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Página do editor Soares Feitosa

 

Antonio Hohlfeldt

 


A  APARENTE  ETERNIDADE  SE  REVELA

 

                “Ela é dividida contra si mesma muito mais profundamente do que o homem.(...) a mulher se conhece e se escolhe, não tal como existe para si, mas tal qual o homem a define.(...) o que o homem ama e detesta antes de tudo na mulher, amante ou mãe, é a imagem remota de seu destino animal, é a vida necessária a sua existência, mas que a condena à finitude e à morte.(...) Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade: é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.” Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”

 

                “A maior dificuldade de uma mulher é explicar-se, colocar em termos concretos o quê, afinal de contas, é ser mulher. Qual a especificidade? Seios e vagina? A especificidade na verdade, não passa de uma palavra mágica. De um símbolo que permite a cada mulher poder extravasar o seu sufoco.(...) Este signo permite a individualização de uma percepção abstrata: as mulheres sabem que têm muito em comum, que são “específicas” em relação aos homens. Mas têm dificuldade em nomear o que sentem.” Maria Quartim de Morais e Maria Mendes da Silva, “Vida de Mulher”


 

 

            Há alguns anos, um filme marcou profundamente minha adolescência. Chamava-se “Todas as Mulheres do Mundo” e tinha as interpretações centrais de Paulo José e Leila Diniz. Assinado por Domingos de Oliveira, sua cena que mais me atingiu foi a figura de Paulo José, abandonado pela namorada, dar-se conta de que, afinal, como “paquerador” das praias da Zona Sul carioca, nada mais fazia do que procurar e fugir, ao mesmo tempo, de um relacionamento mais profundo. Ou melhor, de que até então jamais buscara efetivamente uma relação mais conseqüente, com medo, quem sabe, da dor que tal ligação, numa eventual separação, viesse a lhe provocar. Concluía eu, a sair do cinema, então, que buscar todas as mulheres do mundo, a cada dia e a cada momento, nada mais traduzia do que a ausência — voluntária ou não — do encontro definitivo daquela mulher, que seria, então, a única. 

            Passados anos, a ingenuidade daquela conclusão, ou a indecisão quanto a uma compreensão mais profunda da mulher, permanece. E volta e meia aflora, cada vez que encontro alguma mulher que me marca especialmente por sua personalidade, uma figura que, ao descobrir, encarna, durante algum tempo, aquela mítica face do feminino. Por exemplo, Isadora Duncan. Por exemplo, Jeanne Moureau. Na literatura brasileira mais recente, há esta mineira admirável chamada Adélia Prado. E outra mineira que andei descobrindo no seu livro de contos, Branca Maria de Paula. Aliás, na mesma época em que descobri Branca, encontrei também Yêda. Yêda Schmaltz de “Miserere”, Yêda Schmaltz de “A Alquimia dos Nós”, e sobre a qual tive o prazer de escrever um primeiro artigo. O resultado desta descoberta de cerca de três anos, é este convite honroso, suspeitoso e responsabiloso: honroso, porque tenho o bom palpite de que este “Baco e Anas Brasileiras” vai ser o “estouro” da escritora goiana. Suspeitoso porque, bom leitor de Simone de Beauvoir, acho perigoso (para mim) um homem escrever sobre uma mulher, sobretudo uma Penélope habilidosa no jogo da palavra e do tecido. Responsabiloso porque, afinal de contas, no meio da leitura de tantos originais, alguns para simples parecer, outros para alguma “orelha” apressada ou mesmo resenha de revista semanal, a obra de Yêda Schmaltz puxou-me as rédeas, estacou-me, fez-me voltar a lembranças antigas, a reflexões contraditórias, a indagações profundas que colocam em xeque inclusive a mim mesmo. Faz uma semana que ando com os poemas da Yêda nos olhos, nos ouvidos, na cabeça, buscando coisas paralelas para ler. Fui saber da vida de Corisco, encontrei Dadá. Fui pensar a obra de Goethe. Lá estava a Carlota de Werther. Mas o que têm de especiais estes versos da poeta? 

