Em
termos de literatura, escrever um conto não é contar uma história
por escrito — é contá-la com estilo literário, ou seja, com
elegância lingüística, verossimilhança, sábia estruturação no
desenvolvimento da intriga, desenho convincente no caráter dos
personagens e invenção de pormenores, tudo concorrendo para
defini-lo como obra de arte literária. Também nessa arte tem
validade a lei de economia segundo a qual a moeda má expulsa a boa:
desanimado com a enxurrada de pseudocontos publicados por
pseudocontistas, Mário de Andrade, em desespero de causa, declarou
ser conto tudo o que os autores designam como conto — afirmação
sarcástica cuja ironia passou larga e convenientemente despercebida,
com este resultado inesperado e não menos irônico: passou a ser
conto tudo o que se publicava como conto...
Caio Porfírio Carneiro resolveu o problema de maneira expeditiva:
“Minha definição de conto é semelhante a de todos os que o
estudam e o definem e dos que, desde antanho, o estudaram e
definiram, ou seja: concordo com todos e discordo de todos, porque
todas as definições são mais ou menos corretas e mais ou menos
erradas. O conto é conto quando conto é. Acabou. Digo tudo e não
digo nada. O mais é o mais” (“Maiores e menores”. Santo André, SP:
Alpharrabio, 2003).
Ele esclarece que, tentando reduzir alguns dos vinte contos aqui
reunidos, procurou “espichar” (palavra sua) outros tantos, tudo em
vão: daí o título da coletânea. Na verdade, o seu talento natural ou
fôlego narrativo combinam melhor com o miniconto, habitualmente em
forma de diálogo: “Olhou em torno numa avaliação muda, suspirou: —
Pelo que me lembro, a casa mudou muito. — Mudou. — Estive aqui antes
da morte do meu avô. O senhor já estava viúvo. Faz mais de vinte
anos. — Vai pra mais. — O tempo passa. — Passa. — O senhor se lembra
de mim? Eu era pequeno. — Lembro”.
Claro, há trechos descritivos mais substanciais em contos maiores:
“Caminhou, caminhou. Venceu estradas e veredas, o morto
escorregadio, a mata fechada que lhe dilacerava a roupa, lanhava-lhe
o rosto. Venceria toda a floresta, daria a volta ao mundo, se
preciso fosse, pois já dera muitas sem norte por três desesperantes
dias. Viu de longe. Lá estava a sua casa, que abandonara depois da
afronta sofrida na própria alcova. O retorno fora o ímã mais forte
para enfrentá-lo, talvez chegar ao crime, afastá-lo do caminho, e
resgatar a meiguice conquistada com tanto amor e paixão”.
A arte literária de Aleilton Fonseca tem altos e baixos — mais
baixos do que altos, digamos desde logo — tratando-se de autor que
antes conta histórias do que escreve contos propriamente literários.
No conjunto de narrativas inexpressivas e até de um capítulo de
memórias (!), destaca-se o primeiro deles (“O canto de Alvorada”),
interessante evocação do mundo todo particular dos criadores de
galos de briga e seus apostadores: “O dia já clareava, com os avisos
dos pássaros. A hora certa do canto de Alvorada. Era um belo galo,
senhor absoluto da primeira hora da manhã. O nome era um batismo de
fé num futuro de glórias. Alvorada, desde frangote, já dominava o
terreiro: distribuía bicadas nas canelas dos galinhos que ousassem
desafiá-lo. (...) Os gritos se chocavam: Veloz! Veloz! Alvorada!
Alvorada! O galo de mestre Ambrósio cambaleou pela primeira vez,
junto à borda almofadada da rinha. Mas seguiu lutando, aplicava os
golpes de esporão, sem atingir o alvo em cheio. (...) O galo de
Ambrósio cambaleou mais de uma vez (...) ...Alvorada soltou um
cacarejo como um gemido de aflição, agitou as asas, riscou o chão e
partiu instintivamente para cima do inimigo. (...) O golpe prostrou
Veloz na rinha e este foi o último gesto de luta de Alvorada, que
ambos tombaram lado a lado, com as cristas e os pescoços
ensangüentados”.
A novela policial é, na verdade, um conto de grande extensão, sem
complexidade narrativa e sem a constelação de personagens
complementares, característica do romance. O bom “romance” policial,
se o quisermos assim designar, é bom na exata medida em que é mais
romance e menos policial; os demais resumem-se na confrontação do
investigador com o crime, que, mesmo nos melhores, é uma fórmula
estereotipada (para nada dizer das excentricidades de comportamento
dos detetives, acrescentadas como condimento pitoresco). O
criminoso, na maior parte dos casos, só aparece no desenlace, quando
o mistério se esclarece e a história termina.
Desafiando as servidões das duas espécies, Marçal Aquino publica
simultaneamente na mesma editora (Cosac & Naify, 2003) um livro de
contos (“Famílias terrivelmente felizes”) e um romance de crimes
(“Cabeça a prêmio”), este último nada acrescentando nem modificando
as peripécias rotineiras dos filmes classe B. Contudo, sua técnica
de contista é sensivelmente superior: “Meu tio morreu no hospício
numa tarde de segunda. Conversando com seus fantasmas, a única coisa
que aprendeu na vida. Nunca tomou uma coca-cola ou cantou no
Municipal. Nem viu uma festa junina. Jamais teve patrão, é verdade.
Morreu no hospício, gostando do macarrão com frango que serviam aos
domingos”.
E, para quem morre de tédio com a ginástica sexual obrigatória nos
filmes correntes, é refrescante a leitura de “Onze jantares”: “Ele e
ela estavam deitados na cama há um bom tempo. Ambos vestidos e em
silêncio. (...) Ela olhava para o teto do quarto. E ele, deitado de
lado, olhava a janela. (...) ‘Se você ficar aí parado sem dizer
nada, eu vou embora’, ela falou, sem tirar os olhos do teto. (...)
Nosso encontro bem podia ter acontecido na sala de espera de um
cinema, onde estaria sendo exibido um filme de Jarmusch. (...) Num
concerto de jazz, numa academia de ginástica, num desfile de moda e
mesmo no enterro de um deputado (...)”.
Nesse e em outros autores o conto anda reduzido a “cenas” pitorescas
ou curiosas, sem chegar às “fatias de vida” outrora famosas
justamente por serem mais do que isso.
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