Wilson Martins
Discursos acadêmicos (I)
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22.10.2005
Em 1928, Humberto Campos organizou uma antologia de discursos
acadêmicos como “índice da depressão do espírito literário na
Academia Brasileira de Letras”, decadência, dizia ele, que começou a
se manifestar com a própria fundação. Tal florilégio, lembra Josué
Montello no Diário da manhã, “iniciado com um texto de Joaquim
Nabuco, na solenidade de instalação da nossa Academia, havia
terminado com um texto de Ataulfo de Paiva, ao receber d. Aquino
Correia, servindo de pretexto a Humberto de Campos para esta
conclusão cruel: ‘Esta Antologia constitui o índice mesmo de
depressão progressiva do espírito literário na Academia Brasileira
de Letras. À medida que se for afastando, ao manuseá-la, do ponto de
partida, irá o leitor observando, nela, com as providenciais
exceções, a queda no estilo, a incerteza no gosto, a
superficialidade na cultura, o abandono, em suma, do modelo
acadêmico'”. Hoje, acrescenta Josué Montello em outra passagem,
“dificilmente a Academia incorporaria a seu quadro de sócios
efetivos uma figura mundana como Ataulfo de Paiva”.
Como todas as profecias, essa também acabou desmentida pelos fatos,
se não quanto à mundanidade, pelo menos no que podemos ter como
correlatos objetivos de estatura intelectual. É, justamente, uma
revisão de conceito convencionalmente negativo com que ele passou e
se perpetuou nos lugares-comuns das idéias feitas – revisão sugerida
por seu discurso de posse e, mais ainda, pelas palavras com que o
recebeu Medeiros e Abulquerque – o que propõe a nova coletânea de
Discursos acadêmicos (Tomo I, volumes I-II-III-IV-V. 1897-1919. Rio:
ABL, 2005).
De fato, ele tanto quanto qualquer outro, e mais do que a maior
parte, a classe dos “expoentes” que, segundo Joaquim Nabuco, deviam
ser acolhidos ao lado dos escritores em acepção restrita (aliás,
contra a opinião de Machado de Assis). Foi o expoente da elegância
de maneiras, da elegância sartorial e da elegância mais sutil dos
sentimentos pessoais, qualidades que, distinguindo-o da grande
maioria, respondiam-lhe à autenticidade profunda de temperamento,
dele fazendo um “homem companhia”, como se dizia nos salões
literários da tradição francesa. Por isso, além de maledicente,
passava longe do alvo a caracterização do jornalista Costa Rego na
qual dizia que “Ataulfo, não sabendo direito, tinha chegado a
ministro do Supremo e, sendo pouco letrado, quase letrudo, tinha
sido eleito para a Academia Brasileira”.
Era pelos requintes de elegância que ele mais despertava a
animosidade dos contemporâneos, cabendo-lhe substituir Artur
Orlando, figura antagônica sob todos os aspectos, como não se inibiu
de referir no discurso de posse: “Nem quisestes indagar de certos
traços – com reverência digo – diametralmente opostos e
inconciliáveis das duas individualidades que ora se substituem.
Artur Orlando, a quem me cabe a honra de suceder, sob a sua
fisionomia um pouco tediosa, posto que extremamente simpática,
descuidada de ademanes, despida de convencionalismo, com o seu
aspecto às vezes embuchado e bisonho, ocultava títulos preciosos
(...). Patenteando naturalmente e com sinceridade em largo desprezo
pelas coisas fortuitas, ele começava mesmo por ter este precioso
privilégio dos homens superiores: – não fazia cabedal nem caso da
compostura do vestuário”.
Contudo, ao contrário do que diziam e continuam dizendo os
desafetos, Ataulfo de Paiva não era um peralvilho vazio, conforme
Medeiros e Albuquerque acentuou na resposta protocolar: “Vossa
eleição para a Academia foi das mais discutidas. (...) Por quê?
Porque fizestes uma reputação de dandismo, fostes um dos precursores
da elegância masculina em nossa sociedade. E os precursores nunca
são bem recebidos”. Mas, era também “da escola dos que procuram
fazer grandes coisas, como se nada custassem – simplesmente,
elegantemente”, tais como obras sociais e de caridade, e trabalhos
jurídicos, inclusive na prática judiciária, às vezes com a
honestidade que o levava a contrariar interesses suspeitos,
cobrindo, ainda nas palavras de Josué Montello, “todo um período de
vida social brasileira (...). Não tenho dúvida de que, andando o
tempo, Ataulfo de Paiva, sem ter escrito um livro, ou mesmo uma
única página literária, encontrará quem lhe escreva a biografia,
como personagem de toda uma época”.
A mesma heterogeneidade profunda que o separava de Artur Orlando
também o incompatibilizaria com José Lins do Rego, seu sucessor na
Academia, singularizando a história dessa cadeira: no discurso de
posse, o novo acadêmico expressou em referências depreciativas o
que, pelas normas seculares do protocolo, deveria ser apenas um
tratado convencional: “Chegou ao Supremo Tribunal Federal sem ter
sido juiz sábio e à Academia Brasileira de Letras sem nunca ter
gostado de um poema. A natureza de Ataulfo de Paiva se exercitava
para os grandes saltos sem risco de vida (...)” – quadro cuja
inexatidão superficial já havia sido desautorizada por Medeiros e
Albuquerque em 1918. Como seria de esperar, essas palavras foram
geralmente mal recebidas: Carlos Magalhães de Azeredo, por exemplo,
mandou de Roma uma carta de protesto ao presidente da Academia.
Não foi esse o único desencontro de personalidades na seqüência das
sucessões acadêmicas: há o caso do almirante Jaceguai, que só
aquiesceu em se candidatar por força da insistência de Joaquim
Nabuco, obcecado pela teoria dos “expoentes”, vindo a ocupar uma
cadeira de poetas: o patrono era Casimiro de Abreu, e o antecessor,
Teixeira de Melo, contra quem, segundo se dizia, alimentava velhos
rancores secretos. Surpreende pouco que o elogio fosse... negativo,
reduzido a algumas referências desdenhosas: “Quem invocou o nome
simpático de Casimiro de Abreu (...) creio haver sido o seu
contemporâneo e meu antecessor imediato na Academia de Letras,
Teixeira de Melo. Diante deste último nome sou forçado a calar-me
destoando talvez das praxes acadêmicas. Revelar-se-me-á, porém, a
singularidade, ante a minha confissão, ingênua talvez, de não haver
conhecido o homem nem a sua obra”.
Dando maior vivacidade à convivência dos grandes homens, nem sempre
a Academia é o grêmio de elogios mútuos, tropismo aliás decorrente
de sua própria natureza.
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