Wilson Martins
Prosa & Verso,
27.05.2000
Gonzaguiana
Beneficiando-se com o exutório da
expressão literária, os grandes poetas não morrem de amor. É o que
Gonçalves Dias demonstrou pelo simples fato de escrever sobre o tema
um dos mais belos poemas da língua portuguesa e da literatura
universal. Tampouco Tomás Antônio Gonzaga morreu de amor, entre
outros motivos porque, ao apaixonar-se pela legendária Maria
Dorotéia de Seixas, se ainda conservava a inquietação erótica, já
havia passado da idade dos desesperos sentimentais.
Como revela "Gonzaga, um poeta do
Iluminismo" (de Adelto Gonçalves. Rio. Nova Fronteira, 1999), a
imortal Marília, de seu lado, não chegou a morrer de amor, antes
viveu-o com intensidade juvenil desde os 22 anos, aceitando a
companhia de outro sedutor e alcançando os 85, carregada de filhos e
netos. Há indícios de que era uma menina da pá-virada, como se dizia
lá em casa, não tardando em substituir o portuense Dirceu pelo
lisboeta Manuel Teixeira de Queiroga e falecendo solteira, diz o
atestado de óbito.
É verdade que Gonzaga, enquanto
requestava a virginal Marília, teve um filho com outra beldade
local, de idêntico apelido, origem, segundo se pensa, da rivalidade
que o opôs ao governador, apaixonado pela mesma moça. É também o que
teria provocado a retorsão despeitada das "Cartas chilenas", a supor
que sejam de sua autoria, o que, até ao momento, não passa de
congeminações eruditas. O explorador inglês Richard Burton, viajando
pela província, registrou serem três os filhos de Marília, "loiros e
de olhos azuis".
Fazendo bom uso das vicissitudes
políticas, Olavo Bilac vasculhou os arquivos de Ouro Preto, onde
encontrou o testamento de Maria Dorotéia de Seixas e a certidão de
casamento de Gonzaga. Melancolia bilaquiana: esses amores imortais
"não foram uma dessas paixões que alucinam quando se não satisfazem,
e em que a alma entra de parceria com a carne (...)". Mas, daí a
concluir, com Adelto Gonçalves, que Gonzaga "já se teria adiantado
da noite de núpcias nas alcovas de Vila Rica" vai uma extrapolação
que nada autoriza, menos ainda a lira em que pensa encontrar a
"prova" da suposição: "Ornemos nossas testas com flores / e façamos
de feno um brando leito".
O autor pratica a ultraleitura como
prática de leitura, quero dizer, a leitura que se empenha em tirar
dos textos mais do que está escrito e, dos fatos, mais do que
significam. São numerosas as passagens em que parte de simples
conjecturas para corolários injustificados. O livro está cheio de "talvezes",
"prováveis", "provavelmentes", "é de imaginar", "acredita-se" e até
"quem sabes": nele, o uso das cláusulas de prudência é uma forma de
afirmação. E não raro afirma o que, de fato, não pode afirmar nem
saber, como, por exemplo, quando refere que Gonzaga, saindo de casa,
"olhou à esquerda as obras inconclusas da Casa de Câmara". É mais
provável que as não tivesse olhado como parte banal e cotidiana
daquele trecho. Em certo dia, "depois de passar pela ponte de
Contrato teria subido a rua Direita", mas, sentando-se para escrever
"novas diatribes (as ‘Cartas chilenas’), teria largado tudo à mesa,
se arrumado com presteza e partido em direção à capela de Sant’Ana
(...)".
Como sabe de tudo isso? Pelas mesmas
certezas com que se refere a Gonzaga na prisão, quando "talvez (sic)
irritado consigo mesmo, escreveu por aqueles dias uma lira (...)".
Com a imaginação desencadeada, ele resolve por meio de uma falsa
remissão historiográfica o problema mais intrigante no trajeto
editorial das "Liras", isto é, como e quando os originais foram
enviados para Lisboa e como se explica e rapidez com que o livro
pode aparecer ainda em 1792: "Em junho, o capitão Francisco de
Araújo Pereira, comerciante que ia a Lisboa a negócios com retorno
previsto para maio ou junho de 1789, aceitou a incumbência de levar
os originais" - o que Adelto Gonçalves documenta com remissão a ADIM,
1ª ed., v. 4, 250, isto é, aos "Autos da devassa da Inconfidência
Mineira" na edição de 1936.
Ora, nem nesse trecho nem em qualquer
outro do auto de perguntas a que Gonzaga respondeu ocorre qualquer
menção à remessa dos originais para Lisboa, incorreção que, lançando
dúvida sobre o rigor historiográfico de Adelto Gonçalves, recomenda
cuidadoso cotejo de todas as suas notas. Outro mistério gonzaguiano
é a indiferença demonstrada pelo poeta com relação ao aparecimento,
não só do livro, na primeira edição, mas também nas subseqüentes e
até da desavergonhada contrafação da "terceira parte".
Não é, porém, um mistério para Adelto
Gonçalves: "Não foi sem pensar nas humilhações sofridas (como
soube?) que leu num exemplar da ‘Gazeta de Lisboa’, com data de 10
de novembro de 1792 (...) a notícia de que saíra publicado em Lisboa
(...)". No "final do ano (de que ano?) outro navio traria (sic)
outro exemplar (...)". Sabendo-se que a rota Lisboa-Moçambique, como
a do Rio-Lisboa, dependia das monções, levando pelo menos dois meses
em cada direção se as condições fossem favoráveis, é difícil aceitar
tanta rapidez nas comunicações. Sabe-se que Moçambique ficava às
vezes mais de um ano sem notícias, o que torna aquelas afirmações
pelo menos duvidosas.
É livro a ser lido com a pulga atrás
da orelha, o que não tira o interesse da parte final em que descreve
a vida de Gonzaga no "desterro", aliás confortável e financeiramente
remunerador, inclusive com posições oficiais na organização
judiciária. Diga-se de passagem que, sendo poeta arcádico, será
incorreto designá-lo como iluminista.
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