Não se podem imaginar temperamentos
poéticos mais opostos e inconciliáveis que os de Carlos Drummond de
Andrade e João Cabral de Melo Neto, a começar pela inclinação
irônica e sensibilidade emocional do primeiro, inexistentes no
último. Eram duas naturezas humanas completamente estranhas entre
si: "Os dois eram íntimos na década de 1940", escreve John Gledson,
"e Cabral dedicou seus dois primeiros livros a Drummond (...). A
influência de Drummond sobre Cabral é bastante evidente, e a
admiração de Drummond pelo poeta mais jovem foi claramente
expressada, ainda que não haja uma influência visível de Cabral
sobre Drummond" ("Influências e impasses: Drummond e alguns
contemporâneos". São Paulo: Companhia das Letras, 2003).
Apesar das aparências, viviam em
épocas mentais diferentes, no espaço e no tempo. Drummond vinha do
Modernismo e Mário de Andrade, valores estranhos ao espírito de
Cabral. Pode-se pensar que a "admiração" do primeiro pelo segundo
resultava apenas do que se pode entender como a ética das relações
literárias, relações que, no caso, ocorreram e se exauriram na
década referida. Assim, quando Cabral o consultou sobre a
conveniência de colaborar numa coletânea de homenagem a Vicente do
Rego Monteiro, a resposta não respondia ao que fôra perguntado:
"Acho que v. deve publicar. Sou de opinião que tudo deve ser
publicado, uma vez que foi escrito". Em outras palavras: faça o que
quiser. (Todas as citações da correspondência Drummond-Cabral provêm
da edição Flora Süssekind, 2001).
Os contactos vão se esgarçando através
de rápidos bilhetes à medida em que os anos avançam, até que
Drummond resolva enfrentar deliberadamente a possibilidade de
ruptura, em carta de 1948, amenizando o que viria em seguida com um
"João, querido João":
"A verdade, João, é que v. continua
presente em conversas e pensamentos. Ultimamente, então, com o
‘Anfion’ e a ‘Antiode’, a presença é mais viva. Deu-me uma grande
alegria, e ficamos por aqui considerando que v. está abrindo um
caminho para a nossa poesia empacada diante de modelos já gastos (
sic ). Deu-me uma grande alegria o diabo do seu livro ( sic !), tão
rigoroso, de uma pureza tão feroz ( sic ). ...acho que sua poesia
está adquirindo um valor didático (...) um caráter de prova límpida,
de exemplo, que há de ser muito proveitoso para os rapazes
desorientados de cá. (...) E por mais individual que seja a sua
solução para o impasse geral de nossa poesia, ela é um tipo de
solução e sobretudo convida ao esforço e à pesquisa".
Poesia individual que convidava ao
esforço e à pesquisa... o que, aliás, foi abundantemente feito nos
anos seguintes. Embora em 1989 Cabral reconhecesse ter sido
influenciado por Drummond, não é menos certo que, dois anos antes,
aproveitara a entrevista a Denira Rozário na "Tribuna da Imprensa"
(08/12/1987) para uma devastadora demolição do Mestre, já então
grande manitu das letras: "A fama atrapalha também, porque o sujeito
acha que, se é famoso, é porque o que ele fez está sendo aceito.
Então ele pára de progredir (...) dessa forma ele não se renova
mais. Drummond era um poeta que muitos anos antes de acabar sua obra
não se renovava mais. A obra dele continuava aquilo que ele havia
aprendido. Compare o que há de inovação nos primeiros livros dele
com o que há nos outros (...)".
John Gledson certamente exagera ao
afirmar que, "dos poetas brasileiros, Drummond é aquele com quem
Cabral manteve o diálogo mais intenso e significativo", postulado
que necessita, quando menos, de rigoroso enquadramento cronológico,
talvez ano por ano. Exagera também ao situar "Brejo das almas" como
centro catalítico da literatura então praticada. Seja como for, ele
não ignora o deslizamento que levou Cabral "a se afastar da
influência de Drummond e tentava estabelecer a sua própria estética,
contrastante". Aí está a palavra: em nenhum momento, nem mesmo nos
inícios de Cabral, os dois poetas se assemelharam entre si, quando,
ao contrário, distingüem-se pelo contraste inegável que os separa,
do que, aliás, existe prova concreta num momento privilegiado: "Ao
mesmo tempo que Cabral estava revisando as provas de ‘A rosa do
povo’, quando dizia a Drummond que ele era o único poeta brasileiro
capaz de evitar ‘melancolia’ e ‘morbidez’, estava rompendo com o
poeta mineiro, de uma maneira que implicava quase uma oposição".
No que considera e é, de fato, uma
"verdadeira descoberta", John Gledson recuperou o artigo
entusiástico de Drummond sobre o poeta francês Jules Supervielle,
revelando afinidades ou confluências até agora ignoradas, porque,
seja qual for o motivo, Drummond preferiu deixá-lo esquecido nas
páginas de "O mundo ilustrado", onde saiu a 16 de julho de 1960. O
caso é duplamente interessante, tanto pelo que revela quanto por ser
Supervielle um poeta menor e "fora de moda", não podendo competir,
nem de longe, com os grandes nomes que influenciaram Drummond,
nomeadamente Paul Valéry. Dizendo conhecer-lhe a obra "há mais de
trinta anos" (o que nos leva à década de 1920), revelava tê-lo
descoberto "no tempo em que a poesia era um campo de contradições,
todas as experiências se tentavam e se anulavam umas às outras",
palavras que o situam na encruzilhada em que encontraria Mário de
Andrade, rejeitando Supervielle para os porões da memória juvenil.
Contudo, seu desaparecimento fê-lo
ressurgir dos mortos, paradoxo que, para Drummond, o tornava "um
admirável poeta do mundo", ligado, além disso, às terras mineiras,
onde esteve em visita às velhas cidades, retratando-as "à sua
maneira num livrinho delicioso". Eis como Drummond viera a
conhecê-lo "há mais de trinta anos". |