Antonio
Hohlfeldt
A APARENTE
ETERNIDADE SE
REVELA
“Ela
é dividida contra si mesma muito mais profundamente do que o
homem.(...) a mulher se conhece e se escolhe, não tal como
existe para si, mas tal qual o homem a define.(...) o que o
homem ama e detesta antes de tudo na mulher, amante ou mãe, é
a imagem remota de seu destino animal, é a vida necessária a
sua existência, mas que a condena à finitude e à morte.(...)
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume
no seio da sociedade: é o conjunto da civilização que elabora
esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
qualificam de feminino.” Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo”
“A maior dificuldade de uma mulher é explicar-se,
colocar em termos concretos o quê, afinal de contas, é ser
mulher. Qual a especificidade? Seios e vagina? A especificidade
na verdade, não passa de uma palavra mágica. De um símbolo
que permite a cada mulher poder extravasar o seu sufoco.(...)
Este signo permite a individualização de uma percepção
abstrata: as mulheres sabem que têm muito em comum, que são
“específicas” em relação aos homens. Mas têm dificuldade
em nomear o que sentem.”
Maria Quartim de Morais e Maria Mendes da Silva, “Vida
de Mulher”
Há alguns anos, um filme marcou profundamente minha
adolescência. Chamava-se “Todas as Mulheres do Mundo” e
tinha as interpretações centrais de Paulo José e Leila Diniz.
Assinado por Domingos de Oliveira, sua cena que mais me atingiu
foi a figura de Paulo José, abandonado pela namorada, dar-se
conta de que, afinal, como “paquerador” das praias da Zona
Sul carioca, nada mais fazia do que procurar e fugir, ao mesmo
tempo, de um relacionamento mais profundo. Ou melhor, de que até
então jamais buscara efetivamente uma relação mais conseqüente,
com medo, quem sabe, da dor que tal ligação, numa eventual
separação, viesse a lhe provocar. Concluía eu, a sair do
cinema, então, que buscar todas as mulheres do mundo, a cada
dia e a cada momento, nada mais traduzia do que a ausência —
voluntária ou não — do encontro definitivo daquela mulher,
que seria, então, a única.
Passados anos, a ingenuidade daquela conclusão, ou a
indecisão quanto a uma compreensão mais profunda da mulher,
permanece. E volta e meia aflora, cada vez que encontro alguma
mulher que me marca especialmente por sua personalidade, uma
figura que, ao descobrir, encarna, durante algum tempo, aquela mítica
face do feminino. Por exemplo, Isadora Duncan. Por exemplo,
Jeanne Moureau. Na literatura brasileira mais recente, há esta
mineira admirável chamada Adélia Prado. E outra mineira que
andei descobrindo no seu livro de contos, Branca Maria de Paula.
Aliás, na mesma época em que descobri Branca, encontrei também
Yêda. Yêda Schmaltz de “Miserere”, Yêda Schmaltz de “A
Alquimia dos Nós”, e sobre a qual tive o prazer de escrever
um primeiro artigo. O resultado desta descoberta de cerca de três
anos, é este convite honroso, suspeitoso e responsabiloso:
honroso, porque tenho o bom palpite de que este “Baco e Anas
Brasileiras” vai ser o “estouro” da escritora goiana.
Suspeitoso porque, bom leitor de Simone de Beauvoir, acho
perigoso (para mim) um homem escrever sobre uma mulher,
sobretudo uma Penélope habilidosa no jogo da palavra e do
tecido. Responsabiloso porque, afinal de contas, no meio da
leitura de tantos originais, alguns para simples parecer, outros
para alguma “orelha” apressada ou mesmo resenha de revista
semanal, a obra de Yêda Schmaltz puxou-me as rédeas,
estacou-me, fez-me voltar a lembranças antigas, a reflexões
contraditórias, a indagações profundas que colocam em xeque
inclusive a mim mesmo. Faz uma semana que ando com os poemas da
Yêda nos olhos, nos ouvidos, na cabeça, buscando coisas
paralelas para ler. Fui saber da vida de Corisco, encontrei Dadá.
Fui pensar a obra de Goethe. Lá estava a Carlota de Werther.
Mas o que têm de especiais estes versos da poeta?