            “Baco e Anas Brasileiras” propõe um duplo desafio: de um lado, a proposta aberta e direta de discutir a condição feminina, sem eias nem peias. De outro, e coerentemente, fazê-lo através de formas literárias igualmente abertas e despreconceituosas. A conseqüência é um livro de poemas dinâmico, que literalmente prende o leitor e o fascina, seja pelas brincadeiras de aliterações, duplos sentidos e assonâncias, seja pelas discussões que apresenta.

 

            Organizado em três partes, o volume apresenta, na cuidadosa organização dos poemas, propostas específicas. Ordenadas, em sucessão conseqüente (isto é, uma após a outra, uma acontecendo porque a outra já está ali, num segmento verdadeiramente histórico de causa e efeito), as partes formam um extenso e humano depoimento, revelam um caminho trilhado com alegria e dor, mas sobretudo, um amadurecimento cuja experiência repartida é extremamente enriquecedora para homens e mulheres.

            “Saber o amor” abre-se cabalisticamente, com sete poemas em que o verbo “saber” está tomado no seu sentido bíblico de “conhecer” e “experimentar”, ou seja, saber de dentro para fora. Esta primeira parte, cujos poemas vêm apenas numerados, apresentam as várias formas, perspectivas e realidades amorosas possíveis, cujo aspecto religioso, ritualístico e quase de destinação não está absolutamente afastado, e de que, provavelmente, uma passagem do poema V é revelador:

 

            “Saber o amor

            e não sabendo

            a vida inteira

            o que fazer com ele.

            Ferida, fulcro, tumor,

            remédios irremediáveis

            — tranqüilizantes,

            gotas homeopáticas —

            câncer inoperável.”

 

            Este “saber o amor” apresenta-se, assim, como uma espécie de tábua dos sete mandamentos amorosos, capazes de ordenar e caracterizar a disponibilidade humana para este sentimento sempre presente em suas múltiplas faces, mas em especial na sua mais dolorida e compensadora face do amor erótico.

            No espírito do título geral do livro, que nos remete a Bach e Villa Lobos (isto é, as “Baquianas brasileiras”, mistura do espírito religioso e do rigorismo da composição de Johann Sebastian Bach com a brejeirice e a liberdade inovadora de Villa Lobos) — “Baco e Anas brasileiras” e que reaparece exatamente no título de um dos poemas da terceira parte, “Ba(lza)quianas brasileiras” Yêda Schmaltz propõe seu “Favo de meu” (que fônicamente aproxima-se de “mel”, hipótese tão mais reforçada quanto lembramos que já no primeiro poema da obra, líamos:

            “Saber o amor.

            Saber o doce favo

            em mel

            se arrebentando.”

 

            Pois o “favo de meu” que aqui temos, e cuja epígrafe tirada do Apocalipse acentua a ambigüidade doce-amarga da experiência, é a parte mais debochada, mais desafiadora de todo o livro. Nela Yêda Schmaltz avança sobre os tabus, estabelecendo quebras constantes tanto dos padrões morais quanto dos de linguagem com que se expressa, valendo-se, para tanto, da ampla exuberância das frutas tropicais encontráveis em Goiás, estabelecendo, mais do que nunca, duplos sentidos, investindo nas escatologias, fomentando as contradições, estabelecendo palavras-chave como “estrela”, “borboleta”, “anjo”, e de que “Flor de monguba” e “Bombons ao licor” são os exemplos mais marcantes, num paralelismo contínuo entre a alegria da vida e do amor exuberante e de uma poesia intensamente comprometida com esta mesma vida. Leia-se o segundo poema citado, que bem define este espírito:

           

            “Essas minhas calcinhas

            me confrangem;

            suas rendas, debruns,

            transparências e linhas

            — vaidades de mulher

            para agradar seu homem.

 

            Mais saudáveis

            que poesia reclamando

            o amado que partiu

            — bons goles de cerveja.

 

            Abandonei a literariedade

            da vingança,

            um exercício

            do qual já me cansei.

            Prefiro o outro vício

            na bandeja (vícios?)

            à poesia

            do melodrama.

 

            O que me comove mesmo

            são minhas calcinhas

            bonitas demais,

            meus travesseiros,

            minha cama,

            bombons ao licor

            e cerejas.

 

            Lembro-me de um belo poema de Safo, que diz algo bastante semelhante:

           

            “Como a doce maçã que rubra, muito rubra,

            lá em cima, no alto do mais alto ramo

            os colhedores esqueceram; não

            não esqueceram, não puderam atingir”.

