Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 16.10.1999



Simbolista marginal

 



 

Já se disse, e foi dito por um inglês, que os escritores menores são os que realmente representam o caráter e a natureza das suas respectivas literaturas: os gênios literários são execepcionais em todos os sentidos da palavra, inclusive e sobretudo na "escola" a que pertencem ou em que se vêem incluídos. Em outras palavras, o QI de cada literatura mede-se pelo mínimo, não pelo máximo denominador comum.

Daí o interesse algo vicioso e, em todo caso, compensatório, na recuperação dos marginais e esquecidos, suposta ou realmente injustiçados na memória coletiva: é um esforço subconsciente para equipará-los aos maiores, assim restabelecendo a homogeneidade do tecido literário. Nessas perspectivas, o paradoxo está em que todas as "escolas" são, na realidade, compostas dos menores destinados ao abandono e à indiferença da posteridade, ato de crueldade e justiça, não só historiográfica, mas estética.

Numa escola de si mesma periférica como o simbolismo, permaneceram justamente as exceções, os escritores representativos que se chamaram Cruz e Sousa e Alphonsus de Guimaraens, dentre os 131 repertoriados com empenho totalizante e exaustivo no livro clássico de Andrade Muricy (Panorama do movimento simbolista brasileiro. 3.ª ed., 2 vols. São Paulo: Perspectiva, 1987). No pelotão de marginais e excêntricos com relação ao núcleo vital do movimento (aliás "reconstruído" postumamente, mais que atuante no seu tempo), Ernani Rosas (1886-1954) foi solitário e marginal (palavras de Andrade Muricy) e, por isso mesmo, poeta de exemplar fidelidade aos lugares-comuns estilísticos da escola, em particular no que se refere ao vocabulário, que foi, de fato, a característica identificadora dos seus processos, porque, na técnica, todos continuaram parnasianos, sem excluir o paradigmático Cruz e Sousa (Ernani Rosas. História do gosto e outros poemas. Texto, int. e notas de Ana Brancher. Bibliografia por Iaponan Soares. Florianópolis: OFSC, 1997).

Iaponan Soares e Danila Carneiro da Cunha Luz Varella promoveram, em 1989, a edição comemorativa do centenário (Poesias. Florianópolis: FCC), situando-o na sua constelação literária e estabelecendo o que se pode ter como texto canônico e definitivo, cabendo perguntar se a recuperação dos inéditos acrescenta qualquer coisa à sua memória de escritor. A tendência instintiva nesses casos é supervalorizar a importância, a qualidade e o interesse dos tesouros encontrados, como aconteceu com a obra de Sousa Andrade e Pedro Kilkerry, que, de resto, nem de longe foram ignorados pela história literária contemporânea e crítica posterior.

É possível que Ernani Rosas deixasse nas gavetas o que decidira impróprio para publicação, textos quase sempre imperfeitos e desleixados, como a repetição sistemática da síncope "p'la" e "p'lo" pelas aglutinações prepositivas correspondentes. Chegar à medida certa do verso por meio da mutilação da palavra era processo habitual em Castro Alves, que, para celebrar a beleza da amada, dizia vê-la "co'a co'a" dos cabelos, recurso igualmente freqüente em Ernani Rosas: "Como uma C'ruja às horas do sol-poente", ou "Quando a certhora o luar é só doçura" ­ o que revela, pelo menos, dureza de ouvido numa escola que, acima de tudo, buscava a musicalidade.

Vendo em Ernani Rosas a "encarnação perfeita do poeta simbolista do começo do século", Andrade Muricy destacava que "a sua linguagem habitual, e mesmo familiar, é repleta dos vocábulos típicos, de ressaibos do ritualismo e do hermetismo característicos." Foi, realmente, um epígono na constância com que obedecia aos cânones convencionais. Imerso no "oceano do símbolo", era uma "sobrevivência e uma ruína sombria do Decadentismo", perfil tanto mais exato quanto os seus poemas representam graficamente, por assim dizer, o desvanecimento da escola enquanto presença literária efetiva.

Parte substancial da benevolência com que o lemos (e com que o lia Andrade Muricy) resulta da simpatia que nos despertam as condições infelizes em que viveu: "A obra desse humilde poeta, sumido no subúrbio, e que longe, pelos seus correspondentes portugueses foi tomado a sério, será uma obscura nebulosa, porém que se percebe trespassada por iluminações que não desmaiam com o tempo, e vive de uma vida misteriosa." Na espiritualidade simbolista e respectivo idioma, ele está mais perto do lirismo melancólico de Alphonsus de Guimaraens que das fulgurações sinfônicas de Cruz e Sousa, tendo, embora, recebido deste último, escreve Iaponan Soares, "sua primeira revelação literária. [] Aquele conterrâneo de quem o pai falava com tanto carinho nos serões domésticos, era na verdade um ser superior, inquebrantável e límpido, que lhe despertava profunda simpatia."

Gago, homossexual e pobre, escreve Ana Brancher, "apreciando sobremaneira o álcool e provavelmente o ópio", Ernani Rosas encarnou a figura romântica do poeta maldito, aliás paradigmático no universo simbolista. Mesmo as influências literárias, inclusive maliarmeanas, que os tratadistas se esforçam por identificar nos seus versos, serão, creio eu, mais coincidências de época que repercussões de leitura, se não forem meras congeminações livrescas. Afinal de contas, todos usavam o mesmo dicionário, já então transformado em dialeto comum.

 

 

 

 

 

 

22/09/2005