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Wilson Martins



Diálogos das nações

Jornal do Brasil
19.11.2005


 

O menos que se pode dizer é que a simbiose cultural França/Brasil é coisa do passado, história, aliás, mais interessante do que sugerem os enfoques superficiais e fragmentários que em geral lhe têm sido consagrados, quase sempre preocupados com o pitoresco. Lembremos, a título de curiosidade, que, no século 16, era o Brasil que exercia influência sobre a França, seja como terra de missão, seja por projetos de geopolítica, seja pelo tradicional atrativo que o exótico exerce sobre o ideário francês, passando pelas contaminações de vocabulário como as palavras indígenas que, segundo Lévi-Strauss, incorporaram-se à língua francesa sem intermediação do português. O que serviria para provar a legendária prioridade francesa no descobrimento do Brasil.

Do lado brasileiro, era um exemplo de bovarysmo intelectual, que, nos oitocentos e novecentos, resultava em inquietante, e não raro ridícula, desnacionalização mental, repetindo-se, em nossos dias, com relação ao inglês e aos Estados Unidos. Contudo, desde os começos do século 19, Ferdinand Denis, esse grande agente de ligação, aconselhava aos escritores que, para criar uma literatura brasileira, era preciso abandonar os modelos estrangeiros em favor da temática nacional, do que ele mesmo procurou dar exemplo, sem grande sucesso. Recomendação repetida, cem anos depois, por Valery Larbaud, “agente secreto”, dizia Cocteau, “das literaturas luso-brasileiras” (Pierre Rivas. Diálogos interculturais. São Paulo: Hucitec, 2005).

Bem entendido, o grande divisor de águas foi a guerra de 1939, com a emergência dos Estados Unidos e, conseqüentemente, da língua inglesa, como irresistíveis focos de atração. Pierre Rivas interessa-se mais pelo “Brasil no imaginário francês” (título de um capítulo), com suas “tentações ideológicas e recorrências míticas”, do que pela França nas perspectivas recíprocas, sendo essas as abordagens naturais dos seus estudos: “De 1880 até nossos dias, a presença do Brasil na França poderia periodizar-se em dois momentos. Um eixo ideológico, até 1920, que reduz a presença brasileira ao Mesmo, sendo o Brasil uma imagem longínqua mas idêntica da França. Essa ideologia trabalha o tema da latinidade em que a França é a irmã mais velha das repúblicas latino-americanas. (...) Essa redução ao Mesmo reduz pois o Brasil e sua literatura a uma espécie de França degradada ou menor”, tudo mais ou menos conglomerado na visão do que os europeus e norte-americanos entendem por “América Latina”, ou seja, a América Hispânica, na qual o Brasil é, ao mesmo tempo, um corpo estranho e inassimilável, geralmente ignorado quando falam da “América Latina”.

A partir de 1930, essa “visão apolínea de um Brasil como outra França”, escreve Pierre Rivas, vai tornar-se “a de um Brasil Outro, como o Outro da França, vista em seu polo, não redutor ao Mesmo, mas no polo da Alteridade absoluta, não mais o duplo da França mas sua contrafigura. Passa-se assim da redução ideológica ao Mesmo (o Brasil como reprodução da França), à elaboração mítica de um Brasil como complemento da França, como contrapartida da incompletude francesa”. Contudo, trata-se de um processo dialético ou, se quisermos, de um movimento de libração, no qual, como ficou dito, introduzem-se elementos de catálise cultural: na exata medida em que o Brasil deixa de ser uma França de imitação liberta-se aos poucos de sua influência, substituindo-a, seja pela avançada nacionalista da década de 1930 (com evidentes conotações esquerdistas), seja pela concomitante intercorrência da já citada invasão dos valores norte-americanos, a começar pelos lingüísticos (não é sem razão que o ensino do francês tornou-se facultativo em nossa estrutura educacional).

O quadro é bem mais complexo do que deixariam pensar essas simplificações linearmente didáticas, porque, a partir de 1880 (em conseqüência da derrota francesa em 1870), as relações intelectuais entre França, Portugal e Brasil vão se desenvolver sob o signo da latinidade, tema a que Pierre Rivas dedica particular atenção: “A latinidade é um valor civilizacional secundário que vai ser reativado na década 1870-1880 por razões geopolíticas. Como é muito freqüente nesses casos, as mediações ideológicas vieram enriquecer ou ocultar o debate. Essas mediações giram em torno da questão – ou do mito – fundamental aqui, da decadência das raças latinas. Os anos 1870-1910 são completamente permeados por ecos, polêmicas, enquetes, publicações referentes a essa pretensa decadência latina”. Nas palavras de Pierre Rivas, “a latinidade é um valor geopolítico que é mais bem-sucedido no plano cultural do que no político – as irmãs latinas, como a Itália, preferem um aliado poderoso e distante (os Estados Unidos) a um irmão mais velho condescendente, incômodo e incerto” (como a França). Na vida quotidiana, o problema tinha conotações emocionais quase mórbidas: basta ler o que Brito Broca escreveu sobre os intelectuais brasileiros em face da guerra de 1914, fenômeno repetido com a derrota francesa em 1940.

Resta saber se os “latino-americanos” são latinos, idéia que Gilberto Freyre e tantos outros encaram com indisfarçável ironia: “O etnotipo latino, tido ainda como política e economicamente imaturo, aparece na França como heterocultura, mais estrangeiro do que o mundo industrial ocidental, delineando a dupla e inseparável figura de uma atração por aquilo que não existe mais e de uma condescendência por aquilo que ainda não existe. Essa modernidade, a da sociedade industrial, faz que os mesmos países latinos se voltem cada vez mais – já que modernidade deve haver – para os países anglo-saxões e não para a França”.

Acrescentemos a tradicional “visão tropicalista” que condiciona o “horizonte de expectativa francês” com relação às literaturas latino-americanas e que nós, de nossa parte, fazemos de tudo para encorajar com a imagem folclórica sobre nós mesmos. Daí decorre, para lembrar apenas um caso, que Machado de Assis seja visto no exterior como pouco brasileiro, pois o protótipo do brasileiro é Jorge Amado, acusando-o ainda de reescrever o romance que os franceses e ingleses já haviam escrito. Romancista, aliás, periodicamente redescoberto por críticos que se espantam por havê-lo até então ignorado, surpresa, de resto, mais depreciativa que laudatória: como é possível que Machado de Assis fosse latino-americano? Como é possível ser persa?
 

 

 


 

24/11/2005