Wilson Martins
Prosa & Verso, 25.12.1998
Poeta maior
Pelo que envolvem de pensamento
filosófico e teológico, conhecimentos matemáticos e arquitetônicos,
instinto de beleza e refinamento das crenças, para nada dizer da
resistência dos materiais e da espantosa concepção da abóbada, sem
excluir as técnicas mais apuradas na fabricação do vidro, além da
simbologia, não raro irônica, dos adornos exteriores, as grandes
catedrais da Idade Média são o testemunho mais complexo do processo
civilizatório.
Processo que também se caracterizou
pelo aperfeiçoamento cada vez mais avançado das armas e instrumentos
de destruição, com os quais os povos que as construíram passaram a
destruí-las com o mesmo empenho, enquanto se exterminavam uns aos
outros com fanático fervor: as guerras foram, por longo período (e,
aliás, continuam sendo), guerras de religião. Essas contradições do
espírito humano e o desdobrar das civilizações acabaram por
construir um enorme entroncamento ferroviário, alvo predileto dos
bombardeios, justamente ao lado da Catedral de Colônia - que só
escapou da destruição pelo que devemos considerar, no próprio e no
figurado, como um milagre.
Era preciso que escapasse, diriam os
deterministas, para inspirar a grande catedral literária que é o
poema de Affonso Romano de Sant’Anna, reimpresso em edição
comemorativa com outra meditação filosófica e histórica em que se
completa o díptico mental: a do homem em face de Deus, em face do
Cosmos enigmático, em face do "silêncio eterno dos espaços
infinitos" que já aterrorizou outro produto refinado da civilização
espiritual, o atormentado (e, entretanto, crente) Blaise Pascal
(Affonso Romano de Sant’Anna. "A grande fala do índio Guarani"/ "A
catedral de Colônia". Rio: Rocco, 1998).
Um amante de aritmosofia poderia
observar que o primeiro desses poemas, como consta da bibliografia,
teria sido publicado em 1978, e o segundo em 1987, finalmente
reunidos em 1998, ritmo de "correspondência" interiores que
desvendam o que, para mim, é mais importante: a natureza
necessariamente complementar dos dois textos. De fato, seu sentido
profundo é exatamente idêntico, pois a linguagem simbólica da
catedral reflete em exata simetria a linguagem mítica do homem
primitivo, que se posiciona no universo com o espanto do refinado
Pascal, enquanto os arquitetos medievais "traduziam" em pedra o
pensamento teológico.
Na verdade, o poema da catedral
apareceu em 1985, mas essas oscilações aritmosóficas serão
facilmente interpretadas pelos entendidos em ocultismo, se não
preferirmos a explicação mais pedestre do erro tipográfico. Em 1978,
quando apareceu "A grande fala", as "vanguardas" que se
multiplicavam em nossa poesia estavam claramente exauridas em suas
invenções mecânicas. Affonso Romano de Sant’Anna identificava, a
essa altura, sete "movimentos" depois do Modernismo, o que lhes
mostra, desde logo, o caráter artificial. Era caso de perguntar,
mais uma vez: "Que país é este?", título do seu livro de 1980.
Ele era, escrevi então, "o grande
poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de
Carlos Drummond de Andrade", juízo que foi mal recebido pelos que
encaravam Carlos Drummond como sagrado e insuperável (no ambiente
emocional do enterro, festejada poetisa declarou à televisão com
gestos de desespero que a poesia brasileira havia acabado). De minha
parte, assinalei a "coincidência" espiritual dos poemas affonsinos,
acentuando que a sua sensibilidade brasileira se manifestava na
"consciência de Pátria", realidade não apenas continental, mas
também ancestral e ucrônica - tanto na "Grande fala" quanto no
terremoto espiritual desencadeado em seu espírito pela catedral de
Colônia.
Os primitivos na sua literatura e os
civilizados na sua arquitetura exprimem-se por meio de dois idiomas
concomitantes, o profano e o sagrado, este último secreto e
incompreensível para os não iniciados. A catedral, além de ser o
edifício que todos podem ver, tem uma "significação" que nem todos
percebem; de seu lado, as orações e cantos religiosos dos indígenas
respondem a valores e inquietações que estão na origem de uns e de
outros - e na origem do poeta moderno, que, saindo da pequena cidade
mineira, ela própria impregnada de valores religiosos, mergulhou na
corrente profunda de uma civilização milenar: "procuro o texto que
me salve", diz ele, mas o texto que o pode salvar e que nos salva é
o da sua própria poesia, identificada com a textura humana.
Em segmento de sarcasmo vingador ("Um
índio na catedral"), o poeta registra o abismo que separa, de um
lado, o monumento espiritual dos séculos e, de outro, os "índios"
supostamente civilizados que são os turistas ignaros. De fato, não
há maior contraste do que o testamento da civilização e o mundo real
em que ela acabou por se constituir.
Pensando buscar o "texto do seu
tempo", ele encontra o texto intemporal que produziu as crenças e as
catedrais, as religiões que se cristalizaram em orações
propiciatórias. A lição de tudo isso é paradoxalmente de relativismo
e equivalência: absoluto é apenas o espírito que construiu as
catedrais e codificou os sistemas religiosos: "a vida é o impoemável
poema". Não é sem razão, mas antes por instinto, que, a propósito
desse poema de primitivos, ele evoca os nomes de cientistas que
imaginaram as catedrais do universo cósmico, mistério insondável até
hoje, apesar de tantas explicações científicas: Giordano Bruno e
Galileu, ao lado dos criadores ultraliterários, Huidobro e Sandburg.
É também a busca iniciática da
liberdade que move os poetas na decifração do Destino, mas eles só
podem escrever sobre a liberdade perdida, porque a liberdade
existente não inspira os cânticos nostálgicos. Assim vai a marcha
dos milênios: os 600 anos que durou a construção da catedral e o
século e meio que esperou por seu poeta. Catedrais antigas e
Popol-Vuh modernos são apenas a metáfora do Tempo, matéria prima da
poesia.
Leia a obra de Affonso
Romano de Sant'Anna
|