódio legendário provavelmente mencionado
pela enciclopédia: o nascimento de Astarté, ocorrido em Paphos. A
ruína da cidade seria "bénie par mille écumes", isto é, consagrada
pela aparição de uma deusa que, segundo a lenda, surgia das águas
agitadas pelo vento nesse trecho das costas mediterrâneas. O
"jacinto dos dias triunfais" é uma metáfora designando as vestes cor
de jacinto, usadas na antigüidade para as grandes cerimônias. Mesmo
que uma paisagem real de inverno ("coure le froid...") venha apagar
a paisagem fictícia criada pelo poeta, ele não o lamentará: "je n'y
hululerai pas de vide nénie", a nénia sendo um canto fúnebre entre
os gregos e romanos, uma canção de melancolia. A "paisagem falsa" é
a paisagem puramente imaginária; a paisagem real do inverno, com o
solo coberto de neve movediça ("très blanc ébat au ras du sol")
poderá ser a que o próprio poeta tinha diante dos olhos ao escrever
o soneto em Paris. Para comprovar a exatidão dessa hipótese, seria
preciso saber a data da composição, sempre difícil de fixar; mas é
possível que não seja muito anterior à da publicação, janeiro de
1887. Nesse caso, o soneto teria sido escrito realmente em pleno
inverno, e a neve da cidade contrastaria com o sol esplêndido do
Mediterrâneo. O conflito entre a paisagem real e a imaginária não
perturbaria o espírito do poeta: ele continuaria a viver no seu
mundo espiritual. É o que dizem os tercetos.
Essa abstração da realidade é possível
porque a "fome" do poeta satisfaz-se com certos frutos (aucun é
empregado por Mallarmé em lugar do adjetivo indefinido certain)
destinados ao gozo espiritual (docte), ainda que inexistentes ou
destruídos (manque). O último verso do primeiro terceto oferece
grandes dificuldades enquanto não percebermos que nele existe a
elipse da palavra fruit. Com efeito, Mallarmé compara o seio da
mulher a um fruto, mas essa comparação, assim expressa, é brutal e
banal, duas coisas que o fariam rejeitá-la desde logo. A elipse
resolve o problema e o poeta deseja que "um fruto rebente em carne,
humano e perfumoso". Com o pé sobre o cão da chaminé, que teria a
forma comum de uma guivre, isto é, de uma serpente fantástica, o
poeta evoca perdidamente, ao lado de qualquer amor real apenas
lembrado (tisonne), o outro, ou seja, o outro seio (e aqui se
completa a comparação apenas esboçada anteriormente na elipse que
assinalei), o seio queimado de uma amazona, o que constitui, para
terminar, outra noção de ordem histórica ou legendária.
Este soneto é, como se vê, a
transcrição mallarmeana de um artigo de enciclopédia, de tal forma
evidente que a tese de Chassé sobre o "Mallarmé leitor de
dicionários" nele encontra uma confirmação quase irrefutável. Ele
pertence ao "período hermético", datado por Chassé de 1876 em diante
e por E. Noulet da publicação do "Toast funèbre", em outubro de
1874. As datas coincidem satisfatoriamente, e seria de esperar que o
revolucionário exegeta não perdesse a oportunidade que lhe oferecia
o soneto dos "Bouquins refermés". Entretanto, vendo nessa peça a sua
possível significação erótica (capítulo em que, segundo parece,
Charles Chassé, como tantos velhos professores, parece se deleitar
um pouco demasiado), ignorou a construção em "verbete de dicionário"
que acima procurei ressaltar. O leitor, porém, julgará melhor se, ao
lado da interpretação proposta, resumir a do descobridor dessas
novas "chaves" de Mallarmé (não tão novas assim, de resto, porque,
embora sem caráter sistemático, já as empregaram Thibaudet e E.
Noulet, entre outros). Chassé acompanha, em suas grandes linhas, a
interpretação de E. Noulet, como eu próprio o fiz, e como me parece
impossível deixar de faze-lo, e, quando dela se afasta, é sempre
para pior. Assim, por exemplo, em lugar de supor o blanc ébat como
se referindo ao inverno da realidade, que o poeta estaria vivendo em
Paris — e que contrastava com a paisagem luminosa e quente de Paphos
— pensa que se trata de um inverno que viria substituir a primavera
no próprio quadro imaginado por Mallarmé. Assim, sem atender a que,
provavelmente, a "cruel estação" não teria em Paphos os rigores do
norte, encara os "jacintos" como flores que adornassem o adro do
templo de Paphos e que seriam substituídos pela neve, o que o poeta
não lamenta "porque o inverno era a sua estação preferida". Julgo
tudo isso forçado demais e nada ajustável ao sentido evidente que o
soneto parece ter nessa parte e a que acima aludi.
