João Maurício de Nassau foi a perfeita
encarnação do emblemático príncipe renascentista: “Aos dez anos,
dominando o alemão, o francês e o latim (...) foi mandado estudar na
Basiléia. Seu pai tinha uma vocação tão forte para o magistério
quanto o filho para a arquitetura. Na academia militar de sua
família, ele não foi um aluno brilhante. Sua grande escola foi a
vida na corte do cunhado Moritz de Hesse-Kassel. Nessa época, era um
jovem vistoso e sedutor, com os necessários conhecimentos de
línguas, retórica, história, astronomia, teologia, filosofia. E de
equitação, música, dança e esgrima. Por influência de Hessel-Kassel
e de Juliana, sua irmã mais velha, ambos ligados à Fraternidade
Rosa-Cruz, ele se iniciou nos estudos de alquimia e das ciência
esotéricas. Essa influência foi um traço marcante em sua formação.
De tudo sabia um pouco. E se interessava profundamente pela
arquitetura e pelas paisagens naturais” (Maria Cristina Cavalcanti
de Albuquerque. Príncipe e corsário. Quase tudo que Gaspar Dias
Ferreira escreveu sobre João Maurício de Nassau, o brasileiro. São
Paulo: A Girafa, 2004).
Esse era o lado principesco de sua
personalidade, contraposto (como em tantos aristocratas da época) ao
lado corsário, um e outro estabelecendo as coordenadas em que
exerceu a sua missão no Brasil: “João Maurício não era um homem de
falsos escrúpulos. Não se escandalizava com o uso da força ou da
corrupção, quando necessárias para angariar recursos para sua
fazenda ou para a bolsa da Companhia. Comportamentos desse tipo
faziam parte das regras vigentes, adotadas pela empresa a que
servia. O que o emocionava vivamente era o desrespeito às nobres
convicções de um fidalgo arcaico e heróico. Que nunca teria aceitado
servir a uma Companhia regida por leis corsárias”.
Personalidade complexa e, por isso
mesmo, necessariamente contraditória, tratada, neste livro, pela
única metodologia que lhe convinha, quero dizer, igualmente múltipla
e complexa, através do testemunho dos contemporâneos, favoráveis ou
não, incongruentes entre eles, mas sempre filtro interessado de
Gaspar Dias, tudo confluindo num “retrato holandês” da grande
escola, capaz de sugerir-lhe a realidade profunda. Para isso, e
antes de mais nada, a carta de Gaspar Dias, “escrita por ele em
latim, pouco antes de escapar da prisão holandesa”, documento
utilizado por Maria Cristina de Albuquerque para construir o
figurante fictício, modelo didático do proverbial “narrador
inconfiável” de que os professores aconselham desconfiar, mas sem o
qual a própria História deixaria de existir. É preciso confiar no
narrador inconfiável e nas testemunhas suspeitas, todos, como neste
livro, concorrendo para a coerência do quadro definitivo.
Protagonista? Palavra talvez forte
demais, numa narrativa em que ele é sempre visto pelos olhos alheios
— o citado Gaspar Dias, frei Manuel Calado e os que perpassaram,
aqui e ali, nos seus caminhos: “Todas as personagens deste romance
tiveram existência comprovada”, o que não impede que tenham, no
romance, existência fictícia. É, claro está, o problema central do
romance histórico: para ser verossímil e organicamente homogêneo, é
preciso tornar reais os personagens fictícios, fazendo, em
contrapartida, fictícios os personagens reais. Arte em que Maria
Cristina de Albuquerque é um dos nossos grandes mestres.
De uma forma ou de outra, tudo se
articula ao redor ou a partir de Gaspar Dias Ferreira, filtro ou
prisma através do qual vemos, não apenas o príncipe, mas também
todos os demais: é um romance múltiplo ou “em rosácea”, no qual os
figurantes se relacionam não apenas uns com os outros, mas ainda com
relação ao foco unificador representado por Nassau. É Gaspar Dias,
entretanto, o demiurgo que ordena o microcosmo, ao ponto de
determinar a nossa própria visão: “... voltemos ao dia em que
conheci pessoalmente o príncipe João Maurício. O dia em que me
candidatei a ser seu secretário particular (...) Nassau entrou
sorridente, as gotinhas de suor lhe orvalhando a testa. (...)
Respondi-lhe escolhendo palavras precisas, controlando o desejo de
me exceder e demonstrar um falso e excessivo domínio da língua
morta” (falavam em latim).
Visitando o amigo já em seu leito de
morte, Gaspar Dias percebeu que a aventura brasileira tinha sido,
para ambos, o fato marcante de suas vidas: “Há muito tempo que João
Maurício prepara-se para a morte. (...) Tudo parece estar pronto. E,
no entanto, falta-lhe precisamente aquilo que sempre ocupou um
espaço tão importante na sua vida: um palpitante relato dos oito
anos em que governou Pernambuco. Tão vivo e latejante que lhe
assegure a imortalidade ao suscitar o entusiasmado julgamento da
posteridade”. Depois do seu regresso, “todos os amigos do tempo de
Pernambuco o haviam abandonado. Frei Calado mal esperou que João
Maurício partisse e já se envolvia com os revoltosos, armado até os
dentes, comandando guerrilhas e emboscadas, revirando os olhos
míopes para o céu, dizendo que lá ficara para prestar assistência
espiritual aos seus paroquianos”.
Sensível em todas as alusões, a
animosidade de Gaspar Dias contra o frade resulta de sua
personalidade dividida entre fidelidades diversas: a Maurício de
Nassau, à cidadania holandesa (o que não impediu ser considerado
traidor), a Portugal e à confissão judaica. Frei Calado era um bloco
mental e uma consciência tranqüila, opondo-o desde logo ao herege
holandês, além do sentimento de pátria ou de pequena pátria (no
sentido etimológico, não no sentido político e moderno de palavra),
levando-o a movimentar-se com astúcia e sabedoria no meio dos
perigos que o cercavam.
Em tudo isso, Nassau, menos inclinado
aos fanatismos religiosos ou políticos, manifestava o espírito de
conciliação de contrários, traço de caráter que costumamos atribuir
aos brasileiros em geral. Era, Nassau, o brasileiro: “Nunca
esquecemos Pernambuco. As notícias do que acontecia por lá nos
chegavam com mais freqüência que os carregamentos de açúcar da pobre
terra esgotada”. Tais evocações faziam João Maurício “chorar como
uma criança”, autorizando expressamente o biógrafo a registrar a
cena que transmitiria à posteridade a sua imagem definitiva, tal
como a Eternidade o havia modelado. |