Wilson Martins
Prosa & Verso, 09.01.1999
Contra Machado
Ninguém escreve como Machado de Assis:
os que já o tentaram, como Léo Vaz e Ciro dos Anjos, por exemplo,
não conseguiram ir além de páginas tediosamente cloróticas ou
cloroticamente tediosas.
Ninguém, tampouco, reescreve Machado de Assis: os que já o tentaram,
como Lygia Fagundes Telles ("Capitu", 1993) e Fernando Sabino ("Amor
de Capitu". São Paulo: Ática, 1998), acabaram por
propor obras que nem são deles mesmos, nem de Machado de Assis.
Prova que, sob as falsas aparências de hímen complacente e ambíguo,
"Dom Casmurro" é, na verdade, um sólido bloco degranítica
resistência.
É igualmente perigoso escrever sobre Machado de Assis e, em
particular, sobre o romance que parece exercer sobre os exegetas a
irresistível tentação de reescrevê-lo. O mais famoso de todos foi a
norte-americana Helen Caldwell (com alguns discípulos brasileiros),
empenhada em fazer com que Bentinho desminta Machado de Assis.
Desejariam outro romance, não o que está escrito e no qual
Capitu seria inocente, tudo por meio de laboriosas raciocinações e
imaginoso instrumental teórico, nomeadamente a idéia do "narrador
inconfiável". Romance é ficção: os que não acreditam nos narradores
terão ainda menos motivos para acreditar nos romancistas, esses
notórios mentirosos.
O problema está em que nada existe fora do que está escrito -sem o
adultério de Capitu não existiria o romance chamado "Dom Casmurro".
O "enigma de Capitu", sobre o qual Eugênio Gomes publicou todo um
volume em 1967, não tem qualquer realidade
porque nada há a decifrar. Ou aceitamos o livro como foi escrito, ou
devemos passar a outras leituras: o autor é Machado de Assis, não o
leitor devaneante. Assim, a crítica machadiana é terreno minado e
traiçoeiro, em que, à parte dois ou três estudos fundamentais, os
intérpretes não conseguem se livrar das paráfrases e das repetições,
além dos lugares-comuns, como o estafado "bruxo de Cosme
Velho" que muitos ainda não se constrangem de repetir como luminoso
juízo crítico.
São esses os inimigos ocultos e bem-intencionados de Machado de
Assis, figuras simétricas e paralelas aos inimigos ostensivos e implacáveis, estudados por Josué Montello, nossa maior autoridade em
estudos machadianos ("Os inimigos de Machado de Assis". Rio: Nova
Fronteira, 1998). Noventa anos depois do seu falecimento, era realmente tempo de compor o tratado geral do ódio e da obtusidade crítica que o acompanharam enquanto viveu - e até depois de morto,
porque o artigo histórico de Hemetério dos Santos foi escrito sobre
o seu cadáver ainda quente. Deve-se-lhe a primeira configuração de
Machado de Assis como traidor de sua raça e inescrupuloso arrivista,
acusações que se repetem até hoje, apesar de todas as evidências em
contrário.
Machado de Assis teve o defeito de não ser um tribuno do povo e
orador de comícios, menos ainda militante do racismo dos negros
contra os brancos, para compensar o racismo dos brancos contra os
negros.
Hemetério era um negro de aparência principesca, com a esmerada
elegância deliberadamente mantida para mostrar que não era um negro
como os outros: "esguio, ombros altos, bigode farto, óculos sem aro
a lhe protegerem as lentes, o paletó bem talhado a exigir o colete
branco, a gravata borboleta realçando o colarinho de pontas viradas,
todo ele a nos dar a impressão de que o mestre, assim preparado, se
requintaria no traje para comparecer a uma solenidade em sua própria
homenagem".
O problema do negro, escreveu ele, "não mereceu do romancista e do
poeta senão pálidas e aguareladas pinturas tão tímidas que
claramente revelam que do artista primeiro partiam as idéias
preconcebidas contra a sua cor e procedência". E, passando para as
insinuações caluniosas: "Eu conheci essa boa mulata velha (madrasta
de Machado), comendo de estranhos, com amor e conforto máximo,
chorando, porém, pelo abandono nojoso em que a lançara o enteado de
outrora (...)".
Tudo isso foi documentadamente desmentido, mas pouco importa: os
lugares-comuns emocionais são tanto mais indestrutíveis quanto
melhor servirem aos interesses dos ativistas políticos.
Claro, o inimigo paradigmático de Machado de Assis foi o irritadiço
Sílvio Romero, que, na crítica literária do tempo, ocupava posição
simétrica e equivalente à dele mesmo no romance. É verdade aceita
que escreveu o livro de 1897 para sustentar a superioridade de
Tobias Barreto sobre Machado de Assis, mas os verdadeiros motivos
foram diferentes: a retorsão do poeta ofendido pelo julgamento
desfavorável de Machado de Assis sobre os "Cantos do fim do século":
"para tudo dizer uma só palavra, o sr. Romero não possui a forma
poética". E o senhor Romero, 20 anos depois: "Antes de mais nada é
preciso adiantar desde logo que Machado de Assis
não é um poeta". O que era então? Apenas um "bolorento pastel
literário".
Outra verdade aceita quer que Labieno (Lafayette Rodrigues Pereira)
tenha saído em defesa de Machado Assis contra as raivosas investidas
de Romero, o que não passa de meia-verdade, como observa Josué
Montello, "O ‘Vindiciae’ (...) com 254 páginas, somente consagra a
quinta parte deste total a Machado de Assis: as demais, igualmente
hostis a Sílvio Romero, tratam do livro ‘Ensaios de filosofia do
direito’, do mestre sergipano". Labieno aproveitou a
oportunidade que esperava para um ajuste de contas com Romero, que o
havia violentamente atacado em 1893, nos "Ensaios de crítica
parlamentar".
Entre ataques e retorsões decorria o "tempo das polêmicas", como o
qualifica Josué Montello, terreno propício para a multiplicação dos
inimigos de Machado de Assis. Nesse tempo, Romero encontrou as
condições ideais para exercer o seu temperamento agressivo: ele
considerava "sandice" a idéia de que o crítico não deve ser
polêmico. É verdade - mas verdade que ele certamente exagerava ao
ponto de torná-la um erro.
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