“Baco e Anas Brasileiras” propõe um duplo desafio:
de um lado, a proposta aberta e direta de discutir a condição
feminina, sem eias nem peias. De outro, e coerentemente, fazê-lo
através de formas literárias igualmente abertas e
despreconceituosas. A conseqüência é um livro de poemas dinâmico,
que literalmente prende o leitor e o fascina, seja pelas
brincadeiras de aliterações, duplos sentidos e assonâncias,
seja pelas discussões que apresenta.
Organizado em três partes, o volume apresenta, na
cuidadosa organização dos poemas, propostas específicas.
Ordenadas, em sucessão conseqüente (isto é, uma após a
outra, uma acontecendo porque a outra já está ali, num
segmento verdadeiramente histórico de causa e efeito), as
partes formam um extenso e humano depoimento, revelam um caminho
trilhado com alegria e dor, mas sobretudo, um amadurecimento
cuja experiência repartida é extremamente enriquecedora para
homens e mulheres.
“Saber o amor” abre-se cabalisticamente, com sete
poemas em que o verbo “saber” está tomado no seu sentido bíblico
de “conhecer” e “experimentar”, ou seja, saber de dentro
para fora. Esta primeira parte, cujos poemas vêm apenas
numerados, apresentam as várias formas, perspectivas e
realidades amorosas possíveis, cujo aspecto religioso, ritualístico
e quase de destinação não está absolutamente afastado, e de
que, provavelmente, uma passagem do poema V é revelador:
“Saber o amor
e não sabendo
a vida inteira
o que fazer com ele.
Ferida, fulcro, tumor,
remédios irremediáveis
— tranqüilizantes,
gotas homeopáticas —
câncer inoperável.”
Este “saber o amor” apresenta-se, assim, como uma espécie
de tábua dos sete mandamentos amorosos, capazes de ordenar e
caracterizar a disponibilidade humana para este sentimento
sempre presente em suas múltiplas faces, mas em especial na sua
mais dolorida e compensadora face do amor erótico.
No espírito do título geral do livro, que nos remete a
Bach e Villa Lobos (isto é, as “Baquianas brasileiras”,
mistura do espírito religioso e do rigorismo da composição de
Johann Sebastian Bach com a brejeirice e a liberdade inovadora
de Villa Lobos) — “Baco e Anas brasileiras” e que
reaparece exatamente no título de um dos poemas da terceira
parte, “Ba(lza)quianas brasileiras” Yêda Schmaltz propõe
seu “Favo de meu” (que fônicamente aproxima-se de
“mel”, hipótese tão mais reforçada quanto lembramos que já
no primeiro poema da obra, líamos:
“Saber o amor.
Saber o doce favo
em mel
se arrebentando.”
Pois o “favo de meu” que aqui temos, e cuja epígrafe
tirada do Apocalipse acentua a ambigüidade doce-amarga da
experiência, é a parte mais debochada, mais desafiadora de
todo o livro. Nela Yêda Schmaltz avança sobre os tabus,
estabelecendo quebras constantes tanto dos padrões morais
quanto dos de linguagem com que se expressa, valendo-se, para
tanto, da ampla exuberância das frutas tropicais encontráveis
em Goiás, estabelecendo, mais do que nunca, duplos sentidos,
investindo nas escatologias, fomentando as contradições,
estabelecendo palavras-chave como “estrela”,
“borboleta”, “anjo”, e de que “Flor de monguba” e
“Bombons ao licor” são os exemplos mais marcantes, num
paralelismo contínuo entre a alegria da vida e do amor
exuberante e de uma poesia intensamente comprometida com esta
mesma vida. Leia-se o segundo poema citado, que bem define este
espírito:
“Essas minhas calcinhas
me confrangem;
suas rendas, debruns,
transparências e linhas
— vaidades de mulher
para agradar seu homem.
Mais saudáveis
que poesia reclamando
o amado que partiu
— bons goles de cerveja.
Abandonei a literariedade
da vingança,
um exercício
do qual já me cansei.
Prefiro o outro vício
na bandeja (vícios?)
à poesia
do melodrama.