 

            Este auto-olhar complacente e orgulhoso é também, sem dúvida, um olhar de defesa, de afirmação, de reivindicação altamente saudável, que tem caracterizado algumas destas mulheres contemporâneas, como aliás ocorre ao longo dos séculos com todas aquelas que sabem reconhecer e construir o seu lugar, caracteriza esplendidamente este novo livro de poemas de Yêda Schmaltz.

            A terceira e última parte — a principal — da obra, divide-se por seu lado em dois espaços diferentes, paradigmáticos e críticos, desde a paráfrase jocosa de suas denominações, “Secas e Molhadas” (alusão à expressão “secos e molhados”, isto é, local onde se vende tudo misturado, onde em algum canto sempre se encontra algo esquecido até ser necessário, em pequenas ou grandes quantidades, à disposição do freguês) e “Doces e Salgadas” (alusão à expressão “doces e salgados” tipicamente aliada a uma das obrigações, dos que-fazeres femininos, a cozinha e sua ocupação de preparar a comida da casa e seus ocupantes). Na verdade, esta divisão caracteriza duas séries paralelas e complementares de poemas: a primeira, a partir das dialéticas epígrafes dos Levíticos e de John Donne, reafirma o amor e o prazer corporal reivindicado pela mulher, enquanto fêmea. Daí a invocação inicial, “Evoé, Mênades, vinde, vinde e cantai todas vós honras a Dioniso” que é uma outra maneira de dizer “Alô, furiosas musas eróticas, entoai loas ao deus da fertilidade”. Nesta série de poemas, existe a afirmação plena da mulher, uma espécie de processo de transformação, a larva virada borboleta bela, o pequeno patinho feio e submisso transformado no altaneiro cisne branco. Neste sentido, o conjunto de poemas é uma espécie de “história particular” coletivizada, de uma mulher, desde sua adolescência (“Fruta madura”) até a idade plena, capaz de ser reconhecida não apenas pelas demais mulheres de sua época, como por todos os seres humanos capazes de almejar, por sua própria condição, o ultrapassamento. É difícil, nesta coletânea, destacar um ou outro poema, mas agrada-me especialmente, pelas imagens e pela abrangência, “Mandalas”, que sintetiza, de maneira extremamente simples e objetiva, toda a multifacetada realidade feminina:

 

            “Morangos

            eram

            teus sentimentos.

 

            Vermelhos

            como o amor feito

            diante dos espelhos.

 

            Mas áridos,

            amargos.

 

            Sou mais o cio

            da melancia

            aos teus morangos

            feios.

 

            Sou mais

            as doces pêras

            mudas

            dos meus seios.”

 

            Mesclam-se aqui, uma vez mais, os elementos de cama e mesa, mas num sentido diverso daquele tradicionalmente atribuído pelo homem burguês a sua esposa: não se trata da empregada doméstica adquirida através do casamento, pronta a servir-lhe tanto na cama quanto na mesa. Ao contrário, cama e mesa reivindicam, aqui, mais uma vez, a exigência feminina de ser degustada, apreendida, saboreada de maneira semelhante. Ou seja, é inegável existir um “gourmet”, como é inegável não estar ainda acessível a todos a chamada “arte do amor’. Os motivos, históricos, econômicos, sociais, psicológicos, todos nós os conhecemos. Mas é hora de ultrapassá-los. E é esta a proposta contida nestes poemas de Yêda Schmaltz, explicitada, por exemplo, no igualmente antológico “Bacanal”:

 

            “Cheiro verde:

            salsa e cebolinha

            refogadas na manteiga

            e açafrão.

 

            Bem temperado,

            um espetinho

            no coração.

 

            O fogo aceso,

            (Debussy

            com creme chantilly

            de sobremesa)

            ele vai comer:

 

            100 gr. de fermento flash-

            man

            pra crescer.”

 

            O volume se encerra com uma assumição radical da condição feminina. Encontramos aí, simultaneamente, a mulher e a poeta maduras. Uma, pronta para construir plenamente seu destino. A outra, para expressar esta conquista sumamente poética.

