Jornal de Poesia, editor Soares Feitosa

 

 

 

 

 

 

Wilson Martins

Paulo Coelho, a fuga do cotidiano e suas misérias

Jornal do Brasil
24.10.2008

 

RIO - Pode-se perguntar se Paulo Coelho acredita no que escreve, mas os seus leitores (no mundo inteiro!) certamente acreditam, propondo a questão essencial no que se refere às expectativas de leitura em largas camadas populacionais. Se leitores literariamente educados esperam a integração na realidade por meio da verossimilhança, ou seja, a impressão da verdade, os outros, ao contrário, buscam na ficção o absoluto ficcional, a fuga do quotidiano e suas misérias, o maravilhoso compensatório. Com isso ele próprio se situa fora da literatura, no que vai, de minha parte, nenhuma intenção depreciativa, antes o desejo de situar o fenômeno em seu campo próprio, a sociologia do gosto e da cultura, a que pertencem os grandes movimentos de massa, aí incluídos, claro está, os interesses editoriais, além, neste caso, a conjuntura atual do misticismo coletivo e universal, inclusive em matéria religiosa propriamente dita, que bem pode ser a origem de tudo.

Com o seu último livro (O vencedor está só. Rio: Agir, 2008), parece, nas primeiras páginas, que passou do sobrenatural para o natural, dos anjos e emissários celestes para a sórdida sociedade dos negocistas e corruptos, das almas virginais e eleitas para as prostitutas de luxo, do mundo do trabalho para o carreirismo sem escrúpulos. Engano que as páginas seguintes se encarregam de desfazer: é o mesmo velho Paulo Coelho, moralizante apologal que tomou o Festival de Cannes como metáfora do inferno, onde há crimes, sofrimento e ranger de dentes, para nada dizer da ausência de Deus.

Basta citar algumas características. Referindo-se aos personagens principais (Olivia, Javits, Igor, Ewa), escreve ele: “Mas o espírito não tem nome, é a verdade pura, está habitante aquele corpo por determinado período, e um dia o deixará – sem que Deus se preocupe em perguntar 'quem é você?' quando a alma chega diante do julgamento final. Deus perguntará apenas: 'Você amou enquanto estava vivo?' A essência da vida é essa: a capacidade de amar, e não o nome que carregamos em nossos passaportes, cartões de visita, carteiras de identidade. Os grandes místicos trocavam seus nomes, e às vezes os abandonavam para sempre. Quando perguntam a João Batista quem ele é [...]”, etc., etc., percebe-se o tom, a linguagem e o o gabarito intelectual das pregações evangélicas.

Ou, em plano mais temporal, criticando a enfermidade moral que ele, aliás, conhece muito bem: “A síndrome da celebridade – capaz de destruir carreiras, casamentos, valores cristãos, e que cegava os sábios e os ignorantes. Grandes cientistas que foram agraciados com um prêmio importante, e por causa disso abandonaram as pesquisas que podiam melhorar a humanidade, e passaram a viver de conferências que alimentam o ego e a conta bancária. [...] O promotor de justiça que trabalha duro defendendo os direitos de pessoas menos favorecidas decide concorrer a um cargo público, ganha a eleição, e passa a se julgar imune a tudo – até que um dia é descoberto em um motel com um profissional do sexo, pago pelo contribuinte”.

É, como se vê, o evangelista profano, havendo, por isso, pouco risco de que venha a perder os seus leitores, antes pelo contrário, pois confirma o folclore da sabedoria popular. Nessas perspectivas, a expedição a Cannes faz simetria invertida com a peregrinação a Compostela, mas agora é a peregrinatio ad loca infecta: “Pode imaginar como será o próximo Festival: pessoas precisando usar cartões magnéticos mesmo nas festas de praia, atiradores de elite em todos os tetos, centenas de policiais à paisana misturando-se com a multidão, detectores de metal em cada porta de hotel, onde grandes filhos da Superclasse terão que esperar até que policiais revistem suas bolsas [...] ordenem que os senhores de cabelos grisalhos levantem os braços e sejam revistados como um criminoso qualquer, conduzam as mulheres a uma única cabine de lona instalada na entrada [...] onde devem esperar pacientemente em uma fila para serem revistadas [...]”.

O Dia do Juízo está próximo: “A cidade começará a mostrar sua verdadeira face. Luxo e glamour serão substituídos por tensão, insultos, olhares indiferentes de policiais, tempo perdido. Isolamento cada vez maior – desta vez provocado pelo sistema, e não pela eterna arrogância dos eleitos. Custos proibitivos que caem nas costas dos contribuintes [...] Cannes começa a morrer [...] Querem voltar atrás, mas é impossível. Cannes continua a morrer. A nova Babilônia é destruída. A Sodoma dos tempos modernos está sendo riscada do mapa”.

O surpreendente nessa história é que o grande criminoso escapa sem ser punido nem por Deus, nem pelos homens.

