Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Nassau, o brasileiro


16.10.2004

João Maurício de Nassau foi a perfeita encarnação do emblemático príncipe renascentista: “Aos dez anos, dominando o alemão, o francês e o latim (...) foi mandado estudar na Basiléia. Seu pai tinha uma vocação tão forte para o magistério quanto o filho para a arquitetura. Na academia militar de sua família, ele não foi um aluno brilhante. Sua grande escola foi a vida na corte do cunhado Moritz de Hesse-Kassel. Nessa época, era um jovem vistoso e sedutor, com os necessários conhecimentos de línguas, retórica, história, astronomia, teologia, filosofia. E de equitação, música, dança e esgrima. Por influência de Hessel-Kassel e de Juliana, sua irmã mais velha, ambos ligados à Fraternidade Rosa-Cruz, ele se iniciou nos estudos de alquimia e das ciência esotéricas. Essa influência foi um traço marcante em sua formação. De tudo sabia um pouco. E se interessava profundamente pela arquitetura e pelas paisagens naturais” (Maria Cristina Cavalcanti de Albuquerque. Príncipe e corsário. Quase tudo que Gaspar Dias Ferreira escreveu sobre João Maurício de Nassau, o brasileiro. São Paulo: A Girafa, 2004).

Esse era o lado principesco de sua personalidade, contraposto (como em tantos aristocratas da época) ao lado corsário, um e outro estabelecendo as coordenadas em que exerceu a sua missão no Brasil: “João Maurício não era um homem de falsos escrúpulos. Não se escandalizava com o uso da força ou da corrupção, quando necessárias para angariar recursos para sua fazenda ou para a bolsa da Companhia. Comportamentos desse tipo faziam parte das regras vigentes, adotadas pela empresa a que servia. O que o emocionava vivamente era o desrespeito às nobres convicções de um fidalgo arcaico e heróico. Que nunca teria aceitado servir a uma Companhia regida por leis corsárias”.

Personalidade complexa e, por isso mesmo, necessariamente contraditória, tratada, neste livro, pela única metodologia que lhe convinha, quero dizer, igualmente múltipla e complexa, através do testemunho dos contemporâneos, favoráveis ou não, incongruentes entre eles, mas sempre filtro interessado de Gaspar Dias, tudo confluindo num “retrato holandês” da grande escola, capaz de sugerir-lhe a realidade profunda. Para isso, e antes de mais nada, a carta de Gaspar Dias, “escrita por ele em latim, pouco antes de escapar da prisão holandesa”, documento utilizado por Maria Cristina de Albuquerque para construir o figurante fictício, modelo didático do proverbial “narrador inconfiável” de que os professores aconselham desconfiar, mas sem o qual a própria História deixaria de existir. É preciso confiar no narrador inconfiável e nas testemunhas suspeitas, todos, como neste livro, concorrendo para a coerência do quadro definitivo.

Protagonista? Palavra talvez forte demais, numa narrativa em que ele é sempre visto pelos olhos alheios — o citado Gaspar Dias, frei Manuel Calado e os que perpassaram, aqui e ali, nos seus caminhos: “Todas as personagens deste romance tiveram existência comprovada”, o que não impede que tenham, no romance, existência fictícia. É, claro está, o problema central do romance histórico: para ser verossímil e organicamente homogêneo, é preciso tornar reais os personagens fictícios, fazendo, em contrapartida, fictícios os personagens reais. Arte em que Maria Cristina de Albuquerque é um dos nossos grandes mestres.

De uma forma ou de outra, tudo se articula ao redor ou a partir de Gaspar Dias Ferreira, filtro ou prisma através do qual vemos, não apenas o príncipe, mas também todos os demais: é um romance múltiplo ou “em rosácea”, no qual os figurantes se relacionam não apenas uns com os outros, mas ainda com relação ao foco unificador representado por Nassau. É Gaspar Dias, entretanto, o demiurgo que ordena o microcosmo, ao ponto de determinar a nossa própria visão: “... voltemos ao dia em que conheci pessoalmente o príncipe João Maurício. O dia em que me candidatei a ser seu secretário particular (...) Nassau entrou sorridente, as gotinhas de suor lhe orvalhando a testa. (...) Respondi-lhe escolhendo palavras precisas, controlando o desejo de me exceder e demonstrar um falso e excessivo domínio da língua morta” (falavam em latim).

Visitando o amigo já em seu leito de morte, Gaspar Dias percebeu que a aventura brasileira tinha sido, para ambos, o fato marcante de suas vidas: “Há muito tempo que João Maurício prepara-se para a morte. (...) Tudo parece estar pronto. E, no entanto, falta-lhe precisamente aquilo que sempre ocupou um espaço tão importante na sua vida: um palpitante relato dos oito anos em que governou Pernambuco. Tão vivo e latejante que lhe assegure a imortalidade ao suscitar o entusiasmado julgamento da posteridade”. Depois do seu regresso, “todos os amigos do tempo de Pernambuco o haviam abandonado. Frei Calado mal esperou que João Maurício partisse e já se envolvia com os revoltosos, armado até os dentes, comandando guerrilhas e emboscadas, revirando os olhos míopes para o céu, dizendo que lá ficara para prestar assistência espiritual aos seus paroquianos”.

Sensível em todas as alusões, a animosidade de Gaspar Dias contra o frade resulta de sua personalidade dividida entre fidelidades diversas: a Maurício de Nassau, à cidadania holandesa (o que não impediu ser considerado traidor), a Portugal e à confissão judaica. Frei Calado era um bloco mental e uma consciência tranqüila, opondo-o desde logo ao herege holandês, além do sentimento de pátria ou de pequena pátria (no sentido etimológico, não no sentido político e moderno de palavra), levando-o a movimentar-se com astúcia e sabedoria no meio dos perigos que o cercavam.

Em tudo isso, Nassau, menos inclinado aos fanatismos religiosos ou políticos, manifestava o espírito de conciliação de contrários, traço de caráter que costumamos atribuir aos brasileiros em geral. Era, Nassau, o brasileiro: “Nunca esquecemos Pernambuco. As notícias do que acontecia por lá nos chegavam com mais freqüência que os carregamentos de açúcar da pobre terra esgotada”. Tais evocações faziam João Maurício “chorar como uma criança”, autorizando expressamente o biógrafo a registrar a cena que transmitiria à posteridade a sua imagem definitiva, tal como a Eternidade o havia modelado.

 
 

 

 

 

 

02/01/2006