O que me comove mesmo
são minhas calcinhas
bonitas demais,
meus travesseiros,
minha cama,
bombons ao licor
e cerejas.
Lembro-me de um belo poema de Safo, que diz algo bastante
semelhante:
“Como a doce maçã que rubra, muito rubra,
lá em cima, no alto do mais alto ramo
os colhedores esqueceram; não
não esqueceram, não puderam atingir”.
Este auto-olhar complacente e orgulhoso é também, sem dúvida,
um olhar de defesa, de afirmação, de reivindicação altamente
saudável, que tem caracterizado algumas destas mulheres
contemporâneas, como aliás ocorre ao longo dos séculos com
todas aquelas que sabem reconhecer e construir o seu lugar,
caracteriza esplendidamente este novo livro de poemas de Yêda
Schmaltz.
A terceira e última parte — a principal — da obra,
divide-se por seu lado em dois espaços diferentes, paradigmáticos
e críticos, desde a paráfrase jocosa de suas denominações,
“Secas e Molhadas” (alusão à expressão “secos e
molhados”, isto é, local onde se vende tudo misturado, onde
em algum canto sempre se encontra algo esquecido até ser necessário,
em pequenas ou grandes quantidades, à disposição do freguês)
e “Doces e Salgadas” (alusão à expressão “doces e
salgados” tipicamente aliada a uma das obrigações, dos
que-fazeres femininos, a cozinha e sua ocupação de preparar a
comida da casa e seus ocupantes). Na verdade, esta divisão
caracteriza duas séries paralelas e complementares de poemas: a
primeira, a partir das dialéticas epígrafes dos Levíticos e
de John Donne, reafirma o amor e o prazer corporal reivindicado
pela mulher, enquanto fêmea. Daí a invocação inicial, “Evoé,
Mênades, vinde, vinde e cantai todas vós honras a Dioniso”
que é uma outra maneira de dizer “Alô, furiosas musas eróticas,
entoai loas ao deus da fertilidade”. Nesta série de poemas,
existe a afirmação plena da mulher, uma espécie de processo
de transformação, a larva virada borboleta bela, o pequeno
patinho feio e submisso transformado no altaneiro cisne branco.
Neste sentido, o conjunto de poemas é uma espécie de “história
particular” coletivizada, de uma mulher, desde sua adolescência
(“Fruta madura”) até a idade plena, capaz de ser
reconhecida não apenas pelas demais mulheres de sua época,
como por todos os seres humanos capazes de almejar, por sua própria
condição, o ultrapassamento. É difícil, nesta coletânea,
destacar um ou outro poema, mas agrada-me especialmente, pelas
imagens e pela abrangência, “Mandalas”, que sintetiza, de
maneira extremamente simples e objetiva, toda a multifacetada
realidade feminina:
“Morangos
eram
teus sentimentos.
Vermelhos
como o amor feito
diante dos espelhos.
Mas áridos,
amargos.
Sou mais o cio
da melancia
aos teus morangos
feios.
Sou mais
as doces pêras
mudas
dos meus seios.”
Mesclam-se aqui, uma vez mais, os elementos de cama e
mesa, mas num sentido diverso daquele tradicionalmente atribuído
pelo homem burguês a sua esposa: não se trata da empregada doméstica
adquirida através do casamento, pronta a servir-lhe tanto na
cama quanto na mesa. Ao contrário, cama e mesa reivindicam,
aqui, mais uma vez, a exigência feminina de ser degustada,
apreendida, saboreada de maneira semelhante. Ou seja, é inegável
existir um “gourmet”, como é inegável não estar ainda
acessível a todos a chamada “arte do amor’. Os motivos,
históricos, econômicos, sociais, psicológicos, todos nós os
conhecemos. Mas é hora de ultrapassá-los. E é esta a proposta
contida nestes poemas de Yêda Schmaltz, explicitada, por
exemplo, no igualmente antológico “Bacanal”:
“Cheiro verde:
salsa e cebolinha
refogadas na manteiga
e açafrão.
Bem temperado,
um espetinho
no coração.
O fogo aceso,
(Debussy
com creme chantilly
de sobremesa)
ele vai comer:
100 gr. de fermento flash-
man
pra crescer.”
