Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 14.04.2001



Pólos da poesia



 

 

Castro Alves foi uma força retórica da natureza, impossível de disciplinar e conter nos moldes rigorosos das artes poéticas. Autor de muitos dos mais belos versos da língua (alguns deles incorporados para sempre à memória coletiva) e de fulgurantes fragmentos de poesia no interior dos poemas, tornaram-se proverbiais os seus desleixos de metrificação (como a síncope silábica nas palavras que excediam a medida (séc’lo, c’roa, etc.), além do vocabulário fantasista ("equadores", "infinitos"), a freqüente pobreza intelectual, as soluções de facilidade, as rimas imperfeitas, tudo em larga medida compensado (ou perdoado...) pelo vigor tribunício, pela indignação cívica, pelo empenho profundo nos ideais de justiça social ("Espumas flutuantes & Os escravos". Int., org. e fixação de texto Luiz Dantas/Pablo Simpson. São Paulo: Martins Fontes, 2000).

Esse é, apesar de tudo, um dos pólos de nossa sensibilidade, eletricidade positiva que repele, no outro pólo, a emoção contida, o trabalho artístico como expressão do equilíbrio espiritual, do sentimento clássico de beleza, viva percepção da poesia como arte, sem excluir o contingente intrínseco de artesanato e da tradição literária, no sentido forte da palavra. Esta é a poesia apolínea, por oposição aos excessos ou ao furor dionisíaco, a meditação sobre o destino em face dos arroubos e dos discursos em praça pública. É o pólo em que se situa, por exemplo, o legendário Raul de Leoni, agora redescoberto e revalorizado ("Luz mediterrânea e outros poemas". Org., Int. e notas Pedro Lyra. Rio: Topbooks, 2000).

A luz mediterrânea, luz de velhas civilizações clássicas, em contraste com as reverberações do sol tropical no novo mundo, estabelece as diferenças, por assim dizer físicas, das duas inspirações, mas existe entre elas a curiosa simetria que situa os poetas nas fronteiras de duas idades literárias ou mentais, em duas divergentes visões do mundo: Castro Alves na terra de ninguém que separava o romantismo, de um lado, e o realismo de outro, enquanto Raul de Leoni viveu na fronteira do Parnaso que se extinguia em face do modernismo que se anunciava.

O livro deste último "já nasceu antigo", escreveu Leyla Perrone-Moisés quando se comemorou o centenário de seu nascimento: "Leoni pertence àquele período indistinto e eclético das primeiras décadas do século XX, que em poesia tanto pode ser chamado de neoparnasiano, neo-simbolista, como de pré-modernista, conforme se olhe para o passado ou para o futuro" ("Inútil poesia e outros ensaios breves". São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

Enquadramento com que concorda Pedro Lyra, embora, por paradoxo, considere a inserção histórica "bem menos problemática"; o "dado geracional" resolveria o problema, quando é nele, precisamente, que o problema consiste. De qualquer maneira, segundo pensa, Raul de Leoni, "nascido exatamente no ponto ideal de encadeamento das gerações Decadentista e Modernista e estreante na fase de ascensão da segunda (...) ele tanto poderia ser um dos definidores/ ulteriores da Decadista quanto um dos precursores/ introdutores da Modernista". Assim, estamos todos de acordo, porque o poeta continua na sua fronteira, assim como Castro Alves permanece na dele.

Organizando a nova edição de "Espumas flutuantes & Os escravos", Luiz Dantas e Pablo Simpson põem a ênfase, como é óbvio, na inspiração social, mas não ignoram o momento de transição em que viveu o poeta: "A poesia social de Victor Hugo já havia feito uma temporada por aqui, com suas antíteses arrebatadoras e o pensamento travestido, às vezes, em grande poesia. (...) Mas o espírito romântico é que mudava e era, ao mesmo tempo, capaz de incorporar os temas políticos mais imediatos, recendendo a tinta de imprensa, por assim dizer, ao seu cabedal poético. Um acontecimento como a Guerra do Paraguai, provavelmente sem tanto relevo antes, vinha repercutir não só na voz do orador de tribuna, mas na dos próprios poetas, que passaram de súbito ao seu lado".

Temos de concordar com Sílvio Romero, vendo na década de 1870 o momento em que se iniciou uma nova idade em nossa vida intelectual, com inevitáveis ou instintivas repercussões renovadoras na criação literária. É conjuntura idêntica à que ocorreu na segunda década do século XX, de forma que dois poetas tão diversos e até opostos em inspiração e temperamento, na verdade reagiram como sismógrafos despercebidos de momentos literários peculiares.

Acrescente-se o pormenor perturbador, talvez apenas coincidente, de terem morrido jovens e tuberculosos, como costumavam morrer os poetas românticos: Castro Alves com 24, e Raul de Leoni com 31 anos. Ambos destinados, por isso mesmo, à glorificação póstuma, mas em parâmetros inconfundíveis: Castro Alves na praça pública e nas consagrações ruidosas, Raul de Leoni como objeto de culto na pequena capela secreta de poucos admiradores.

 

 

 

 

 

22/09/2005