Wilson Martins
Estante da crítica (I)
02.04.2005
Se poucos leram as obras-primas da literatura universal, cabe temer
que serão ainda menos numerosos os leitores das obras-primas da
crítica literária, uns e outros concorrendo para baixar, cumulativa
e progressivamente, o QI coletivo das nações. Por inesperado, é
possível que a leitura das obras-primas da crítica abra caminho e
desperte o interesse pelas obras-primas da literatura: é pelas
análises judicativas e interpretativas que realmente chegamos a
“compreender” por que as obras-primas tornam realidade sensível a
idéia de literatura (Heloísa Seixas, org. “As obras-primas que
poucos leram”. 2 vols. Rio: Record, 2005).
De “O castelo” a “Crime e castigo”, passando por “Madame Bovary” e
“Em busca do tempo perdido”; de “Servidão humana” a “Dom Quixote”,
passando por “Orlando” e “Bola de sebo”; de “Brás Cubas” a “Trópico
de câncer”, passando por “Angústia” e “Uma tragédia americana”, a
idéia de literatura é ao mesmo tempo una e múltipla,
materializando-se em criações que nada têm de comum entre si, salvo
o fato de serem as obras-primas confirmadas pelos séculos. Cada uma
delas situa-se numa ordem peculiar de grandeza, tão inconfundível
quanto inassimilável, todas inscrevendo-se no nível de grandeza
coletiva que designamos pelo nome plurissemântico de qualidade. Mas,
individualmente consideradas, cada uma condicionada por suas
idiossincrasias, estão “destinadas” a produzir aquela obra que nós,
leitores, percebemos desde logo que não poderiam ter sido
diferentes.
Claro, tão variados e incompatíveis entre si como os autores e
obras, os leitores escolhem as suas próprias obras-primas,
pressupondo, bem entendido, o mesmo plano de competência no ponto de
partida. Os admiradores de Dostoievski certamente não lêem Charles
Dickens com o mesmo fervor, assim como não pertencem à mesma “chave”
literária os leitores de Machado de Assis e James Joyce. Oscar Wilde
dizia que era preciso ter um coração de pedra para não cair às
gargalhadas nas passagens lacrimejantes de Charles Dickens,
romancista que Otto Maria Carpeaux não encarava com maior
benevolência: “Li todos os romances de Charles Dickens e esqueci-os
todos. Não é possível guardar na memória os enredos dessas obras,
que são complicados, melodramáticos, inverossímeis, confusos.”
Ninguém, entretanto, esqueceria jamais, não só o enredo, mas a
atmosfera e o gabarito intelectual de Dostoievski, tanto o de “Crime
e castigo”, romance policial na classificação de Carpeaux, quanto o
do não menos policial “Irmãos Karamázovi”.
Preso e condenado como revolucionário, ele, sendo eslavófilo, era o
contrário de um revolucionário e até de um espírito moderno: “foi
mais um conservador. Foi franca e confessadamente reacionário.
Adorava o czar e o regime do czar e proclamava-se filho fiel da
Igreja Ortodoxa”. Mas, como era um grande escritor, e tão
entranhadamente russo, muito lhe foi perdoado: “nem sequer o regime
soviético chegou a condenar o ultra-reacionário Dostoievski”, de
cujos livros saíam, todos os anos, na União Soviética, novas
edições, sobre as quais se acumulavam, sem fim, os estudos críticos.
Os regimes totalitários não são menos oportunistas que os outros,
perdoando e condenando os intelectuais, as idéias e as obras ao
acaso das conveniências. Eram célebres os volumes da “Enciclopédia
soviética”, que, de reedição para reedição, eliminavam os nomes
caídos em desgraça, acrescentando outros e diminuindo ou aumentando
os respectivos verbetes, tudo isso levando uma historiadora a
declarar que o passado do seu país era imprevisível...
Mesmo a Academia Sueca, supremo tribunal internacional da
literatura, “nunca julgou os candidatos conforme critérios puramente
literários. Sempre teve preocupações geográficas... e preocupações
políticas: uma vez um comunista e outra vez um anticomunista” (Carpeaux).
Mas, não há regra: Malraux, visto sucessivamente como esquerdista e
direitista, candidato “natural” e permanente da França e do mundo
desde “A condição humana”, jamais foi premiado, sendo, embora, como
o qualifica Carpeaux, “o representante literário mais típico do
século XX”. Não menos representativo do século, na outra ponta do
espectro, o argentino Jorge Luís Borges, “homem de direita”, diz
Carpeaux, “miseravelmente perseguido pela ditadura de Perón...
perdeu a direção de uma biblioteca em Buenos Aires e foi degradado a
inspetor de preços de galinhas nas feiras (...).” Recebeu prêmios
internacionais importantes, um deles concorrendo com Guimarães Rosa
e outra vez em São Paulo, mas jamais o mitológico Nobel, para o qual
foi o eterno candidato virtual. Ele mesmo declarou haver na Academia
Sueca uma tradição, anualmente comemorada — a de jamais conceder-lhe
o Prêmio Nobel...
Os ensaios aqui reunidos foram publicados na revista “Manchete”, de
1972 a 1977, cabendo perguntar, com Heloísa Seixas, “como era
possível uma revista popular de informação, famosa também por suas
matérias sobre concursos de fantasias e bailes de carnaval, abrir
toda semana cinco ou seis páginas para artigos sobre literatura — de
tal categoria e profundidade”. Note-se que não se trata de artigos
jornalísticos ou de divulgação, mas de ensaios críticos de alta
qualidade, assinados por Otto Maria Carpeaux, Josué Montello, Lêdo
Ivo, R. Magalhães Júnior e Paulo Mendes Campos, para lembrar apenas
alguns nomes. Menção à parte deve ser feita aos brilhantes artigos
de Ruy Castro que, ao lado dos veteranos e consagrados, introduziu
na coletânea a vivacidade, o espírito e os conhecimentos que
pareciam trazer em potencial o grande crítico de sua geração. O que
escreveu sobre O. Henry pode ficar como página definitiva, não menos
que as que consagrou ao caso singular de W. Somerset Maugham: “Vocês
gostam de Somerset Maugham? Todo mundo gosta. Nove entre dez
exilados em ilhas desertas disseram que levariam com eles um livro
de Maugham. Tanto prestígio entre os leitores dá até para
desconfiar. Ninguém pode ser tão popular e bom ao mesmo tempo. Se
for, é porque há alguma coisa errada, com os leitores ou com a
literatura — perguntem aos críticos”.
Ruy Castro escrevia com alegria e gosto, longe do soturno mau humor
e da seriedade inquieta dos professores. Do “Tom Sawyer” a Orwell,
das “Minas de Salomão” (que não foram escritas por Eça de
Queiroz...) a Karel Capek, é homem que encontrava prazer na leitura
e nô-lo transmite, começando por despertar o nosso próprio. Aquele
prazer físico sem o qual, dizia Thibaudet, não existe amor da
literatura digno desse nome.
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