            Yêda Schmaltz expressa-se de maneira plena na consciência de sua força, sintetizando os contrários. O tema do amor como dor e sofrimento retorna, mas agora já sob inteiro domínio da personagem, possibilitando-nos, assim, poemas antológicos como “Os Quintos dos Infernos”, frase à cantiga infantil “Teresinha de Jesus”. Nele, ao mesmo tempo em que se nega, abre-se também ao amor a figura feminina, sabendo-se esta contradição insolúvel:

 

            “Então, fechei os olhos

            e comecei a chorar devagarinho

            (amor, amor, triste vocábulo)

            e comecei a chorar devagarinho,

            imaginando a dor da quinta vez”

 

            Outro poema referencial é “Anima” — constituindo confissão íntima, não importa se autobiográfica ou não — da violência masculina derramada sobre a mulher, à qual não escapa o aspecto da estrutura hierarquizada da sociedade que se manifesta sob múltiplos elementos, dentre os quais este:

 

            “Pois os amei, os homens

            que me sujaram

            e me aborreceram

            com suas gravatas

            e suas bravatas.

            Igual a meu pai, que me batia

            com o cinturão de soldado,

            e me fez civil

            para sempre”.

 

            E ainda “Posições”, ou, numa espécie de identificação coletiva, o já citado “Ba(lza)quianas brasileiras”, em que se lê:

 

            “Pertenço

            a uma raça ameaçada

            de mulheres

            de outra geração

            e o que nos une

            é a fraternidade

            da desgraça”.

 

            O melhor momento, contudo, porque nele se inscreve com exemplaridade a denúncia que, no fundo, é o móvel principal deste livro de Yêda Schmaltz, vamo-lo encontrar em “Sei-o e serei-a”, em que a poeta, uma vez mais, joga com a linguagem, criando a ambigüidade tanto do verbo no presente do indicativo (sei o que? o que se vem descobrindo ao longo da vida) passado para o futuro do presente (serei o que? a larva capaz de produzir novas borboletas, como conclui o poema) como, simultaneamente, invoca-se a imagem do “seio” e da “sereia”, isto é, o que acalanta e nina, alimenta e aconchega em oposição/complementariedade com o que atrai e fascina, aproxima e afasta, sem jamais entregar-se ou revelar-se totalmente. Assim, reinstaura-se o desafio antigo do feminino, temor e desejo de todo o masculino, fazendo com que a poeta, ao indagar-se sobre o que dirá para as filhas sobre o futuro, limita-se a estes versos exemplares:

 

            “Talvez lhes fale

            da larva, a pupa e a borboleta

            ou lhes diga da alma;

            que se emendam em grandeza

            o símbolo da pomba e da pureza,

            o signo do corpo e do orgasmo.

            Talvez não diga nada.

            São mulheres: serão apaixonadas.

            Mas o que é que eu vou dizer

            às minhas filhas?”

 

            O crítico — mas sobretudo poeta — Affonso Romano de Sant’Anna, em livro recente, “O Canibalismo amoroso” (Brasiliense) explicita ter pretendido estudar o “Poeta-Édipo diante da Mulher-Esfinge”. Pois não casual nem concomitantemente, Yêda Schmaltz escreveu este “Baco e Anas brasileiras”. Ela é a Poeta-Esfinge, que melhor do que ninguém, na condição de Electra e Mulher, pode desvendar a si própria, desvendando, ao mesmo tempo, a nós, homens. Daí que “Baco e Anas brasileiras” é um livro diante do qual o leitor, obrigatoriamente estacará, como estaquei eu. Não se trata apenas de um convite da Poeta, mas muito mais, uma convicção: “devora-me ou te esfingirei”, diz ela, ou seja, ao leitor cabe, literalmente, devorar à Poesia e à Mulher nela contida, sob pena de tornar-se ele próprio Esfinge incompreensível a si e a sua coletividade, a seu tempo e seu espaço.

 

                                      Porto Alegre, julho de 1984


O autor é professor universitário, crítico literário, autor de ficção para crianças.

 

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Brasigóis Felício

 


Um drible na alquimia ou  a metáfora de Deus.