 

Profeta Secular (II)

Jornal do Brasil
01.11.2008

O verdadeiro pode às vezes não ser verossímil, diz Boileau em verso lapidar que se ajusta didaticamente à vida de Paulo Coelho, objeto de Fernando Moraes em biografia exemplar pela amplitude da pesquisa (para a qual ele próprio forneceu grande parte do material), livro, digo de passagem, em que fui honrado com duas epígrafes, a primeira das quais não é certamente de minha autoria, o que atribuo à interferência maligna de alguma força sobrenatural, mas não importa (O mago. São Paulo: Planeta, 2008).

Segundo Fernando Moraes, ele sempre alimentou o sonho de ser escritor: "Quando completou 16 anos, o pai, em um gesto conciliatório, ofereceu-lhe uma viagem de avião à Belém (...) o aniversariante disse simplesmente que não, que preferia ganhar uma máquina de escrever (...) uma Smith Corona que o acompanharia pela vida até ser substituída por uma Olivetti elétrica e, décadas depois, por um computador", instrumentos profanos de trabalho que serviram para receber as mensagens do Além. É que ele, como declarou, não desejava ser apenas um escritor, mas escritor famoso e rico, internacionalmente conhecido e celebrado, o que efetivamente conseguiu.

A Academia Brasileira de Letras sendo, por convenção, o coroamento para a carreira de escritor, seu espírito prático não tardou em surgir-lhe as táticas mais indicadas para conquistá-la. No lançamento de O demônio e a sra. Prym, "a propaganda que a cidade ganhou em jornais e revistas de todo o mundo foi tamanha", comentaria Mônica Antunes, "que se tivesse de pagar por ela, a Prefeitura do Rio teria que investir uma fortuna". A outra particularidade foi a escolha do local: "Paulo preferiu organizar a festa protegido pelas conventuais (sic) paredes da centenária Academia Brasileira de Letras". O biógrafo acrescenta desnecessariamente que ele "estava de olho em uma cadeira do Olimpo da literatura brasileira, a Casa de Machado de Assis", passando a cumprir religiosamente, se assim me posso exprimir, todos os passos iniciáticos da campanha eleitoral: "Cortejava os líderes dos vários grupos e subgrupos em que se divide a casa, almoçava e jantava com acadêmicos e não perdia lançamentos de livros de imortais", ambicionando ser sucessor de Jorge Amado, o que seria uma dupla consagração.

Contudo, os orixás não permitiram e como, nas eleições acadêmicas, o candidato deve agarrar-se à vaga possível e não desejável, Paulo Coelho acabou sucedendo a Roberto Campos, sem substituí-lo. A surpresa esteve no discurso de recepção, a que Fernando Moraes não refere, peça modelar no gênero "oratória acadêmica", escrita com elegância, nobreza e sabedoria. Do ponto de vista estritamente eleitoral, é preciso dizer que as motivações dos acadêmicos vieram tisnadas pelo vil interesse, mas estavam enganados se esperavam do novo colega generosidade semelhante à do velho Francisco Alves. A candidatura foi claramente um gesto de vaidade e retorsão esmagadora aos críticos que geralmente se recusaram a reconhecê-lo como grande escritor.

Satisfatoriamente vingado, ele simplesmente ignorou de então por diante a Academia e seus ilustres confrades: "Se de fato algum imortal votou em Paulo Coelho na esperança de que ‘o milho’ fosse bom, deve ter-se arrependido amargamente. Em primeiro lugar, os holofotes internacionais que a presença dele atrairia para a casa jamais foram acesos devido à ausência do personagem principal: das mais de 200 sessões realizadas na ABL desde sua posse ele só compareceu a seis, o que o coloca em primeiro lugar no quesito absenteísmo. A mesma frustração terá acometido os que sonhavam que parte dos royalties acumulados em sua centena e meia de países acabaria pingando na caixa do Petit Trianon. No testamento público lavrado em cartório do Rio de Janeiro – e renovado três vezes depois da eleição – não há sequer referência à Casa de Machado de Assis". No jargão acadêmico, explica Fernando Moraes, "milho bom" é metáfora que se refere aos "candidatos eleitos que podem trazer, além de prestígio, benefícios materiais para a instituição".

O discurso de recepção é ainda importante, e até importantíssimo, por revelar o manancial de onde Paulo Coelho tirou a inspiração e a matéria dos seus livros, as obras de Malba Tahan (nome literário de Júlio César de Mello e Souza, 1895-1974) que lhe povoaram a imaginação infantil "com lendas do deserto, dos céus e da terras, das mil histórias sem fim que o povo árabe conta, e que mais tarde estariam na gestão de meu livro mais conhecido O alquimista. Famoso no seu tempo, Malba Tahan não tinha nem de longe o talento publicitário de Paulo Coelho, menos ainda seu instinto de negócios, nomeadamente os editoriais.

A figura que dele resulta desta biografia não é a de um místico (antes pelo contrário!), mas a de um homem supersticioso, dotado de espírito prático e nada indiferente às glórias mundanas.

 

 

 

 

 

 

8/11/2008