Da mesma forma, para o resto do
soneto, creio inaceitável a exegese por ele proposta: "O que os
gulosos (gourmands) mais apreciam no verão é o gosto dos frutos por
ele trazidos, mas o que o poeta prefere, no refinamento da sua
cultura, é o sabor dos encantos femininos: ‘qu'un éclat de chair
humain et parfumant’. Esse fruto de carne é o seio da mulher, "o
fruto que não se consome", como ele disse em outros "Versos de
circunstância", e eis porque o vemos, no último terceto, sentado
junto à lareira conjugal, com os pés sobre cães de chaminé em forma
de "guivre" e entregando-se perdidamente ao sonho, 'a l'autre, au
sem brûlé d'une antique amazone'. Porque Paphos, tendo sido fundada
pelas amazonas, faz-lhe surgir a idéia dessas guerreiras que se
queimavam o seio para melhor poder servir-se do arco (...)."
A idéia erótica, se realmente existe
na composição, é tão débil e longínqua que não permitiria a sua
inclusão nessa categoria, a não ser à custa de uma imaginação e de
um ardor bem maiores que os do poeta. Entrando por esse caminho
errado, que lhe escondia as evidências, Charles Chassé oferece do
soneto uma interpretação inaceitável e infantil, que não chega nem
mesmo a provar o que desejava, isto é, que se trata de um poema
erótico. Mas prova, ao contrário, ou pode provar (visto que não há
certezas certas nas "traduções" da poesia mallarmeana), a inspiração
que Mallarmé teria encontrado na leitura dos dicionários, e pela
qual o professor francês tanto se bate.
O pequeno exemplo proposto por esse
soneto faz-me pensar que, se as idéias de Charles Chassé não podem
ser altaneiramente desprezadas sem maior estudo, não devem,
igualmente, ser aceitas em bloco, sobretudo em vários pormenores
essenciais. Se a sua "hipótese de trabalho" me parece das mais ricas
em possibilidades, as suas interpretações concretas são, em grande
número de casos, das mais discutíveis e revelam, antes de mais nada,
uma ausência incomum de sensibilidade poética. Em face de Mallarmé,
ele me parece um visitante do Louvre que, diante da Vênus de Milo,
se contentasse em medi-la antropometricamente, cego à sua beleza
luminosa e imortal. Ora, ainda que as medidas exatas nos conduzam a
um conhecimento mais completo da estátua, elas pouco significam em
comparação com a emoção estética que a obra de arte provoca em nossa
sensibilidade. Da mesma forma, saber que todas as palavras de
Mallarmé estão nos dicionários, e que mesmo os seus poemas mais
herméticos têm um sentido preciso (constatações que, no fundo, são
mais que naturais) pode servir como elemento subsidiário de
interpretação, à condição de não cometer contra-sensos e de não
supor que o "sentido" gramatical dos poemas possa substituir-se ao
seu "sentido" poético. Em resumo, as pesquisas de Charles Chassé me
parecem apresentar todos os defeitos e todas as qualidades dos
chamados "trabalhos universitários", isto é, uma riqueza muitas
vezes incômoda de dados precisos, um conhecimento seguro da história
literária, um fundo imenso de leituras, mas uma certa incapacidade
de emoção que torna estéril o contato com a poesia. Falta-lhe,
porém, uma qualidade do bom trabalho universitário, que é o
equilíbrio e a dúvida com relação à própria obra. Diante da sua
enorme descoberta, que aconselharia qualquer outro à prudência, ele
como que perdeu a gravidade e o senso de medida, encarando-se a si
mesmo como o grande profeta e vendo em todos os antecessores, ou em
quase todos, pobres analfabetos que nada compreenderam de uma poesia
que, na maior parte dos casos, freqüentaram a vida inteira. Entre os
ingênuos que fazem repousar o seu amor por Mallarmé justamente na
incompreensão, os esnobes que a admiram em confiança ou por
ostentação e os gramáticas que não chegam a perceber a essência da
poesia que, apesar de tudo, a constitui, creio ser aconselhável a
atitude discernente, capaz de chegar, tanto quanto possível, a uma
satisfatória aquilatação dos valores.
Infelizmente, nem os trabalhos de
Chassé, nem o livro bem intencionado mas decepcionante de Gardner
Davies nos conduzem à intimidade da poesia mallarmeana. É que ambos
se aprisionam voluntariamente nos limites da "explicação racional"
e, se pode haver "explicação racional" do poema, materialmente
considerado, isto é, em sua redação, em seu vocabulário, em sua
sintaxe, não há "explicação racional" da poesia. Ora, é esta última
o que acima de tudo nos interessa, mas os caminhos da interpretação
são completamente diferentes.
|