Wilson Martins
História de jornal
01.10.2005
Com a transferência do governo português para o Brasil, iniciou-se o
movimento sutil, mas irreversível, de nossa autonomia mental, para
além da intelectual propriamente dita. Na historiografia de
convenção, o assunto tem sido tratado como simples capítulo
complementar da temática política e econômica, mas a verdade é que o
jornalismo teve um papel ao mesmo tempo dinâmico – promovendo-o – e
reflexo, na medida em que o refletia no desenvolvimento do que
podemos denominar da civilização brasileira. Observe-se, antes de
mais nada, que a Família Real trouxe consigo os instrumentos
indispensáveis ao processo civilizatório: a imprensa e a biblioteca,
o que desde logo desmente a tese tendenciosa da fuga precipitada
caótica, já de há muito desacreditada por Oliveira Lima.
No que se refere ao jornalismo, os historiadores, sem excluir os que
o tomaram para objeto específico de estudo, costumam concentrar todo
o interesse na Imprensa Régia, tratando os jornais de província de
maneira claramente subsidiária. Ora, a realidade é diferente e até
aposta, pois sua influência terá sido talvez ainda mais decisiva no
aprimoramento dos espíritos, na educação coletiva, na divulgação dos
conhecimentos e conseqüente atualização técnica e científica. É o
que demonstra Maria Beatriz Nizza da Silva na história da Primeira
gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brazil (2ª ed., rev. e amp.
Salvador: Editora da Universidade Federal da Bahia, 2005).
Por que “gazeta”? Desde o século XVIII, escreve ela, “a Encyclopédie
de Diderot e d’Alembert assinalava a diferença fundamental entre
gazette e journal, atribuindo ao primeiro um caráter marcadamente
noticioso, e possuindo o segundo características mais literárias e
científicas. A distinção tornou-se canônica na França, como se sabe,
mas, em língua portuguesa, são palavras sinônimas e intercambiáveis,
a segunda pelo uso genérico e a outra por especificações eventuais.
A Idade d’Ouro do Brazil, como todos os periódicos da época, era
simultaneamente “gazeta” e “jornal”, por onde se revela e acentua o
caráter educativo que as circunstâncias impunham.
O que também se explica pelas limitações técnicas da época, quando
as comunicações, necessariamente marítimas, definiam-se pela
lentidão e anacronismo: os jornais podiam pretender tudo, menos a
atualidade. Esse era um fator predominante, quase inatintível em
nossos dias: as notícias européias chegavam com dois ou três meses
de atraso, dependendo de ventos favoráveis ou desfavoráveis: foi
nesse prazo que a Família Real atravessou o Atlântico para fundar um
novo império. O acima referido processo de autonomia mental
manifestava-se também, entre nós, por fatos acidentais e esparsos em
aparência, entretando organicamente articulados entre si, de tal
forma que hoje os percebemos em visão coerente e, graças às
vantagens do exame retrospectivo.
De fato, foi essa a época da revolução brasileira, não as que os
ideólogos atuais se apressaram em identificar, confundindo as
peripécias com etapas históricas transformadoras. No que se refere
às vicissitudes políticas, por exemplo, nosso tempo tem sido marcado
por “facções”, como se dizia no Primeiro Reinado – por “facções” e
não pela Revolução com que sonhavam os revoltados do século 19 e com
que sonham os do nosso, devendo-se guardar e acentuar uma distinção
essencial: o homme révolté, de Camus, é um indivíduo, enquanto o
revolucionário só tem realidade coletiva, dela depende e nela se
inscreve.
Segundo Sierra y Mariscal, citado neste volume, havia três pedidos
no Brasil do Primeiro Reinado: um europeu, cujo objetivo era a união
do Brasil a Portugal através da Constituição elaborada em Lisboa; um
outro muito empenhado numa Constituição com duas câmaras; e
finalmente o partido democrata, que queria os governos provinciais
independentes”. Em outras palavras, nesta última hipótese, a
fragmentação do Brasil pelo modelo dos países hispânicos, conforme
resultaria do programa de frei Caneca. As árvores impediam Mariscal
de ver a floresta. Quem a via era o sólido realismo britânico de
Maria Graham: havia apenas duas “facções”, a portuguesa e a
brasileira.
Maria Beatriz Nizza da Silva sumariza os fatos considerados
suficientemente importantes pelo redator para justificar a inclusão
no noticiário: “Todo evento político, no sentido amplo do termo, era
considerado relevante: uma campanha militar, um discurso, um
aniversário na família reinante, a morte de um alto dignatário
eclesiástico. Eram-no também as medidas que dissessem respeito ao
comércio, às manufaturas, à agricultura, pois eram estas atividades
que faziam a riqueza das nações. [...] Quanto às notícias locais, se
excetuarmos editais camerários ou as subscrições para obras
públicas, só mereciam menção nas páginas da gazeta as catástrofes:
um naufrágio, um incêndio, uma enxurrada”.
Há males brasileiros que se perpetuam de geração em geração, de
século em século, como as tragédias urbanas criticadas pelo redator:
“E como algumas casas edificadas no cimo da ribanceira ameaçavam
maior ruína”, as autoridades mandaram derrubá-las: “As grossas
chuvas dos dias antecedentes concorreram para esta desgraça; porém a
sua causa primária é o furor de levantar grandes edifícios na
eminência que domina a cidade baixa [...]”. Parece o jornal de
ontem... É perceptível, entretanto, o prazer do redator ao tratar de
assuntos culturais, como a criação da Biblioteca Pública: um dos
seus primeiros impressos foi o Plano para o estabelecimento de uma
Biblioteca Pública, redigido por Pedro Gomes Ferrão Castelo Branco.
O maior bem que o “nosso augusto soberano” poderia fazer aos seus
vassalos, escrevia ele, “era facilitar-lhes e promover todos os
meios da pública e particular instrução”. Conselho que ainda hoje
cabe aplicar aos augustos soberanos que nos governam.
É preciso ler todo o livro de Nizza da Silva para perceber o papel
civilizador desempenhado não só pela Idade d’Ouro do Brazil mas
também pelos similares de outras províncias. Trata-se de conhecê-los
não apenas pelo que foram, mas também pelo que significaram para a
educação do povo brasileiro.
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