Wilson Martins
A crítica como ofício
(in
JB Online,
27.08.2005)
Paula Barcellos
Nas páginas dos
jornais desde 1946, Wilson Martins, aos 84 anos, ainda mantém com
vigor sua audácia. Não por menos, é considerado por muitos o último
grande crítico literário brasileiro. Com uma longa trajetória
refletindo, exaltando e polemizando a literatura – poucos têm a
coragem de admitir que não acham Nelson Rodrigues “isso tudo” – e
dezenas de livros publicados, Martins, a partir da próxima edição do
Idéias, volta a atuar no JB, onde trabalhou por quase duas décadas.
No retorno, pretende derrubar as idéias comuns. Ou como diz:
“separar o trigo do joio e não o joio do trigo”. Rotulado como
conservador e extremamente severo, o crítico rebate as
generalizações:
– Só sou conservador na medida em que a literatura é conservadora.
Não se pode revolucionar a literatura todos os dias – admite.
Como ressalta a seguir, não há mais movimentos que busquem uma única
reformulação. E o fato de surgirem gerações (como a 90 e a 00), para
Martins, não significa muito. Seria a busca de popularidade, de
propor uma novidade que não existe. É o início de muitas polêmicas.
Como o senhor analisa a atual crítica
literária publicada na imprensa? Ainda há, de fato, crítica
literária?
– Podemos começar por essa idéia negativa, mas real, de que a
crítica literária como se praticava nos século 19 e 20 desapareceu
dos jornais. Em princípio por falta de espaço. A crítica literária
propriamente dita exige um grande desenvolvimento. Não basta dizer
se o livro é bom ou mau, é preciso dizer o porquê. É nessa
argumentação que o crítico necessita de um espaço maior. Mas de
qualquer maneira se nos detivermos apenas ao final do 19 e início do
20, a crítica foi representada, digamos, por José Verissimo. Foi um
crítico que se chamava de rodapé – uma invenção dos franceses:
colocaram o artigo no rodapé da página, obtendo paginação uniforme e
regular, sem quebrar o texto.
E no século 20?
– O grande nome no início do século foi Tristão de Athaíde (Alceu
Amoroso Lima), que começou fazendo crítica de rodapé no O Jornal.
Nos anos 40, apareceu um grande nome: o Álvaro Lins – crítico
titular, como se chamava naquele tempo, do Correio da Manhã. Foi um
homem que exerceu uma grande autoridade: seus artigos ou lançaram
escritores novos, como foi o caso de Guimarães Rosa, que só apareceu
devido a um artigo do Álvaro Lins. Ou então destruir uns pobres
coitados que apareciam com uma literatura inferior. Ainda nos meados
de 40, surgiu o Antonio Candido em São Paulo. Mas por pouco tempo
foi crítico militante.
De lá para cá, o espaço da crítica diminuiu na
imprensa e a maioria dos suplementos apresenta-se como um compêndio
de resenhas. Não se constrói nem se destrói mais autores. Vive-se um
período de marasmo. Concorda?
– Nesse trajeto todo, o espaço da crítica vem diminuindo e
acompanhei essa espécie de depressão crítica. O crítico, costumo
dizer, precisa separar o trigo do joio e não o joio do trigo. Essa
no fundo é a função do crítico. Contra a idéia comum, o crítico
honesto, sério, tem uma missão mais construtiva de texto. Quanto a
reverter essa situação, sinceramente, tenho minhas dúvidas porque
entramos numa nova civilização intelectual, na civilização da
imagem. Os jornais estão hoje preferindo muito mais a imagem sobre o
texto, quando a crítica realmente exige a predominância do texto
sobre a imagem. Tanto que caiu na moda ilustrar o artigo. Essa
civilização da imagem, imposta antes de mais nada pela televisão,
informática, está aí para ficar. Por isso a crítica diminuiu de
tamanho e foi substituída pelas resenhas, muitas superficiais, em
tom agradável. Há também a idéia de dar sempre o lançamento. Os
jornais recebem releases das editoras e algumas resenhas reproduzem
o que vem pronto.
Desiludido pelo pragmatismo do mercado
editorial, alguma vez pensou em largar a crítica?
– Não. Aí é uma questão ou de temperamento ou de talento. Não sei
fazer outra coisa. Ou faço isso ou desapareço. Como dizia o
humorista, sou pago para fazer aquilo de que gosto. Como tenho um
temperamento, no fundo, otimista e enérgico, jamais sofri desalento.
E encaro a crítica não como uma obra sublime de criação. Mas como um
ofício do dia-a-dia, de uma tarimba literária. Leio o que aparece,
escrevo sobre ele. Não há nada de teológico ou metafísico nesse
trabalho.
Por que as universidades privilegiam os
ensaístas e não investem na formação de críticos?
