Wilson Martins
05.01.98
Amizades franco-brasileiras
Se, de fato, se perderam as cartas de
Valery Larbaud (1881-1957) a Oswald de Andrade, as deste último para
o "agente secreto das literaturas luso-brasileiras em França", como
o denomina Pierre Rivas (Cahiers des Amis de Valery Larbaud. Vichy,
1997) oferecem interessante subsídio para a sua biografia
espiritual.
Na primeira delas, a 3 de março de
1923, ele se propunha a pessoalmente apresentar-lhe "homenagem
intelectual" como "representante da geração brasileira apaixonada
por sua arte". Não está claro se Larbaud chegou a recebê-lo em casa,
como Oswald de Andrade certamente esperava nos pressupostos da
sem-cerimônia brasileira, mas, dez dias depois, deixou-lhe um
exemplar das Memórias póstumas de Brás Cubas na Livraria Adrienne
Monnier (ponto de encontro de todo esse grupo), como habilidosa
preparação, seja para ofertar-lhe o Primeiro caderno do aluno de
poesia, seja para se aproximar da tradutora Mathilde Pomès, amiga de
Larbaud.
Ocorre a essa altura a cena de comédia
em que se chocaram o formalismo francês, a ânsia oswaldiana de ser
traduzido e uma certa falta de boas maneiras, tudo acabando por
exasperá-la. As relações não foram nada felizes, escreve Pierre
Rivas. Em carta de 26/7/1923, ela revela as suas impressões
desfavoráveis, embora se proponha a apresentá-lo a Larbaud, seja em
sua própria casa, seja na livraria Monnier. (O que permite deduzir
que Larbaud não o havia recebido). Mas, na verdade, não houve por
parte dela, desde o início, nenhum sentimento de simpatia:
Seria por causa da insistente vontade
do escritor brasileiro de se fazer traduzir? (Vê-se pela segunda
carta a Larbaud, que ele levou o seu próprio romance à livraria
Monnier, esquecendo o de Machado de Assis, posteriormente enviado).
De qualquer maneira, Mathilde Pomès estigmatizava a sede de
"reputação européia" dessa gente: "Escrevo essa gente pensando em
Andrade. Você achou o bom, o único meio de descartá-lo - a fuga. Ele
cansou Leca [Charles Leca, diretor da Revue de I'Amérique Latine],
que, entretanto, tem resistência. No meu caso, ele tratou de
consumir o meu vinho do Porto e meus bolos, em minha casa, duas ou
três vezes por semana, expondo as suas teorias artísticas das 5 às
8,30 e, ainda por cima querendo que lhe traduzisse o romance por
amor à arte. De resto, no dia em que fixei o preço da tradução,
nunca mais ouvi falar dele.
Apesar de tudo, escreve Pierre Rivas,
Larbaud conservou estima pelo poeta:
Conhecem-se os esforços que empregou,
infelizmente em vão, para interessar Duriau ou Mathilde Pomès na
tradução. Entretanto, era bastante sensível ao talento de Oswald
para indicar-lhe o nome à princesa de Bassiano, sua amiga e diretora
de Commerce, como um dos escritores a publicar: "Há também um
brasileiro de quem gosto muito: O. de Andrade". No ano anterior, ele
já havia escrito à princesa: "Gostaria de mencionar também o romance
que está escrevendo um brasileiro, Oswald de Andrade. Já existe,
para isso, um tradutor, o sr. Jean Duriau.
Pierre Rivas conclui que Larbaud
permaneceu fiel a Oswald, que tampouco o esqueceu. Mas, Mathilde
Pomès continuou intratável: embarcando para Portugal, declarava
esperar alegrias maiores da paisagem e das lembranças de Coimbra que
da leitura de Andrade. Entre Larbaud e Oswald os sentimentos
continuaram cordiais, como se lê nesta carta de despedida: "Quando
teremos o prazer admirável de sua viagem ao Brasil? Não o tenta uma
temporada na fazenda Santa Teresa? Seu primeiro contacto com a
língua portuguesa foi recebido com entusiasmo por nossa geração, que
o vê como um mestre do espírito e expressão da nossa época, talvez o
maior. Venha ao Brasil e verá como sua obra é amada entre nós. Aqui
incluo algumas fotos da fazenda de Tarsila."
Figura pivotal nessas relações e amigo
dos dois, Blaise Cendrars foi, ainda, o intermediário entre Oswald
de Andrade e a editora Au Sans Pareil para a impressão do Pau-Brasil
em conta de autor, no mesmo ano de 1925 em que também foram
publicadas, pelo mesmo sistema, as poesias de Vicente Huidobro,
escritas em francês (Tout à coup). Os dois livros, esclarece Pascal
Fouché em pesquisa a que já me referi (Au Sans Pareil. Paris:
Bibliothèque de Littérature Française Contemporaine de l'Université
de Paris 7, 1983), "contêm, o primeiro na terceira contracapa e o
segundo na última, um extrato do catálogo do Sans Pareil [...].
Jogando alguma água fria em nossas vaidades oswaldianas, René Hilsum,
criador e diretor do Sans Pareil, declarou a Pascal Fouché que não
se lembrava de jamais ter ouvido falar no Pau-Brasil, de que não
existe sinal nem na publicidade, nem em qualquer catálogo da
editora" (v. W. M. "Mimetismos oswaldianos". Pontos de vista 13,
1997).
Valery Larbaud teve contactos com
outros escritores brasileiros, entre eles Graça Aranha, descoberto
em 1924, dois anos antes de sua viagem a Portugal. Pierre Rivas
lembra que, excluídos os especialistas, ele foi o único escritor
francês a interessar-se por sua estética e filosofia, não apenas por
seus romances. Em 1933, procurou chamar a atenção de Jean Paulhan,
da NRF, para o autor brasileiro, e, a propósito do seu prefácio para
o livro de E. Fiser (Le symbole littéraire, 1933), deixou algumas
considerações sobre Graça Aranha em carta ao mesmo Paulhan:
"espírito sistemático, como todos os filósofos 'profissionais', mas
muito interessante por suas intuições, eis como enquadro Graça
Aranha. Sua morte, há dois anos, me entristeceu; entre ele e eu, por
meio de intermediários, havia uma simpatia recíproca".
Quem seriam esses intermediários? -
pergunta Pierre Rivas, para tirar a conclusão que define o panorama
das amizades franco-brasileiras: eles "definem todo o espaço de uma
cultura".
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