O centenário de Jean-Paul Sartre
ocorre quando o “compromisso” político do intelectual, doutrina a
que o seu nome ficou ligado por antonomásia, de há muito deixou de
ser imperativo contornável na República das Letras. O que se vê, ao
contrário, e pelo mundo todo, é o predomínio do esteticismo e seu
correlato experimentalismo arbitrário, tanto na poesia quanto na
prosa de ficção, nada havendo de mais gratuito e socialmente
descompromissado que as diversas “vanguardas” que, na segunda metade
do século XX, derivaram-se sucessivamente umas das outras pelo
processo mecânico e imitativo da homogenia.
No que nos concerne, há pontos de
referência por assim dizer didáticos, se tomarmos para demonstração
dos escritores representativos. Jorge Amado abandonou o realismo
socialista, a que se entregara com fervor doutrinário na primeira
parte de sua carreira, adotando o realismo “burguês” e
correspondente desencanto ideológico. Autor que anunciara escrever
“com o máximo de realidade e o mínimo de literatura”, começou a
fazê-lo, e cada vez mais, com o máximo de literatura e o mínimo de
realidade. É a diferença que separa, por um lado, o período de “Mar
morto” (1936)/“Os subterrâneos da liberdade” (1954), e, por outro
lado, a série que se inicia em 1958 com “Gabriela, cravo e canela”:
a luta de classes transferiu-se predominantemente para a posição
horizontal, sem excluir a pornografia que devia ser aceita como
recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria
impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem
sorriem.
O caso Drummond de Andrade é ainda
mais expressivo, com a transição igualmente didática de “A rosa do
povo”, em 1945, “A claro enigma”, seis anos depois, salto mortal
que, com elegância olímpica, conduziu-o de Zhdanov a Paul Valéry, o
que, em termos literários, foi um ganho inestimável: os
“acontecimentos”, que antes o fascinavam, “com o russo em Berlim” e
o nome imortal de Stalingrado, passaram a entediá-lo, apostasia de
que nenhum outro escaparia ileso. A questão do papel social do
escritor é mais complexa do que pareceria à primeira vista.
“Escritor” é palavra genérica que só adqüire sentido e realidade
através de múltiplas espécies, não raro estranhas e antagônicas
entre si.
Machado de Assis é escritor, e Paulo
Coelho também. No plano de valor e qualidade são poucos os
escritores contemporaneamente célebres que sejam, ao mesmo tempo,
grandes escritores aos olhos do Eterno. A celebridade traz nela
mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade. Lembremos o acima referido
exemplo de Jean-Paul Sartre: ninguém mais célebre, influente e
militante do que ele e, contudo, continuará célebre? Continua vivo?
Questões inquietantes que começam a ser feitas, no momento em que as
comemorações previsíveis podem torná-lo célebre de novo, havendo até
quem o indique como um pensador para o século XXI. Assim, o “papel
social” do escritor e o seu “compromisso” dependem das
circunstâncias de tempo e lugar, exprimindo-se ora em textos
engajados, como se dizia no vocabulário sartriano, ora, ao
contrário, subliminalmente e por implicação, na obra de arte “pura”.
Quanto à “militância”, já nada tem a
ver com a condição de escritor — é opção ou contingência de
cidadania ou de ideologia. Entre nós, o caso Graciliano Ramos pode
ser igualmente exemplar: foi militante esporadicamente e a
contragosto, escrevendo o livro anticlimático que se chama “Memórias
do cárcere”, para nada dizer da inegável desilusão que o acometeu na
viagem à União Soviética. O primeiro, lembre-se de passagem, foi
encarniçadamente combatido pelos dirigentes partidários, que
tentaram impedir-lhe a publicação, afinal realizada com cortes que
se podem supor substanciais. Tudo indica que o papel dos escritores
no futuro será exatamente igual ao que tem sido desde que há homens
e que escrevem, como diria La Bruyère. As implicações sociais e
políticas do seu trabalho virão por acréscimo, se vierem, geralmente
provocadas por interpretações extrapolantes e tendenciosas.
Nessas perspectivas, Jorge de Sena
assinalou um fato curioso: é que escritores e artistas “de
vanguarda” são, em geral, politicamente direitistas, bastando
lembrar o superfacista Ezra Pound, mestre de pensamento dos nossos
concretistas, convencidos de que não há revolução política sem
poesia revolucionária. Na verdade, a literatura e a arte sofrem,
necessariamente, de um tropismo elitista por definição: os que se
propõem a reformá-las e revolucioná-las assumem a posição elitista
das classes dirigentes. E reciprocamente: a História já demonstrou
que os regimes políticos mais reacionários em matéria de arte e
literatura são justamente ditos de esquerda.
As “massas”, sem excluir as
literárias, precisam ser conduzidas, dizia o astuto Lenin, que sabia
do que estava falando. Considerado o quadro da literatura
contemporânea em todos os países cultos, é fácil perceber as
sinclinais elitistas representadas pelo experimentalismo na ficção e
na poesia. Isso era anátema, entretanto, nos quadros da literatura
“proletária”, predominante, tanto ideológica quanto
estilisticamente, na década de 1930: a obra de arte, escrita ou
plástica, devia ser política — de direita ou de esquerda, conforme
os mestres de pensamento de um lado ou do outro.
Havia naquele momento a vaga
premonição de que a Revolução (com maiúscula) era iminente na
Europa, nos Estados Unidos e, para o que nos interessa, no Brasil.
Já em 1926, Plínio Salgado publicara, com “O estrangeiro”, o
primeiro romance socialista e revolucionário, com significativas
conotações russas (os russos eram vistos então como revolucionários
paradigmáticos). Dois anos depois, “A bagaceira”, de inegável
coloração esquerdista, abria caminho para os romances “proletários”
da corrente chamada nordestina. A atmosfera social e política,
observei na História da inteligência brasileira, favorecia o romance
populista, miserabilista e proletário, à medida mesmo em que se
estabilizava e consolidava a revolução literária do Modernismo, ou
seja, à medida mesmo em que a literatura, como tal, se tornava cada
vez menos revolucionária, a Revolução se tornava cada vez mais
literária.
Quando pensamos no papel social e
político dos escritores, o que temos em mente são os grandes nomes,
aqueles dois ou três que sobreviveram ao atrito dos tempos. Contudo,
quem dá consistência à vida literária em cada momento são, em
paradoxo apenas aparente, os menores e efêmeros, os discípulos e os
epígonos. De fato, mencionamos automaticamente Jorge Amado e
Graciliano Ramos, mas quem se lembra de João Cordeiro e Clóvis
Amorim, de José Cordeiro de Andrade e Alina Paim? Quem teria forças
para lê-los ou relê-los? |