Acreditando-se revolucionárias, as gerações de 1960/70, e não só no
Brasil, eram, na verdade, compostas de místicos em busca do paraíso
terrestre sob as espécies de paraísos imaginários, por meio de
drogas alucinógenas, desregramento de costumes, retorno ao mundo
primitivo, tudo confundido, na prática, com os imperativos da
existência sórdida. Caio Fernando Abreu (1948-1996) terá sido entre
nós o seu vulto paradigmático, sem excluir o homossexualismo e a
promiscuidade, tudo em nome do repúdio às iniqüidades do capitalismo
burguês, logo chamado de consumismo e, já agora, de globalização
(Caio 3D: o essencial da década de 1970. Rio: Agir, 2005).
No texto insuspeito da carta a um amigo, ele mesmo situava-se e
situava “Morangos mofados” (sua obra mais representativa) nesse
universo todo particular: “sou típico, como sou estereótipo da minha
geração”, incluindo-se expressamente na galeria prestigiosa dos
escritores malditos, marginais ou contestatários: “Clarice
(Lispector), para mim, é o que mais conheço de GRANDIOSO,
literariamente falando. E morreu sozinha, sacaneada, desamada,
incompreendida, com fama de ‘meio doida’. Porque se entregou
completamente ao seu trabalho de criar. Mergulhou na sua própria
trip e foi inventando caminhos, na maior solidão. Como Joyce. Como
Kafka, louco e só lá em Praga. Como Van Gogh. Como Artaud. Ou
Rimbaud”.
Claro, haveria muito o que dizer sobre a Clarice “sozinha”, “sacaneada”,
“desamada” e “incompreendida”, mas não é o que importa. Seriam esses
os “fanais” da terminologia baudelariana, o Baudelaire que disse
haver sentido passar o “sopro da imbecilidade” e que também viveu no
território tenebroso em que confinam a razão e a loucura, o gênio e
a tolice. Contudo, as gerações de 1960/70 acrescentaram um valor
novo como filosofia de vida: “Dentro da engrenagem, ser hippy é a
única forma digna de sobreviver. Eu acho que poderia comparar os
hippies brasileiros com os dos países desenvolvidos. Dentro de um
certo limite, claro. Na Europa, os hippies são revoltados contra uma
sociedade superdesenvolvida. No Brasil, não se pode dizer que eles
são revoltados contra uma sociedade subdesenvolvida, porque o Brasil
não é um país subdesenvolvido. Então, um hippy paulista é igual a um
hippy inglês ou parisiense, mas ninguém consegue imaginar um hippy
amazonense. No Amazonas ele não tem por que se marginalizar, se ele
já é um marginal”.
Tratava-se, pois, de se hipostasiar nos hippies ingleses ou
holandeses, suecos ou franceses, passando a viver por osmose e
contigüidade nos altos lugares da existência mística, sem excluir a
identificação com as religiões orientais e assemelhadas, fonte de
todo misticismo autêntico. Em carta de Londres, à mãe, dizia ele:
“Conheci uns caras sensacionais, que transam um negócio chamado
Arica. É uma espécie de síntese de conhecimentos esotéricos e
mágicos — com base na ioga, na macrobiótica, no budismo zen,
astrologia, física nuclear, etc.”. Era um negócio como qualquer
outro: “O treinamento que dura 40 dias, é muito caro, £ 200 — mas
estou fazendo uma hora por semana, gratuitamente. Depois quero fazer
4 horas aos sábados, são £8 por mês. Os resultados são incríveis: a
mente se abre para a magia, para o oculto, o corpo se equilibra — e
o estágio final é o estado de SATORI, a iluminação ou o encontro com
Deus dentro da gente mesmo”.
Mas ainda em Londres percebem-se os primeiros sinais do desencanto:
“Certo, eu li demais zen-budismo, eu fiz ioga demais, eu tenho essa
coisa de ficar mexendo com a magia, eu li demais Krishnamurti,
sabia? E também Allan Watts, e D. T. Suzuki, e isso freqüentemente
parece um pouco ridículo às pessoas. Mas, dessas coisas, acho que
tirei pra meu gasto pessoal pelo menos uma certa tranqüilidade”.
Tranqüilidade auto-sugestiva e efêmera, porque havia, acima e por
trás de tudo o chamado da literatura, o sonho não poderia durar, a
vida mística não poderia existir no mundo profano de todos os dias,
com o seu realismo grosseiro.
É nesse quadro que se coloca a questão do homossexualismo: “E sou
muito franco com você”, escrevia a uma amiga: “tenho um componente
homossexual muito forte. Até hoje minhas relações heterossexuais
sempre foram, sei lá, muito idiotas — porque, realmente, afora você
e uma ou outra garota gaúcha, M., o corpo feminino é uma coisa que
não consegue me entusiasmar. Nunca fui exclusivamente homossexual ou
exclusivamente heterossexual — creio que nunca serei”.
Nessas perspectivas, tendo escrito contos excelentes sem conotações
homossexuais (como “Fuga”, “O ovo” ou “Uma história confusa”), os
mais característicos têm por tema o amor que outrora não ousava
dizer o seu nome, como “Madrugada”, sobre o instintivo e imediato
reconhecimento de dois homossexuais desconhecidos num bar:
“Desconhecidos — mas somente antes do encontro. Que acontecera no
bar. Então, unidos pela mesma cerveja, pelo mesmo desalento,
deixaram que o desconhecimento se transmutasse naquela amizade um
pouco febril dos que nunca se viram antes. (...) Com a lucidez dos
embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou
talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo sem o
álcool, numa rua repleta saberiam encontrar-se. O fulgor nos olhos e
a incerteza intensificada nos passos fôra a pergunta de um e a
resposta do outro”.
No conto “Anotações sobre um amor urbano”, há momentos de grande
sensualidade: “O cheiro do teu corpo persiste no meu durante dias.
Não tomo banho. Guardo, preservo, cheiro o cheiro do teu cheiro
grudado no meu. E basta fechar os olhos para naufragar outra vez e
cada vez mais fundo na tua boca (...)”. Sabe-se, afinal, que se
trata de um parceiro: “E o vírus caminha em nossas veias,
companheiro”. Se dúvidas houvesse quanto à natureza do “vírus”,
basta ler as linhas anteriores: “A cidade está podre, você sabe.
Como posso gostar limpo de você no meio desse doente podre louco?
(...) Como evitaremos que nosso encontro se decomponha, corrompa e
apodreça junto com o louco, o doente, o podre?”.
A figura de “escritor maldito” calha mal no autor de “Morangos
mofados”, grande sucesso editorial da década de 1980, escritor que
passou a vida recebendo importantes prêmios literários (Status,
1980; Jabuti, 1984; Moliére, 1988). Lendo-o, resta a impressão de
que não teve a carreira que poderia ter tido, a carreira que
desejaríamos que tivesse e que merecia.