Wilson Martins
Prosa & Verso,
19.06.1999
Marcos e marcas
Cedendo à irresistível e traiçoeira
tentação das previsões críticas, Vilem Flusser escreveu, em 1971,
que o aparecimento de "Andanças", primeiro livro de Dora Ferreira da
Silva, representava "uma marca na história da literatura brasileira
e que, mais dia menos dia, a marca passará a ser marco" - opinião
vigorosamente reafirmada duas décadas depois: sem a sua crítica, "a
situação cultural do Brasil contemporâneo não é compreensível".
A verdade, entretanto, é que, no
julgamento de Ivan Junqueira, "trata-se de uma obra rara e algo
solitária no atual panorama da poesia brasileira, e rara sobretudo
porque, nos (seus) versos, o que mais sobreleva é a meditação sobre
a vida e a própria condição humana" (Dora Ferreira da Silva, "Poesia
reunida". Rio: Topbooks, 1999. As citações provém da fortuna
crítica, em apêndice).
Sua inspiração inscreve-se na linhagem
do sagrado, naquilo que não se confunde com o religioso, conforme
observava José Paulo Paes com a finura habitual. Nisso ela se
distingue dos nossos poetas de temática confessional, como Alphonsus
de Guimaraens, Jorge de Lima, Murilo Mendes ou Durval de Moraes,
para lembrar apenas os mais característicos: é uma autobiografia
existencial, não peripecial, menos ainda sectária. Trata-se de uma
interpretação órfica do universo, como no malogrado projeto de
Mallarmé, mas de um universo por assim dizer físico, com pássaros e
cidades, jardins e geografia, paisagens e memórias: ela se
identifica com os poetas que, "por uma natural disposição de
sensibilidade, vêem na realidade menos o espaço fechado do material
e do sensório que o espaço aberto da hierofania, para usar o termo
hoje consagrado, proposto por Mircea Eliade para designar ‘o ato da
manifestação do sagrado’’’.
Sagradas são, antes de mais nada, as
raízes orgânicas que a ligam ao mundo antigo e às civilizações
misteriosas de um passado mítico: "Bato à porta da origem/ lá/ onde
nenhum passo ressoa (...)/ lá/ onde nenhum beijo umedece a face
semelhante à vossa (...)/ A concha incrustada no centro do arco/
Oculta Afrodite/ sob Áries/ sol oceânico de primavera".
Se, com a sua obra, deixou a marca de
uma presença, o marco mencionado por Vilem Flusser não é um sinal
quilométrico de percurso de nossa poesia, mas, antes, a demarcação
de um território que ela delimita e circunscreve, qualquer coisa
como o testemunho de outros deuses, de realidade ancestrais, de
crenças oraculares perpetuadas em versos modernos.
Já se disse que toda literatura é
autobiográfica, verdade ainda mais verdadeira no que se refere à
poesia, mas há grande diferença entre a autobiografia existencial,
que é a dos grandes poetas, e a autobiografia factual, no sentido
imediato da palavra. Se, nessas coordenadas, Dora Ferreira da Silva
sempre viveu e continua fora da vida literária (sem, por isso,
situar-se fora da literatura, muito pelo contrário), Thiago de Mello
foi uma figura atuante no mundo das letras, particularmente no
período representado por "Faz escuro mas eu canto" (1965),
tributário do efêmero político que é o oposto da poesia enquanto
aspiração de perenidade. Em "Campo de milagres" (Rio: Bertrand
Brasil, 1998), encontramos as confissões de um poeta, mas não as
confissões de um filho do século, por mais que isso surpreenda os
seus leitores da década de 60: com a vantagem da sabedoria
retrospectiva, podemos considerar aquele livro como um parêntese
transitório em sua carreira de poeta, o que não exclui, bem
entendido, a nostalgia sentimental das grandes batalhas perdidas.
Agora, ele retoma "a poesia cotidiana
das aventuras de uma sensibilidade pessoal, inspirada nas emoções
primárias, isto é, no seu amor de pai, nos seus sentimentos de
amigo, nas suas emoções de amor. Mas, equilibrado e contido, ele não
se entrega a nenhuma tempestade sentimental, a nenhum excesso
lírico, a nenhuma violação das fronteiras comuns, é o poeta
respeitoso (...) que se situa naquela zona indecisa do ‘poeta
maldito de sociedade’ e, até, de alta sociedade: ele não se
destinava de forma alguma, escrevi àquela altura, a ser um poeta
maldito".
Acrescente-se sem demora que os
"malditos" não têm qualquer superioridade necessária e intrínseca
sobre os demais: tratando-se de "poeta político", como foi Thiago de
Mello durante uma parte de sua carreira, a alusão serve para
delimitar-lhe com a necessária clareza a personalidade literária. É
um poeta "urbano", mesmo quando se inspira na realidade primitiva da
Amazônia, não sendo, nem de longe, o cantor das "cidades
tentaculares", antes o dos bairros tranqüilos e residenciais, e da
vida doméstica: "Os pais, os amigos, os filhos, as crianças
brincando de roda nas calçadas depois do jantar - a sua região
poética é a região familial, burguesa, a da poesia da vida
particular em oposição com o ‘mundo’, com o trabalho e o centro da
cidade" (v. W.M. "Poesia menor". Pontos de vista. 4, 1992).
Assim, configurada, nada acrescentando
ao mundo nem à literatura, sem nos forçar a adesão ou a repulsa, a
tendência mais natural "será a de situá-lo na zona cinzenta das
coisas indiferentes". Seria uma injustiça, porque a poesia menor é
tão indispensável quanto a outra para a existência da literatura. Em
contraste com a de Dora Ferreira da Silva, a poesia de Thiago de
Mello é a do tempo que passa, por oposição à do tempo que permanece,
se quisermos retomar as tão conhecidas distinções bergsonianas.
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