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Wilson Martins


 


A utopia americana


30.04.2005
 


 

Em caminhada incessante e obsessiva, Don Álvar Núñez Cabeza de Vaca, tal como Ponce de Leon, percorreu as Américas em busca da Fonte de Juventude — bela metáfora para o que o mundo apropriadamente chamado de Novo representava como mito regenerador no ideário dos europeus quinhentistas (Fábio Campana. O último dia de Cabeza de Vaca. Curitiba: Travessa dos Editores, 2005). Sua trajetória foi típica da época: “Lugar-tenente de um Adelantado, Adelantado, governador e capitão-geral”, passou a maior parte de sua existência sob o reinado de Carlos V. Foi “um personagem de equívocos e desencontros desde o ano de 1527”, escreve Fábio Campana, mas o que há de espantoso em sua vida é o capítulo americano: “Atravessou o território que hoje é o estado do Paraná, e deu-lhe a primeira alcunha do tomar posse, em nome da Coroa espanhola: Província de Vera. Alcançou a foz do rio Iguaçu. Foi o primeiro europeu a ver as cataratas e a escrever suas impressões. Transpôs o rio Paraná e avançou até encontrar Assunção, onde a sua vida e a do presbítero Francisco Paniágua se ligariam para sempre”.

Lembre-se que tudo isso se passava na primeira metade do século XVI, quando os portugueses do Brasil ainda “arranhavam o litoral como caranguejos”, para lembrar a imagem cáustica de frei Vicente do Salvador. Cabeza de Vaca, ao contrário, era um “conquistador” de legenda e um aventureiro de temperamento, mais integrado em sua época do que afirma Fábio Campana em parágrafo algo contraditório: “Defensor de idéias e princípios inaceitáveis na Espanha de Carlos V e nas expedições que saíam em busca de ouro e prata do outro lado do oceano. Brigou por suas idéias e pagou caro por elas. Na vida de Don Álvar Núñez Cabeza de Vaca nada aconteceu na maneira que se poderia esperar de um herói de seu tempo, um conquistador do Novo Mundo. Cumpriu anos de masmorra esperando a sentença final antes de ser recolhido ao asilo” — o convento em que o narrador diz tê-lo encontrado no seu último dia.

Foi, de fato, um conquistador que só “conquistou” malogros, a começar pela Fonte de Juventude, evanescente na atmosfera rarefeita da imaginação, hoje reduzida, por ironia, em cidade de atração turística na Flórida: “Do ponto de vista dos conquistadores, o relato da primeira aventura americana de Don Álvar é o de um fragoroso insucesso. Dos seiscentos homens que saíram da Espanha, em 1527, apenas quatro regressaram. A odisséia e sua incrível jornada de três mil milhas, a pé, até a cidade do México, foi registrada por Don Álvar na narrativa ditada em 1542 e conhecida por ‘Naufrágios’”.

O título é emblemático, se não simbolicamente sugestivo: “Encima a história do fracasso, da morte e da violência. É também a história de europeus reduzidos ao canibalismo para sobreviver, forçados a converterem-se em escravos de índios tão miseráveis quanto eles”. A história das ilusões americanas ia se transformar gradativamente na história das desilusões americanas, espécie de tema permanente, diga-se entre parênteses, na história do continente até aos nossos dias. Se as ilusões, ontem como hoje, se constituíram na pauta do imaginário fantasioso, as desilusões confirmaram-se na pauta das tragédias irrecuperáveis. Note-se, de passagem, o estranho paralelismo das trajetórias de Cabeza de Vaca e Carlos V, soberano e vassalo, grandes conquistadores de quimeras, para terminarem, afinal, na solidão amarga de uma cela conventual: “despojado de todos os títulos”, Carlos V morreu em 1558 no mosteiro de Yuste, sendo possível aplicar-lhe perfil semelhante ao de Cabeza de Vaca, tal como o narrador o encontrou no seu último dia — “Seu rosto e os cabelos grisalhos ocultos pelo capuz não o distinguia dos religiosos de rostos suarentos, ansiosos, imersos na rotina da salvação da alma, imperturbáveis no ritual das orações, recontando os terços, encerrados em culpas e penitências. Não é o mesmo. Envelheceu, mirrou, parece mais baixo, encurvado dentro da veste que herdou de alguém mais alto e espadaúdo”.

Se há um paralelo entre as vidas de Carlos V e Cabeza de Vaca, não é menos sugestivo o que se estabelece entre Cabeza de Vaca e o continente que receberia mais tarde o nome de América Latina, terra de conquistadores derrotados e fantasistas retóricos: “América, quanto engano. Onde o paraíso dos trópicos, a floresta luxuriante, os animais estranhos e os nativos gentis? Nada se parece com os relatos que circulavam em Sevilha e Cádiz, desde que foram publicadas as cartas de Colombo, as relações de Cortez e o libreto de Antonio Pigaffeta (...). Quanta ingenuidade em homem tão provado nas situações mais desafiantes. Não compreendeu que a história dos conquistadores seria escrita não por eles, mas pelos soberanos, capítulo por capítulo, da mesma forma que estão escritas as crônicas e os feitos heróicos de nossos reis. As guerras e a conquista revestidas de nobres motivos, nunca as confissões dos saques, das atrocidades cometidas para rechear um galeão de ouro e prata que seriam gastos em novos palácios e em novas guerras”.

Preço que começou a ser pago desde logo pelos aventureiros: “E que fizeste, Espanha, de teus conquistadores? O mesmo Império que os honrou, ao torná-los afortunados e heróis, também os degradou. O primeiro e maior de todos, Cristóvão Colombo, foi devolvido, acorrentado, a Sevilha. Hernán Cortez perdeu todos os títulos e foi impedido de viver em Antequera, a capital de seus domínios. Restou-lhe o feudo e o exílio nas imensidões vazias entre Cuernavaca e Oaxaca. No Peru, Gonzalo Pizarro foi executado por insubordinação, depois de dominar os incas e saqueá-los para abarrotar o tesouro real. Diego de Ordas, um dos capitães de Cortez, foi eliminado a pedido da Corte (...)”.

“Ó glória de mandar! Ó vã cobiça!” clamava o obscurantismo pela voz do Velho do Restelo no cais de Belém, quando partia a gloriosa frota de conquistadores portugueses, levando com eles a mensagem terrível do terror cósmico: “Oh, maldito o primeiro que, no mundo/ Nas ondas vela pôs em seco lenho!” — anátema que os perseguiu a todos, nos mares e nas terras do Oriente e do Ocidente, nomeadamente as do Novo Mundo ainda mais gentílico. Don Álvar, diz o narrador, “foi apenas mais um dos fidalgos traídos de Espanha (...) El Tormentoso, dizem nos cais os ébrios e os loucos, os marinheiros e as prostitutas, os cavalheiros e seus dublês, esta gente ímpia e ao mesmo tempo valorosa que participou da construção do Império”.

Enquanto isso, no fim da vida, lá se extinguiam em suas celas conventuais o homem que palmilhara as Américas em busca da Fonte de Juventude, fossem quais fossem as suas espécies reais, e o Imperador que por um momento havia conquistado as enganosas grandezas mundanas.

 

 

 


 

24/11/2005