Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Influências e confluências


17.01.2004

Não se podem imaginar temperamentos poéticos mais opostos e inconciliáveis que os de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto, a começar pela inclinação irônica e sensibilidade emocional do primeiro, inexistentes no último. Eram duas naturezas humanas completamente estranhas entre si: "Os dois eram íntimos na década de 1940", escreve John Gledson, "e Cabral dedicou seus dois primeiros livros a Drummond (...). A influência de Drummond sobre Cabral é bastante evidente, e a admiração de Drummond pelo poeta mais jovem foi claramente expressada, ainda que não haja uma influência visível de Cabral sobre Drummond" ("Influências e impasses: Drummond e alguns contemporâneos". São Paulo: Companhia das Letras, 2003).

Apesar das aparências, viviam em épocas mentais diferentes, no espaço e no tempo. Drummond vinha do Modernismo e Mário de Andrade, valores estranhos ao espírito de Cabral. Pode-se pensar que a "admiração" do primeiro pelo segundo resultava apenas do que se pode entender como a ética das relações literárias, relações que, no caso, ocorreram e se exauriram na década referida. Assim, quando Cabral o consultou sobre a conveniência de colaborar numa coletânea de homenagem a Vicente do Rego Monteiro, a resposta não respondia ao que fôra perguntado: "Acho que v. deve publicar. Sou de opinião que tudo deve ser publicado, uma vez que foi escrito". Em outras palavras: faça o que quiser. (Todas as citações da correspondência Drummond-Cabral provêm da edição Flora Süssekind, 2001).

Os contactos vão se esgarçando através de rápidos bilhetes à medida em que os anos avançam, até que Drummond resolva enfrentar deliberadamente a possibilidade de ruptura, em carta de 1948, amenizando o que viria em seguida com um "João, querido João":

"A verdade, João, é que v. continua presente em conversas e pensamentos. Ultimamente, então, com o ‘Anfion’ e a ‘Antiode’, a presença é mais viva. Deu-me uma grande alegria, e ficamos por aqui considerando que v. está abrindo um caminho para a nossa poesia empacada diante de modelos já gastos ( sic ). Deu-me uma grande alegria o diabo do seu livro ( sic !), tão rigoroso, de uma pureza tão feroz ( sic ). ...acho que sua poesia está adquirindo um valor didático (...) um caráter de prova límpida, de exemplo, que há de ser muito proveitoso para os rapazes desorientados de cá. (...) E por mais individual que seja a sua solução para o impasse geral de nossa poesia, ela é um tipo de solução e sobretudo convida ao esforço e à pesquisa".

Poesia individual que convidava ao esforço e à pesquisa... o que, aliás, foi abundantemente feito nos anos seguintes. Embora em 1989 Cabral reconhecesse ter sido influenciado por Drummond, não é menos certo que, dois anos antes, aproveitara a entrevista a Denira Rozário na "Tribuna da Imprensa" (08/12/1987) para uma devastadora demolição do Mestre, já então grande manitu das letras: "A fama atrapalha também, porque o sujeito acha que, se é famoso, é porque o que ele fez está sendo aceito. Então ele pára de progredir (...) dessa forma ele não se renova mais. Drummond era um poeta que muitos anos antes de acabar sua obra não se renovava mais. A obra dele continuava aquilo que ele havia aprendido. Compare o que há de inovação nos primeiros livros dele com o que há nos outros (...)".

John Gledson certamente exagera ao afirmar que, "dos poetas brasileiros, Drummond é aquele com quem Cabral manteve o diálogo mais intenso e significativo", postulado que necessita, quando menos, de rigoroso enquadramento cronológico, talvez ano por ano. Exagera também ao situar "Brejo das almas" como centro catalítico da literatura então praticada. Seja como for, ele não ignora o deslizamento que levou Cabral "a se afastar da influência de Drummond e tentava estabelecer a sua própria estética, contrastante". Aí está a palavra: em nenhum momento, nem mesmo nos inícios de Cabral, os dois poetas se assemelharam entre si, quando, ao contrário, distingüem-se pelo contraste inegável que os separa, do que, aliás, existe prova concreta num momento privilegiado: "Ao mesmo tempo que Cabral estava revisando as provas de ‘A rosa do povo’, quando dizia a Drummond que ele era o único poeta brasileiro capaz de evitar ‘melancolia’ e ‘morbidez’, estava rompendo com o poeta mineiro, de uma maneira que implicava quase uma oposição".

No que considera e é, de fato, uma "verdadeira descoberta", John Gledson recuperou o artigo entusiástico de Drummond sobre o poeta francês Jules Supervielle, revelando afinidades ou confluências até agora ignoradas, porque, seja qual for o motivo, Drummond preferiu deixá-lo esquecido nas páginas de "O mundo ilustrado", onde saiu a 16 de julho de 1960. O caso é duplamente interessante, tanto pelo que revela quanto por ser Supervielle um poeta menor e "fora de moda", não podendo competir, nem de longe, com os grandes nomes que influenciaram Drummond, nomeadamente Paul Valéry. Dizendo conhecer-lhe a obra "há mais de trinta anos" (o que nos leva à década de 1920), revelava tê-lo descoberto "no tempo em que a poesia era um campo de contradições, todas as experiências se tentavam e se anulavam umas às outras", palavras que o situam na encruzilhada em que encontraria Mário de Andrade, rejeitando Supervielle para os porões da memória juvenil.

Contudo, seu desaparecimento fê-lo ressurgir dos mortos, paradoxo que, para Drummond, o tornava "um admirável poeta do mundo", ligado, além disso, às terras mineiras, onde esteve em visita às velhas cidades, retratando-as "à sua maneira num livrinho delicioso". Eis como Drummond viera a conhecê-lo "há mais de trinta anos".

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02/01/2006