– Isso é perceptível no meio universitário. A crítica tem um
compromisso com a atualidade, com o que vai aparecendo. Já o ensaio
literário é muito mais extenso e tem interesse pelos autores do
passado. Os ensaístas universitários gostam muito de escrever sobre
Machado de Assis, José de Alencar. É o caminho da facilidade, o
ensaísta está percorrendo um terreno seguro. As idéias já estão
prontas, os pensamentos críticos já se estabilizaram. De forma que
no fundo uma boa parte desses ensaios ou são minuciosos demais a
respeito de pontos pouco fundamentais ou apenas repetem aquilo que
já se sabe. No caso de Guimarães Rosa, há uma biblioteca sobre ele.
Mas só uns quatro ou cinco livros realmente valem a pena.
A escassez de críticos militantes pode
prejudicar a cultura brasileira?
– Acho que sim, mas talvez seja suspeito para dizê-lo. O que está
acontecendo é o seguinte: o leitor não é mais provocado para
refletir. O crítico literário escrevia contra uma obra ou contra um
autor e movimentava um grupo de leitores contrários ao crítico ou ao
autor. Isso estimulava a reflexão crítica. A resenha é puramente
informativa, não provoca pensamento mais profundo. A minha idéia, ao
contrário, é esta: a primeira função do crítico é desafiar o leitor
a pensar como ele ou contra ele.
O senhor defende a idéia de gerações
literárias, tal como estão sendo difundidas as chamadas 90 e 00?
– Acho isso como uma espécie de superficialidade do espírito. A
idéia de geração tem um certo sentido em análise literária, mas no
que se diz a longo prazo. Uma geração literária só se modifica num
prazo que, segundo os autores, varia entre 15, 20, 30 anos. Aí há
diferenças profundas. De ano para ano, apenas pela diferença da data
de nascimento dos autores, não significa nada. Qual a diferença de
qualidade ou de natureza entre a literatura de 1960 e 1965? Não há.
É um pouco da busca do que chamaria de popularidade: a idéia de
propor uma novidade que não existe.
O senhor identifica traços comuns na
literatura brasileira contemporânea?
– Na literatura em geral não há características comuns. Hoje estamos
vivendo aquela famosa situação de que é cada um por si e Deus contra
todos. A idéia de que cada escritor quer renovar alguma coisa
sozinho. Não há idéia de movimento, nem de grupos homogêneos como
era clássico em tempos antigos. Tirando movimentos superficiais que
não duram mais do que 3, 4 anos, realmente a idéia grupal
desapareceu. Há muito mais individualismo na criação literária do
que anteriormente.
Há um gênero literário em evidência no
momento?
– Ainda de maneira meio vaga, o gênero que está predominando é o
romance. A poesia tem uma imensa produção, mas de uma subpoesia que
não vai ficar na história da literatura. O que tem aparecido são
bons romancistas. E diria, antes, bons romances. São obras que
também continuam isoladas, de forma que essa idéia de movimento
desapareceu.
O que o senhor mais observa na produção
nacional: a compreensão do país ou estilo do autor?
– Vamos colocar na ótica do romance. O romance que está correndo
atualmente tem as temáticas mais variadas. Há romances de cunho
histórico, outros mais enigmáticos. Desse ponto de vista, não se
pode dizer que há uma ligação direta entre literatura e realidade.
Mas fica claro que a realidade de forma sutil está agindo na
literatura. Não é a literatura, é o autor que está imerso num
universo, no Brasil. E, indiretamente, a cabeça do autor filtra a
realidade que resulta na obra. Ainda há uma preocupação, mesmo que
vaga, com temas ligados à história do Brasil, às camadas populares.
Há um sentimento de realidade, mesmo que não sejam realistas no
sentido direto da palavra.
Seria a permanência de um regionalismo, mas de
caráter universal?
– É preciso notar que o período de 30 foi excepcional nele mesmo.
Coincidiu com o aparecimento de uma ideologia política esquerdista e
o surgimento de numerosos escritores chamados do nordeste que
traziam aquela temática local. Essa espécie de unificação da
temática, do estilo e da visão literária foi excepcional naquele
tempo. Agora é preciso notar que o chamado romance nordestino foi
escrito no Rio de Janeiro. Autores de Pernambuco, da Bahia, do
Ceará, mas que, na verdade, escreviam no Rio de Janeiro. Eles
estavam refletindo uma ideologia urbana, a ideologia política
daquele momento. A literatura como documento social, mas sempre de
um ponto de vista urbano. Os nordestinos, digamos comuns, não viam o
mundo desta maneira. Quem viam eram os escritores educados
literariamente e com leituras internacionais, que viam essa
realidade de fora. Essa é que é a verdade. Seja Jorge Amado,
Graciliano Ramos, no fundo, são homens de cidade, viveram seus temas
locais, mas transpondo-os para um plano literário que já estava
acima da realidade material de todo o dia.
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