O volume se encerra com uma assumição radical da condição
feminina. Encontramos aí, simultaneamente, a mulher e a poeta
maduras. Uma, pronta para construir plenamente seu destino. A
outra, para expressar esta conquista sumamente poética.
Yêda Schmaltz expressa-se de maneira plena na consciência
de sua força, sintetizando os contrários. O tema do amor como
dor e sofrimento retorna, mas agora já sob inteiro domínio da
personagem, possibilitando-nos, assim, poemas antológicos como
“Os Quintos dos Infernos”, frase à cantiga infantil
“Teresinha de Jesus”. Nele, ao mesmo tempo em que se nega,
abre-se também ao amor a figura feminina, sabendo-se esta
contradição insolúvel:
“Então, fechei os olhos
e comecei a chorar devagarinho
(amor, amor, triste vocábulo)
e comecei a chorar devagarinho,
imaginando a dor da quinta vez”
Outro poema referencial é “Anima” — constituindo
confissão íntima, não importa se autobiográfica ou não —
da violência masculina derramada sobre a mulher, à qual não
escapa o aspecto da estrutura hierarquizada da sociedade que se
manifesta sob múltiplos elementos, dentre os quais este:
“Pois os amei, os homens
que me sujaram
e me aborreceram
com suas gravatas
e suas bravatas.
Igual a meu pai, que me batia
com o cinturão de soldado,
e me fez civil
para sempre”.
E ainda “Posições”, ou, numa espécie de identificação
coletiva, o já citado “Ba(lza)quianas brasileiras”, em que
se lê:
“Pertenço
a uma raça ameaçada
de mulheres
de outra geração
e o que nos une
é a fraternidade
da desgraça”.
O melhor momento, contudo, porque nele se inscreve com
exemplaridade a denúncia que, no fundo, é o móvel principal
deste livro de Yêda Schmaltz, vamo-lo encontrar em “Sei-o e
serei-a”, em que a poeta, uma vez mais, joga com a linguagem,
criando a ambigüidade tanto do verbo no presente do indicativo
(sei o que? o que se vem descobrindo ao longo da vida) passado
para o futuro do presente (serei o que? a larva capaz de
produzir novas borboletas, como conclui o poema) como,
simultaneamente, invoca-se a imagem do “seio” e da
“sereia”, isto é, o que acalanta e nina, alimenta e
aconchega em oposição/complementariedade com o que atrai e
fascina, aproxima e afasta, sem jamais entregar-se ou revelar-se
totalmente. Assim, reinstaura-se o desafio antigo do feminino,
temor e desejo de todo o masculino, fazendo com que a poeta, ao
indagar-se sobre o que dirá para as filhas sobre o futuro,
limita-se a estes versos exemplares:
“Talvez lhes fale
da larva, a pupa e a borboleta
ou lhes diga da alma;
que se emendam em grandeza
o símbolo da pomba e da pureza,
o signo do corpo e do orgasmo.
Talvez não diga nada.
São mulheres: serão apaixonadas.
Mas o que é que eu vou dizer
às minhas filhas?”
O crítico — mas sobretudo poeta — Affonso Romano de
Sant’Anna, em livro recente, “O Canibalismo amoroso”
(Brasiliense) explicita ter pretendido estudar o “Poeta-Édipo
diante da Mulher-Esfinge”. Pois não casual nem
concomitantemente, Yêda Schmaltz escreveu este “Baco e Anas
brasileiras”. Ela é a Poeta-Esfinge, que melhor do que ninguém,
na condição de Electra e Mulher, pode desvendar a si própria,
desvendando, ao mesmo tempo, a nós, homens. Daí que “Baco e
Anas brasileiras” é um livro diante do qual o leitor,
obrigatoriamente estacará, como estaquei eu. Não se trata
apenas de um convite da Poeta, mas muito mais, uma convicção:
“devora-me ou te esfingirei”, diz ela, ou seja, ao leitor
cabe, literalmente, devorar à Poesia e à Mulher nela contida,
sob pena de tornar-se ele próprio Esfinge incompreensível a si
e a sua coletividade, a seu tempo e seu espaço.
Porto
Alegre, julho de 1984
O
autor é professor
universitário, crítico literário, autor de ficção para
crianças.