Wilson Martins
Prosa & Verso,
25.09.1999
Crítica dialética
Corria o ano de 1942 quando apareceu
nas livrarias um volume de título estranho: "A cinza do purgatório",
logo seguido de "Origens e fins", que o autor apresentava como
complemento do anterior, "partes dum esforço que, em contradição
dialética e em unidade de pensamento, continua". Álvaro Lins, o
crítico mais prestigioso do momento, publicara em 1941 a primeira
série do "Jornal de crítica", com a "Palestra sobre José Veríssimo".
Empenhava, portanto, a sua autoridade
na reabilitação de um autor que os lugares-comuns da vida literária
se compraziam em menosprezar. Era, aliás, um período de balanços e
reavaliações, claro fim de uma época e território de passagem
documentado desde logo no "Testamento de uma geração" (1944), em que
Edgar Cavalheiro reuniu depoimentos e prestações de contas de
escritores que tudo indicava estarem se encaminhando para o sinistro
panteão das glórias extintas.
É de notar que Mário Neme compilou,
logo em seguida, a "Plataforma da nova geração" (1945), assim
marcando de maneira simétrica e complementar o assalto impiedoso dos
jovens turcos, com evidente mudança de guarda. A "nova geração" era
filha espiritual do Modernismo, então identificado com Mário de
Andrade - o Mário de Andrade que, no mesmo ano de 1942, recitou no
Itamaraty a oração fúnebre do movimento que havia dominado nossas
letras nas duas décadas anteriores.
É nesse momento apropriadamente de
crise, em todos os sentidos da palavra, que Otto Maria Carpeaux
(1900-1978) se integrou no pensamento brasileiro, evocando as
"cinzas do purgatório" e as "origens e fins", noções escatológicas
que confirmavam o desaparecimento de um mundo. Mas, demarcavam,
igualmente, o novo território do pensamento crítico numa literatura
que se definia pelo raciocínio discursivo, digressivo e linear -
fossem quais fossem os métodos específicos de cada crítico.
Carpeaux nela introduziu o pensamento
dialético e circular, analisando obras e autores pelo caráter
necessariamente contraditório do espírito criador. Pôs em circulação
nomes e títulos que não eram moeda corrente entre nós: Burckhardt e
Goethe, Vico e Lichtenberg, Jens Peter Jacobsen e Hofmansthal, Kafka
e Milton, Hölderlin e Gontcharov, Pirandello e Alfieri, Erasmo e
Samuel Johnson, Max Weber e Charles Maurras, Nietzsche e Dante...
Exemplo paradigmático de raciocínio
dialético (no interior da dialética histórica) foi a pequena nota
fúnebre escrita para a "Revista do Brasil" sobre o falecimento de
Romain Rolland, nome sagrado e, por isso mesmo, dogmático e oficial,
nos meios comunistas. A nota feria mais longe do que parecia: se o
escritor francês já estava morto quando morreu, dizia Carpeaux,
"morto, ainda, não nos (deixava) em paz".
Filiados verbalmente às contradições
da dialética, recebidas pelo cânone das palavras de ordem
soviéticas, foram justamente os comunistas brasileiros que se
revelaram incapazes de compreender o que liam, desencadeando contra
Carpeaux uma das mais constrangedoras campanhas de insultos de nossa
história literária, tudo comandado por Dalcídio Jurandir na revista
"Diretrizes".
Este era o homem do PCB para as
"tarefas" de baixeza moral. Em 1944, tratava-se de achincalhar um
crítico independente, herético com relação aos dogmas partidários;
em 1949, chefiou o "golpe de estado" com que o PCB decidiu
apropriar-se da Associação Brasileira de Escritores (ABDE),
"episódio sem grandeza" como o qualificou a insuspeita Clara Ramos
("Mestre Graciliano", 1979). Jorge Amado refere em suas memórias
que, "figura central do conflito", Dalcídio Jurandir "arrancou, a
muque, das mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, o livro de atas
da reunião", na qual agressões físicas e palavrões socialistas
também estiveram na ordem do dia.
Graciliano Ramos, convidado, mais
tarde, a visitar a União Soviética, só se deslocava sob a dupla
vigilância dos "intérpretes" e do comissário Dalcídio Jurandir,
designado pelo partido para fiscalizá-lo, a fim de prevenir qualquer
previsível inconveniência de comportamento. De um homem desses não
seria de esperar nem que compreendesse a dialética de Carpeaux, nem
que pudesse avaliar a personalidade de Romain Rolland no contexto
das peripécias contemporâneas.
Anos depois, Carpeaux tornou-se mestre
espiritual de um grupo esquerdista, nomeadamente dos que com ele
trabalhavam, sem traumas de consciência, num jornal "burguês". A
ironia da situação não lhe terá passado despercebida,
confirmando-lhe, aliás, a visão desabusada da humanidade. Há uma
clara diferença de densidade entre os ensaios dos primeiros livros e
os que passou a escrever sobre nossas letras, e a explicação é
simples: tratando como contemporâneo os seus contemporâneos sobre
livros contemporâneos, faltava-lhe o sentimento escatológico do
tempo desaparecido e do mundo extinto.
A crítica da atualidade é tão
transitória quanto ela, pertencendo ao tempo que passa, não à
duração que permanece. Pode-se imaginar que a matéria brasileira
congenial com o seu espírito seria representada, digamos, por José
Bonifácio e Antônio Feijó, Joaquim Nabuco e Pedro I, para nada dizer
do "rei filósofo" e João Francisco Lisboa - ou seja, os que não
estavam em condições de dominar ("Ensaios reunidos", 1942-1978.
Organização, introdução e notas de Olavo de Carvalho. Vol. I: de "A
cinza do purgatório" até "Livros na mesa". Rio: UniverCidade
Topbooks, 1999).
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