“A mitologia é a musica. É a musica da imaginação, inspirada nas energias do corpo. Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos, prestes a proferir um sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou. E ele disse: “O sermão já foi proferido”. J. Campbell

 

“Obscura poesia,/independente de toda e qualquer realidade!/Música: dou meu estado de alma de beber/como num beijo — pura Magia.” Y.Schmaltz

 

Sobre ser Yêda Schmaltz uma das mais altas vozes femininas da poesia brasileira é fato sabido e consabido por muita gente séria e boa, por estes Brasis afora, e também no exterior. Conheço pouca gente, como ela tão comprometida com o oficio de escrever literatura. Antes de aposentar-se como professora do Instituto de Artes da UFG, já conquistara, por seu talento, e uma obra sólida, quase toda premiada a admiração tanto do leitorado quanto da crítica literária. Uma vez fora da cátedra, entregou-se de corpo e alma ao que mais gosta e sabe fazer: escrever poesia.

Yêda tem olho de lince, lucidez e vertigem de vidente, tanto na prosa quanto na poesia. Sua prosa impressiona por sua lancinante e corajosa penetração nos caminhos e descaminhos do existir humano, revela e desnuda os mistérios do Ser Feminino, fato reconhecido por ensaístas respeitáveis. Dos Caminhos de mim com que estreou na poesia, até este instigante, “fulgaz” e vertiginoso Vrum, um drible seco e veloz, na arte de poetar, muita magia poética rolou, no rio heraclitiano de sua re-criadora indagação do mistério mitológico, e de seu corajoso e visceral mergulho na perigosa e fascinante questão da sexualidade feminina.

A quem tenha lido Prometeu americano, Ecos, e Rayon, sues livros mais recentes, não surpreenderá sua habilidade no re-inventar palavras, re-nomear coisas, uma vez sabendo-se que alquimista da palavra Yêda sempre foi; só que, a cada instante de seu ofício de “sagaranar”, ou de inventar Sagaranas, liberta, em forma de messe, ou de prece, o viço e o vício de sua lavra de palavras. Assim sendo, permite-se grafar palavras que inventa: óbrulo e malovro.

Vrum, poema único, retoma uma recorrência temática, presente na prosa e na poesia Yêdeana, proclamando, quase sempre com uma refinada ironia ou humor negro, a questão essencial, com que a maioria das pessoas nega o corpo e se recusa entrar em corpo a corpo com a vida, em seu medo de viver verdadeiramente. Tudo no viver transborda e irradia o esplendor do poético e a onipresente vitalidade dos mitos. O ódio ao vivo, a avidez pelo poder e o medo de ser, é que revela as pessoas encouraçadas. Para Reich, Jesus Cristo foi vítima da peste emocional ( o instinto assassino ), mais vivo e mais ameaçador hoje do que nunca o foi no passado da história humana. E onde entra a poesia em tudo isto? Mesmo sabendo que ela (a poesia) não serve para nada, não podemos viver sem seu esplendor e fascínio.

            A poesia (a busca da beleza) é a revelação do Ser: no verso ou no reverso da moenda dos dias, sua plenitude se cumpre e se legitima na vida vivida, na pele das palavra, nos rios da coragem, e no mar aberto do Encontro. O Ser só recupera sua imagem perdida na existência que se cumpre e se gasta até o osso: “ Ah! Misteriosa e obscura poesia/ independente de qualquer realidade/ música/ dou meu estado de alma para beber/ como num beijo – pura Magia”. Deus não joga dados, nem fala aos mortos-vivos. Onde se nasce, onde se cresce, no corpo vivo da Vida – aí Deus se manifesta, e revela a sua face. Mesmo sabendo que fazer poesia é um brincar com palavras, na busca impossível da palavra essencial – o silêncio intraduzível, o poeta escreve.  E o faz por não poder brincar de ciranda, ou jogar pião, com as crianças. E se AUM é o som primordial da vida que não teve princípio nem terá fim, Rosebud é a palavra que falta – não nos poderes do cidadão Kane, mas no quebra cabeça dos dias e no labirinto da existência humana.

