Em Oxford, como confessou, “teve
seu primeiro relacionamento amoroso com um jovem do mesmo sexo”
Tal como a Eternidade enfim o
transformou, sub-rogando-se em Maria Lúcia Pallares-Burke, eis
Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos (São Paulo: Unesp, 2005).
Trata-se de obra monumental nos dois sentidos da palavra, tanto pela
abrangência e volume da pesquisa quanto pelo que representa na
edição brasileira. Podemos encará-la como um “túmulo” mallarmeano,
isto é, pedra ao mesmo tempo funerária e consagradora, marco
miliário digno do espírito que o inspirou. Lendo não só os livros
que Gilberto Freyre escreveu e publicou, ela inovou lendo os que ele
mesmo lera ao longo da vida, em particular nos anos de formação, do
que deixou na respectiva marginália a mensagem secreta de sua
história intelectual e a chave privilegiada para decifrá-la.
Sabe-se que costumava reconstruir a
própria biografia intelectual à medida em que ocasionalmente a
retomava nas edições de inéditos e reedições de obras conhecidas,
“atualizando-lhes” as referências, não raro com traiçoeiros
anacronismos. Sob esse aspecto, os sucessivos prefácios
acrescentados às reedições de Casa grande & senzala significam muito
mais do que podem parecer, se os lermos por microscópios semelhantes
ao de Pallares-Burke. Observe-se, quanto a isso, que, eliminando
grande parte dos mais recentes, os editores privaram os estudiosos
de um precioso elemento de informação.
Ele o fazia não apenas nas obras
ensaísticas, mencionando bibliografia posterior ao texto original,
mas até em notações dos diários, que, por sua natureza, são datados
e invioláveis, sob pena de perder autenticidade. Assim, por exemplo,
conforme referi alhures, ele inclui em data de 1923 uma alusão ao
Noturno de Belo Horizonte, poema, entretanto, só publicado no ano
seguinte. Muitos dos reconhecimentos de suas dívidas intelectuais,
escreve Pallares-Burke, “foram feitos por um Freyre já maduro e
famoso, e como toda declaração a posteriori que busca justificar e
ratificar uma trajetória de vida devem ser vistos com cautela. (...)
Lembremos que o diário de adolescência e primeira mocidade (...)
publicado em 1975 com o título de Tempo morto e outros tempos como
se tivesse sido escrito nos anos de 1920 – e onde se é tentado a
buscar seus dados biográficos e a linha de sua trajetória
intelectual até 1930 – foi sendo elaborado pouco a pouco”. No caso,
o intervalo foi de meio século – período, justamente, em que o jovem
estudante da Columbia se tornou o autor de Casa Grande & senzala. Da
mesma forma, quando, décadas mais tarde, decidiu publicar a tradução
em português de sua tese de 1922, cortou várias referências racistas
e outras do trabalho original. Àquela altura, ele ainda não
considerava o mestiçamento “como característica da qual os
brasileiros pudessem, sem nenhuma dúvida, orgulhar-se”.
Há, também, pequenas (?) modificações
de estilo: onde se referia aos “castigos às vezes necessários”,
corrigiu para “castigos às vezes julgados necessários”, e assim por
diante. Os espíritos complexos não têm trajetórias simples e
lineares, antes sinuosas, acidentadas e autocorretivas. Momentos
houve em que o jovem Gilberto identificou a sua “missão
regionalista” como o ideário de Maurice Barrés, nomeadamente a
doutrina do enraizamento, mostrando também simpatia pelas “idéias
descentralizadoras e antidemocráticas de Charles Maurras e Georges
Sorel” como caução do seu peculiar “regionalismo”, tudo, observa
Pallares-Burke, pelo que tinham de nostálgico. Eram representantes
do pensamento direitista e até reacionário, dos quais, aliás, não
tardou em se afastar.
Nessa linha, o “nostálgico” Thomas
Hardy levou-o a uma posição constrangedora. Em artigo jornalístico
de 1942 (posteriormente recolhido no volume de Ingleses) , mencionou
o “crasso engano de Hardy, que teria confundido Pará com Paraná”.
Mencionando o incidente, Pallares-Burke não se refere à polêmica em
que se envolveu, a esse propósito, com o crítico paranaense
Temístocles Linhares. Ele acreditava que Thomas Hardy, mandando para
o Brasil o personagem Angel Clare, teria imaginado “um Paraná
tropical que rigorosamente não existe”, o que dizia fundado no livro
de Thomas P. Bigg Whiter Pioneering in south Brazil ... que
certamente não conhecia na data do artigo original (cf. W. M.
“Thomas Hardy & Co.”. O Globo, 28/04/2001).
Tudo isso é observado sem a menor
intenção de amesquinhar-lhe os méritos e a estatura intelectual,
mas, ao contrário, para torná-lo humano, mais que humano, o que
certamente não desagradaria a esse leitor de Nietzsche. Há, mesmo,
tópicos mais delicados: sentimentalismo correto no ambiente
oxfordiano do jovem Gilberto, o homossexualismo tornou-se menos
canônico no Brasil de sua maturidade. Em Oxford, como confessou,
“teve seu primeiro relacionamento amoroso com um jovem do mesmo
sexo”, assunto tabu quando se tornou célebre. Eram “confissões”
julgadas inadmissíveis pelo editor José Olympio quando se tratou de
publicar Tempo morto e outros tempos. Nas últimas décadas do século
19, escreve Palhares-Burke, o contradiscurso que invocava Platão e a
filosofia grega, evidente racionalização que procurava conferir
“legitimidade moral e respeitabilidade ao homossexualismo” já não
valia para o Brasil do século 20. Pode-se pensar que, com o correr
dos tempos, o homossexulismo ganhou em legitimidade o que perdeu em
dignidade. Claro, o “núcleo duro” deste livro é a “biografia” de
Casa grande & senzala, exemplo paradigmático de metabolismo
intelectual: um dos principais objetivos deste livro, escreve a
autora, “é enfatizar o quanto o jovem retornado estava imerso em
dúvidas e incertezas quanto ao rumo de sua vida, e como, de fato,
foi por meio de um processo mais longo e hesitante do que usualmente
se supõe que Freyre iria encontrar o caminho que o levaria a Casa
grande & senzala . Como ele mesmo muito cedo parece ter reconhecido,
o futuro de um jovem está repleto de indefinições e incerteza, pois
das múltiplas e contraditórias influências, leituras e experiências
que lhe povoam a mente é difícil saber quais delas vão acabar
prevalecendo, ‘se a vida ajudar’ ”.
Aqui está o aparente paradoxo da
criação espiritual, aparente por nada ter de paradoxal, antes
rotineiro. Lida nas perspectivas do trabalho intelectual, Casa
grande & senzala nada deve às leituras de Gilberto Freyre e aos que
lhe fertilizaram o espírito – sendo certo, entretanto, que
indiscutivelmente lhes deve muito, se não tudo. Ele instituiu e
implantou novos paradigmas para compreender nossa história social,
segundo a célebre teoria de Thomas Kuhn para explicar a estrutura
das revoluções científicas. É como novo paradigma que devemos
encarar o livro de Pallares-Burke, ou seja, marco definitivo que
rejeitou para a pré-história todos os estudos gilbertianos
anteriores. |