As artes do conto são, também, por
definição, as suas artimanhas: da simplicidade epigramática no bem
denominado “Epitáfio”, de Flávio Paranhos (São Paulo: Nankin, 2003)
à complexidade das peripécias de Domingos Pellegrini (“Conversas de
amor”. Rio: Record, 2004) e às páginas em que a memória sentimental
se transforma em ficção (Fábio Campana. “Todo o sangue”. Curitiba:
Travessa dos Editores, 2004), é sempre a diversidade humana que
aparece, recuperada pela unidade essencial que a condiciona.
Pelos quadros comuns das situações
banais, Flávio Paranhos denuncia o absurdo existencial do dia-a-dia
como se manifesta por acaso em nossa vida. Situações banais? Parece
simples e evidente, até lermos o conto intitulado, precisamente,
“Situação”. Trata-se de um encontro de bar: “Examinei meu
interlocutor atentamente. Como não esboçasse reação e parecia até
mesmo incomodado por minha atitude, desviei o olhar. (...) Não era
possível que me considerasse isso ou aquilo, pois, afinal, me era
absolutamente indiferente toda aquela situação”.
É onde começam as dificuldades: “O que
é uma situação? Não respondeu. Ficou me observando em silêncio. — O
que quer dizer? — perguntou finalmente, um tanto confuso. — Quero
saber se estamos em uma situação. Quero que você me ajude. Para
saber se estamos em uma situação, é preciso que saibamos primeiro o
que é uma”. A “situação” se complica e não tarda a degenerar em
inesperada animosidade, quando os interlocutores procuram ligar a
televisão: “Teremos uma situação e como conversar sobre ela. Aliás,
já temos uma. — Temos? — Sim. Eu me levantei e fui até à televisão.
Tentei ligar e não consegui. — Não é possível sem o controle
remoto”.
Os contos de Flávio Paranhos
desenvolvem-se ou desdobram-se por “situações” estáticas, que,
entretanto, contêm nelas mesmas a sua dinâmica, muitas vezes
escritas por simples diálogos, o que impede a transcrição
ilustrativa nesta oportunidade. Em Fábio Campanha, é a realidade
pura e crua que se metamorfoseia em literatura, na evocação de
momentos em que o narrador vive ou revive, por exemplo, uma cena
revolucionária: “E eis que esse tempo foi curto como um relâmpago. E
eis que o sonho foi despertado pelo soco. Algemas. Uma sala, os
golpes, o choque. Paredes manchadas de sangue. Um corpo despido no
cimento áspero. Uma voz insistente. Perguntas. E o mundo era feito
de sons. Gemidos, tiros, gritos, lamentos, sirenes, murmúrios,
ordens”.
Contudo, a vida não se faz apenas
pelos momentos dramáticos, mas também pelos episódios de alegre
comédia, como na história das belas portenhas que as vicissitudes
atiraram às praias urbanas de Curitiba — La Ronde, Cadiz, Moulin
Rouge, Marrocos, nomes míticos que se incorporaram à geografia da
cidade. Aportaram nos idos dos anos 40 e 50, eram tão bonitas,
elegantes, charmosas, que não poderiam ter outra origem. Vieram
atraídas pela nossa Idade do Ouro. A descoberta do café fez o Paraná
rico e generoso, perdulário. (...) Todos os meses, os prefeitos do
interior vinham buscar a parte dos seus municípios na arrecadação
dos impostos. Era de lei. O artigo vinte da Constituição. As gringas
sabiam de cor essa parte a legislação. E conheciam os políticos da
época como ninguém. — Morocha, llegó el artigo veinte. Era a senha
para identificar a entrada de cidadãos deslumbrados, algibeira
cheia, ansiosos por mil e umas noites de prazeres.
Há, também, a história fabulosa de Don
Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, “personagem favorito” de Fábio Campana,
que “passou por terras paranaenses em 1547 à procura de um império
de ruas pavimentadas de ouro. Cruzou o Atlântico e andou milhares de
léguas antes de admitir o fracasso. (...) Antes de sua viagem
paranaense, Cabeza de Vaca errou durante oito anos pelos pântanos da
Flórida, certo de que encontraria a fonte de juventude”. Ele “fala
do desconforto a que (os exploradores) se submeteram durante meses
na paisagem estranha, imersos no caos de catinga e insetos, cansaço
e privações, obrigados à convivência com os índios e, pior, com o
pequeno exército arrebanhado na escória dos portos espanhóis, onde
não faltavam fugitivos, criminosos, loucos não declarados e frades
corrompidos. Conta os esforços para ultrapassar as terras
vertiginosas na serra do mar, as paisagens de pedra que se erguem no
meio dos campos, as florestas quase impenetráveis tão espessas que
cobriam o céu, tão escuras que lembravam o inferno”.
Tendo chegado a tomar posse, em nome
da Espanha, do que seria quatro séculos depois o estado do Paraná,
“foi deposto em Assunção por Domingos de Trala, que o enviou preso e
acorrentado de volta a Sevilha”, assim terminando em tragédia como
tantos outros visionários. Mais felizes foram os visionários que, já
em nosso tempo, conquistaram o norte do Paraná, realizando sem
querer e sem saber dele o sonho ou a ambição de Cabeza de Vaca.
Domingos Pellegrini é o contista das situações-limite, tratadas com
extraordinário vigor narrativo e incomparável fidelidade nos
diálogos. Seu compasso vai do grotesco afetivo da vida em família
(“Minha estação de mar”) aos episódios de coragem viril em que o
homem comum dá a medida de sua grandeza (“A maior ponte do mundo”,
reproduzido de volume anterior), além das histórias de pioneiros que
realizaram o bandeirismo do século XX, não menos heróico que o outro
e que, como o outro, expandiu as fronteiras do Brasil (“De pai para
filho”).
Esta última é a temática pellegriniana
por assim dizer antonomásica, história de conquistadores que abriam
estradas metro por metro no exato momento em que começavam a busca
do mito fascinante. Mas, como seria de esperar, era um caminho (nos
dois sentidos da palavra) repleto de armadilhas e obstáculos: “Por
via das dúvidas, o motorista ligou o jipe, para encostar mais na
beira da estrada (...) o jipe roncou, roncou, afundando mais na
valeta (...) era preciso aliviar peso (...)”. Essas histórias em que
o homem se supera a si mesmo, superando as dificuldades, são as
histórias em que o homem, conquistando territórios, construindo
pontes, enfrentando os ridículos imprevistos, introduz uma nota de
ironia no que a ambição pode ter de heróico e de desmedido.
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