Se tudo o que é fora é dentro, tudo é em cima como é em baixo, a mentira pode ser a verdade, ou vice-versa, uma vez que, segundo mestre Quintana, a mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer. O efêmero instante que passa, a palavra imarcessível, que sempre nos escapa, o som de mantra, que daria completude ao Ser, é o objeto da busca de todos os poetas e artistas. E se “ há um poema que jamais chega  a palavra”, há uma palavra perdida, que jamais se revela no corpo vivo da poesia. Na paixão e no esplendor de estar vivo na carne, os poetas buscam a impossível maestria na magia da criação. O Vrum, tão fugaz e tão efêmero, voa fora do estreito limite das horas e minutos, a matéria infinita que elabora a nossa pobre eternidade. Certo, com a modernidade os poetas perderam o halo da santidade, mas conservaram vestígios do gesto subversivo de Prometeu, e como ladrões do fogo da criação, buscam cantar o esplendor de viver, sem jamais deixar de proclamar seu tempo e sua pátria. São desta lucidez e desta dureza na ternura, a raça dos verdadeiros artistas. E até que seja definitivamente derrotado o instinto anti-vida e a peste emocional, que a tantos condena ‘a morte em vida, terá a humanidade que empreender a maior e a mais gloriosa de suas façanhas: a conquista de seu próprio coração.

            Com este Vrum, tão cristalino e profundo, mas ao mesmo tempo rápido ou demais, ou desconcertante, Yêda deu um drible seco na alquimia: Uma finta curta, de futebol de salão. E o fez apoiada em Joseph Campbell, que foi uma das maiores autoridades no campo da mitologia em nosso século, e também em Carl Jung. A obra de Campbell estuda, dentre outras, as mitologias primitiva, oriental, ocidental e criativa. Segundo ele o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser. E diz mais: O homem não deveria estar a serviço da sociedade, esta sim é que deveria estar a serviço do homem. A mitologia consiste nas histórias sobre a sabedoria de vida. O homem não deve submeter-se aos poderes de fora, mas subjugá-los, como diz a poeta: escrever sobre algo é pura deficiência — nossa felicidade é maior do que só isso.

Yêda Schmaltz escreveu um livro para todos, mas especialmente para os iniciados. Explico: todos hão de ler, compreender e amar o seu libelo de buscadora da palavra que não existe; mas somente alguns conseguirão penetrar profundamente no sentido de seus versos — os criadores, principalmente os poetas, que buscam a palavra inexistente e sofrem o desespero de jamais encontrá-la; os conhecedores de mitologia, de psicologia e da obra de J. Campbell, um dos maiores estudiosos das mitologias do século, já que nossa autora o cita de forma cabalística abrindo as asas do seu vrôo de vrum, o que, além de nos encaminhar ao autor, delimita o livro VRUM como “o livro  mítico dos míticos” no contexto da seqüência de uma obra na qual Yêda recriou mitos variados através de livros diversos; pois bem, percebe-se aqui estabelecido um centro catalisador, pois VRUM então se pretende junção de todos os mitos, na medida em que desenvolve o tema do significado profundo da própria mitologia.

Sinto-me à vontade para tentar compreender, pelo menos em parte, este texto, desde que passei a vida toda como poeta buscando essa palavra que não se encontra e também porque tenho a sorte de possuir alguma coisa da obra de Campbell, o autor que inspirou a poeta a escrever sobre o supremo mistério do ser que está além de todas as categorias de pensamento. Como Kant disse, a coisa em si é não-coisa. Transcende a coisidade e vai além de tudo o que poderia ser pensado. As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o pensamento. “O verdadeiro artista é aquele que aprendeu a reconhecer e a expressar o que Joyce chamou de “radiância” de todas as coisas, como epifania ou revelação da sua verdade.” Corroborando com estas idéias, nossa autora escreve: ...me livro/da camisa-de-força do alfabeto,/com seus inúteis caracteres. Visito/outras fontes(...)que apontam (...)/uma só imagem: cinco pontas no poente, /forma traduzindo-me num plausível hieróglifo. E afirma em seguida: Pensar por imagens, a arte que perdemos. Assim fazendo, remete-nos à arte visual dos primitivos, seus desenhos e suas mandalas repletas da maior significação. A imagem visual comunica mais do que as línguas que separam os homens: para entender um quadro de Van Gogh ninguém precisa falar holandês.

É  notória a troca do eu-lírico realizada por Yêda em Vrum, pois ela escreveu o poema no masculino, é o poeta que fala: Tudo é mais seu, amigo , que daquela/ de onde nasceram os meus sofrimentos/ e meus improvisos. (Grifos nossos.) Desta feita, a autora não pretende fazer uma poesia separada “de mulher”, ou feminine ou feminist ou female, como, lembrando o ensaio de E. Showalter, citou Gian Luigi de Rosa em seu texto; é maior do que isto porque não somente expressa a busca da identidade feminina através da forma literária, mas a busca do poeta de modo geral, tanto do escritor como da escritora. É o poeta que Y. Schmaltz tem dentro de si que fala. É poesia só, independente de sexo. Algo maior que defender os segregados homossexuais, negros e mulheres, coisa que a autora já tanto realizou em sua obra.

