Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins


 



Prosa & Verso, 12.05.2001



Antologias e os esquecidos


Seleções trazem alguns nomes excepcionais e muitos medíocres


 

A lei dos grandes números joga contra as assembléias de qualquer natureza — parlamentos, tribunais corporativos, congressos de escritores e cientistas, órgãos deliberativos, conselhos consultivos...— reduzindo-lhes o gabarito intelectual e mental ao mínimo denominador comum, em lugar do máximo que sua composição pareceria garantir: o QI coletivo cai sensivelmente. Sua sabedoria não é cumulativa, suas decisões, simplificadoras.

Esse é também o efeito perverso das assembléias peculiares que são as antologias literárias, nas quais a qualidade média dos participantes é sempre inferior à dos melhores, necessariamente excepcionais, dois ou três que se destacam do grande pelotão, cuja mediocridade se torna ainda mais evidente. Ao contrário dos pressupostos implícitos de que partem, as antologias não selecionam mas acumulam, desejando-se tanto mais perfeitas quanto mais exaustivas (nos dois sentidos da palavra). Sua ambição contraditória é recuperar do esquecimento obras e autores destinados a desaparecer, e que já estavam desaparecendo na voragem do tempo, juiz implacável e irrecorrível.

A sensação angustiosa do esquecimento motivou duas antologias simultaneamente publicadas sobre a Geração de 60, que, como a de 45, reivindica o seu lugar na história pelo simples fato de haver existido num determinado milésimo cronológico, sem que, em conjunto, se identifique pelo “ismo” característico dos novos programas estéticos. Uma delas, voltada para o passado, é claro testemunho, não de uma idade literária, mas da idade civil dos autores (“Antologia poética da Geração 60”. Álvaro Alves de Faria e Carlos Felipe Moisés, orgs. São Paulo: Nankin, 2000). A outra, também organizada por Álvaro Alves de Faria, tem ambições maiores (“Brasil 2000: antologia da poesia contemporânea brasileira”. São Paulo: Alma Azul, 2000).

O ano poético terminou com essas duas garrafas de náufrago, lançadas no oceano do oblívio para os eventuais leitores futuros. A primeira responde a propósitos didáticos (o que se deve, creio eu, a Carlos Felipe Moisés), distinguindo quatro grupos decenais na poesia dos últimos anos: 1960-69; 1970-79; 1980-89 e 1990-99. Ou seja: a Geração de 60 teria durado quarenta anos, o que corresponde a quatro vezes o que convencionalmente se reserva para a vida útil de cada uma.

Segundo os organizadores, a poesia brasileira tem-se dividido, nas últimas décadas, “entre o palanque, o salão e o gabinete — tendências, não mais, figurações abstratas, sem existência própria. (...) Nos anos 60, sintonizada com a invulgar efervescência do período, a grandiloqüência brilhou alto, relegando a segundo plano a varanda e o gabinete. Mas seu abuso permitiu que, de meados dos anos 70 ao final dos 80, este último reinasse quase absoluto, isto é, quase até à inanição absoluta. Os anos 90 assistem à revoada geral das três tendências se não em compasso ecumênico, ao menos de entrelaçamento consentido”.

Preocupações de professores e críticos. As dos leitores resumem-se numa indagação simples: é boa poesia? Bem entendido, é valor movediço e variável, sendo “boa poesia” para alguns o que para outros será apenas “não-poesia”. Contudo, as antologias não se fazem de poesia, mas de poemas, sendo essa a diferença essencial e a fonte de todas as confusões. Álvaro Alves de Faria introduz o seu volume com declarações de cada poeta sobre a sua arte, todas referentes à entidade platônica chamada poesia, não à sua “imitação” como texto escrito.

De fato, ninguém discordará de que “a poesia é um salto no escuro como o amor” ou de que “a poesia é e sempre será a revelação do real, a forma mais perfeita de conhecimento, só equiparada ao conhecimento na fé, à experiência mística”. Pode ser verdade, mas não deixa de sê-lo no que se refere também à filosofia, à ciência, à religião, ao ocultismo, ou seja, é conceito que, pela generalidade, não significa nada, porque em literatura, como ficou dito, não se trata de poesia, mas de poemas.

Uma poetisa revela que a “sua relação com a escrita, com a palavra, é uma relação apaixonada, de tesão, sensual, eu diria que até carnal, uma relação sexual, onde há atração e rejeição, orgasmo e tudo o mais”.

Muito interessante, mas o que importa é saber até que ponto tanto sensualismo pessoal e intransferível interessa ao leitor e se o poema veicula de fato os transes incontroláveis. Na verdade, a leitura é um exercício puramente intelectual: não lemos com os sentidos, mas com a inteligência. Seja como for, as antologias dos novos, dos novíssimos, das gerações, das escolas, das vanguardas, destinam-se a reivindicar o reconhecimento que a impaciência dos jovens poetas e dos mestres esquecidos julga que lhes é negado e acreditam merecer.

A melhor antologia é a que fazemos para nós mesmos, conforme o título que um poeta francês escolheu para a sua, verdade fundamental que torna ociosas todas as discussões. Caso peculiar é o dos poetas que organizam seleções da própria obra, reunindo poemas pelos quais desejam ser lembrados ou permanecer na história do gênero. É o que fez Manuel Bandeira, publicando a sua em 1937, sucessivamente acrescida por aluvião, nas edições posteriores, à medida em que apareciam novos livros. A mais recente, apresentada como “nova edição”, é a 12 , indo até “Estrela da tarde” e incorporando os “Poemas traduzidos” e “Mafuá do malungo” (Rio: Nova Fronteira, 2001).

Que significa isso? Que considerava inferiores os poemas omitidos? Longe disso! Destinada ao público amador, a escolha deve ter sido feita com agoniadas hesitações, respondendo apenas aos interesses comerciais do mundo editorial. É o Bandeira das famílias, e também obra de consulta tão boa quanto qualquer outra, subentendendo-se que servirá de motivação para a leitura da obra completa.

 

 

 

 

 

22/09/2005