Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

A marcha do tempo


23.07.2005

O centenário de Jean-Paul Sartre ocorre quando o “compromisso” político do intelectual, doutrina a que o seu nome ficou ligado por antonomásia, de há muito deixou de ser imperativo contornável na República das Letras. O que se vê, ao contrário, e pelo mundo todo, é o predomínio do esteticismo e seu correlato experimentalismo arbitrário, tanto na poesia quanto na prosa de ficção, nada havendo de mais gratuito e socialmente descompromissado que as diversas “vanguardas” que, na segunda metade do século XX, derivaram-se sucessivamente umas das outras pelo processo mecânico e imitativo da homogenia.

No que nos concerne, há pontos de referência por assim dizer didáticos, se tomarmos para demonstração dos escritores representativos. Jorge Amado abandonou o realismo socialista, a que se entregara com fervor doutrinário na primeira parte de sua carreira, adotando o realismo “burguês” e correspondente desencanto ideológico. Autor que anunciara escrever “com o máximo de realidade e o mínimo de literatura”, começou a fazê-lo, e cada vez mais, com o máximo de literatura e o mínimo de realidade. É a diferença que separa, por um lado, o período de “Mar morto” (1936)/“Os subterrâneos da liberdade” (1954), e, por outro lado, a série que se inicia em 1958 com “Gabriela, cravo e canela”: a luta de classes transferiu-se predominantemente para a posição horizontal, sem excluir a pornografia que devia ser aceita como recurso humorístico. Jorge Amado começou a sorrir, o que antes seria impensável: os comunistas daquela época e da nossa não riem nem sorriem.

O caso Drummond de Andrade é ainda mais expressivo, com a transição igualmente didática de “A rosa do povo”, em 1945, “A claro enigma”, seis anos depois, salto mortal que, com elegância olímpica, conduziu-o de Zhdanov a Paul Valéry, o que, em termos literários, foi um ganho inestimável: os “acontecimentos”, que antes o fascinavam, “com o russo em Berlim” e o nome imortal de Stalingrado, passaram a entediá-lo, apostasia de que nenhum outro escaparia ileso. A questão do papel social do escritor é mais complexa do que pareceria à primeira vista. “Escritor” é palavra genérica que só adqüire sentido e realidade através de múltiplas espécies, não raro estranhas e antagônicas entre si.

Machado de Assis é escritor, e Paulo Coelho também. No plano de valor e qualidade são poucos os escritores contemporaneamente célebres que sejam, ao mesmo tempo, grandes escritores aos olhos do Eterno. A celebridade traz nela mesma o vírus traiçoeiro da efemeridade. Lembremos o acima referido exemplo de Jean-Paul Sartre: ninguém mais célebre, influente e militante do que ele e, contudo, continuará célebre? Continua vivo? Questões inquietantes que começam a ser feitas, no momento em que as comemorações previsíveis podem torná-lo célebre de novo, havendo até quem o indique como um pensador para o século XXI. Assim, o “papel social” do escritor e o seu “compromisso” dependem das circunstâncias de tempo e lugar, exprimindo-se ora em textos engajados, como se dizia no vocabulário sartriano, ora, ao contrário, subliminalmente e por implicação, na obra de arte “pura”.

Quanto à “militância”, já nada tem a ver com a condição de escritor — é opção ou contingência de cidadania ou de ideologia. Entre nós, o caso Graciliano Ramos pode ser igualmente exemplar: foi militante esporadicamente e a contragosto, escrevendo o livro anticlimático que se chama “Memórias do cárcere”, para nada dizer da inegável desilusão que o acometeu na viagem à União Soviética. O primeiro, lembre-se de passagem, foi encarniçadamente combatido pelos dirigentes partidários, que tentaram impedir-lhe a publicação, afinal realizada com cortes que se podem supor substanciais. Tudo indica que o papel dos escritores no futuro será exatamente igual ao que tem sido desde que há homens e que escrevem, como diria La Bruyère. As implicações sociais e políticas do seu trabalho virão por acréscimo, se vierem, geralmente provocadas por interpretações extrapolantes e tendenciosas.

Nessas perspectivas, Jorge de Sena assinalou um fato curioso: é que escritores e artistas “de vanguarda” são, em geral, politicamente direitistas, bastando lembrar o superfacista Ezra Pound, mestre de pensamento dos nossos concretistas, convencidos de que não há revolução política sem poesia revolucionária. Na verdade, a literatura e a arte sofrem, necessariamente, de um tropismo elitista por definição: os que se propõem a reformá-las e revolucioná-las assumem a posição elitista das classes dirigentes. E reciprocamente: a História já demonstrou que os regimes políticos mais reacionários em matéria de arte e literatura são justamente ditos de esquerda.

As “massas”, sem excluir as literárias, precisam ser conduzidas, dizia o astuto Lenin, que sabia do que estava falando. Considerado o quadro da literatura contemporânea em todos os países cultos, é fácil perceber as sinclinais elitistas representadas pelo experimentalismo na ficção e na poesia. Isso era anátema, entretanto, nos quadros da literatura “proletária”, predominante, tanto ideológica quanto estilisticamente, na década de 1930: a obra de arte, escrita ou plástica, devia ser política — de direita ou de esquerda, conforme os mestres de pensamento de um lado ou do outro.

Havia naquele momento a vaga premonição de que a Revolução (com maiúscula) era iminente na Europa, nos Estados Unidos e, para o que nos interessa, no Brasil. Já em 1926, Plínio Salgado publicara, com “O estrangeiro”, o primeiro romance socialista e revolucionário, com significativas conotações russas (os russos eram vistos então como revolucionários paradigmáticos). Dois anos depois, “A bagaceira”, de inegável coloração esquerdista, abria caminho para os romances “proletários” da corrente chamada nordestina. A atmosfera social e política, observei na História da inteligência brasileira, favorecia o romance populista, miserabilista e proletário, à medida mesmo em que se estabilizava e consolidava a revolução literária do Modernismo, ou seja, à medida mesmo em que a literatura, como tal, se tornava cada vez menos revolucionária, a Revolução se tornava cada vez mais literária.

Quando pensamos no papel social e político dos escritores, o que temos em mente são os grandes nomes, aqueles dois ou três que sobreviveram ao atrito dos tempos. Contudo, quem dá consistência à vida literária em cada momento são, em paradoxo apenas aparente, os menores e efêmeros, os discípulos e os epígonos. De fato, mencionamos automaticamente Jorge Amado e Graciliano Ramos, mas quem se lembra de João Cordeiro e Clóvis Amorim, de José Cordeiro de Andrade e Alina Paim? Quem teria forças para lê-los ou relê-los?

 
 

 

 

 

 

10/01/2006