Sabemos que Yêda é uma estudiosa de psicologia e mitologia. Ela sabe que somente a leitura dos grandes psicanalistas como Freud, Lacan e Jung não vai ajudar ninguém a encontrar seu eu-interior e nem autorizar intempestivas analises plantadas nos chavões “complexo de Édipo, de Electra” ou o que o valha. Sabe que qualquer que deseje compreender a alma do outro, deve primeiro fazer o intenso estudo do si-mesmo, que envolve anos de auto-análise. J.C. ilustra isto: “Nunca fiz aquilo que queria, em toda a minha vida”, afirma alguém. Este é um homem que nunca perseguiu a sua bem-aventurança. Poetas são aqueles que adotaram, como profissão e como estilo de vida, o estarem em contato com a própria bem-aventurança. A maioria das pessoas se preocupa com outras coisas. (...) A história que temos no Ocidente, na medida em que se baseia na Bíblia e pertence ao primeiro milênio antes de Cristo, não está de acordo nem com nossa concepção do universo, nem com nossa concepção da dignidade humana; pertence a algum outro lugar. (...) O amor não tem nada a ver com a ordem social. É uma experiência espiritual mais elevada do que aquela do matrimônio socialmente organizado”  – é sobre isto que Yêda escreve: as pessoas tem listras e costumam acreditar/ que para exercerem o afeto,/ precisam providenciar um documento — / essas coisas de alianças, canudos,/ certificado de propriedade. Ela sabe que a vida começa com os atos de desobediência — comer o fruto proibido é o que deu consciência ao homem e propiciou mudanças. Os versos a seguir bem ilustram esta ideologia: A vida não acontece no pensamento. Nem no poema./ Beijos escritos não dão prazer algum./ Vida é atitude. Eu sou o que eu faço./ Você é o que faz. Feliz ou infelizmente./ Se nada faz, está morto. Praxis./

Schmaltz propaga a ideologia do mitólogo também nos versos:  Palavra nenhuma traduz o nosso sonho./ Poema nenhum basta a nossa vida. Ou então nos versos finais do poema: Limitamos tudo isso, se isso é tudo,/ na medida exata em que pensamos nele./ Fica indizível, do significado, a essência./ O silêncio é que me diz e não obtém/ nunca a resposta./ O que se deixa de escrever, é o sublime., pois o autor afirma que você pode encontrar a Palavra em você mesmo e que tudo o que é transitório não é senão uma referência metafórica, o que todos somos. E continua: as pessoas, por toda a parte, morrem por metáforas. Mas quando você realmente capta o som “AUM”, o som do mistério da palavra em todos os lugares, então você não precisa  sair à procura de alguma coisa e morrer por ela, porque é certo que ela está à sua volta. Aquiete-se apenas, veja-a, experimente-a e conheça-a . Essa é uma experiência culminante. “AUM” é uma palavra que representa aos nossos ouvidos aquele som da energia do universo, da qual todas as coisas são manifestações. Quando você pronuncia adequadamente todos os sons vocálicos estão incluídos na pronúncia. As consoantes são tomadas aqui simplesmente como interrupções do som vocálico essencial. Todas as palavras são, portanto, fragmentos de AUM, assim como todas as imagens são fragmentos da Forma das formas. AUM é um som simbólico que coloca você em contato com o ser reverberante que é o universo.

É então que Campbell encerra uma de suas entrevistas, afirmando que as palavras são sempre qualificações e limitações (Palavras limitam, qualificam./ Não quero mais escrever, porque a palavra/ não consegue refletir meu sentimento.): ... e todos nós, fracos seres humanos, acabamos ficando com essa linguagem miserável, embora bela, mas limitada para se tentar descrever... eis por que é uma experiência culminante romper com tudo isso, às vezes e perceber ...

A mitologia! “A canção do universo — música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.”

 

* Brasigóis Felício é poeta e escritor.

 

 

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