Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Thiago na luz de Thiago - 45 anos de ternura e poesia

 

É comum situar o início da literatura amazonense a partir de 1954, com a criação do Clube da Madrugada. Nunca é tarde para lembrar, entretanto, que 3 anos antes, Thiago de Mello, então com 25 anos, lançava Silêncio e Palavra e era saudado pela nata da crítica brasileira como a mais grata revelação da geração que se convencionou chamar "de 45", a que nasceu para as letras depois da morte de Mário de Andrade, como observou Alceu de Amoroso Lima. Considerando que o Clube não era um movimento mas um "estado de espírito", é fácil estabelecer que, malgrado Ritmos de Inquieta Alegria, de Violeta branca, publicado em meados da década de 30, obra ainda imatura, é com Thiago de Mello que se instaura o modernismo no Amazonas. Aliás, esta é outra falácia, pois enquanto o Clube da Madrugada, à época de sua criação, ainda guardava um certo ranço parnaso-simbolista pré-modernista, Silêncio e Palavra colocava a poesia amazonense em sintonia com o que de melhor se fazia então no resto do país, dando um salto qualitativo de mais de 30 anos. Álvaro Lins, Emanuel de Moraes, Gilberto Freyre, Tristão de Athayde, Sérgio Milliet, M. Cavalcanti Proença, José Lins do Rego, Otto Maria Carpeaux e Manuel Bandeira, nomes do primeiro time de críticos do país, reconheceram no jovem ex-estudante de Medicina a voz poderosa que hoje festeja 45 anos de literatura. Talvez o pessoal com menos de 30 anos não tenha noção do que seja crítica literária profissional, mas esse é outro papo.

Abro com displicência meu surrado exemplar de Vento Geral. Sei o que procuro e logo encontro: "somente sou quando em verso". Esta verdadeira profissão de fé está lá, no poema Rumo, do primeiro livro. O poeta profetiza a si próprio: é aquele o caminho escolhido, e assim tem sido, ao longo destes 45 breves anos. Narciso Cego, de 52, A Lenda da Rosa, de 56, Vento Geral, de 60, são livros de um outro Thiago de Mello, mais intimista, circunspecto, ensimesmado, onde o amor e a morte são os temas recorrentes. Datam dessa época seus poemas, se me permitem, mais literários (!). A partir de Faz Escuro Mas Eu Canto, de 66, o poeta promove uma guinada radical em seu trabalho, fica mais didático, popular, assumindo uma clara postura política de combate à ditadura. Influência de Neruda, das viagens pela América Latina, ou simplesmente amadurecimento? O poeta acrescenta a seus temas principais um novo: a vida, reescrevendo aquela profissão de fé assumida 15 anos antes: "pois aqui está a minha vida, pronta para ser usada".

Na apresentação de A Canção do Amor Armado, também de 66, Dr. Alceu pondera que "essa conversão ao social não o afastou de si mesmo. Os versos de Thiago de Mello constituem, sem a menor dúvida, a expressão mais transparente e bela, significativa e profunda, não só de um poeta autêntico, mas de um momento crucial da alma brasileira em sua fase decisiva da evolução de sua cultura." Uma breve análise do poema Madrugada Camponesa, um dos mais conhecidos do autor, poderia ilustrar as palavras do velho mestre. Composto em redondilhas, usando rimas com palavras da mesma classe (plantar/chegar, milharal/seringal, chão/pendão, trabalhar/chegar) e imagens relativamente desgastadas (manhã por liberdade, por exemplo), qualquer aluno de teoria literária percebe que o poema não representa nenhum desafio à sua ensebada mala de (pre)conceitos. Sucede que o poeta quer atingir um outro público, quem sabe aquele mesmo metaforizado em seu poema. Somente ele entenderá, e se emocionará, com imagens como "alegria (...) / feita de canto e de pão", "chuva azul no milharal" , "colho um sol que arde no chão", para concluir: "faz escuro mas eu canto / porque a manhã vai chegar". Na apresentação a Faz Escuro Mas Eu Canto, aliás, Carpeaux lembra que Freud compara o sonho a uma voz de criança que canta no escuro porque sente medo. O "canto no escuro", de Thiago de Mello, ao contrário, busca inspirar a coragem. E era com alegria juvenil que recitávamos seus poemas nas assembléias e passeatas dos anos 70. Maus tempos, aqueles, tempos de escuridão.

Mormaço Na Floresta, de 81, marca o retorno do poeta ao Amazonas, a Barreirinha: "caboclo companheiro meu de várzea, / contigo cada dia um pouco aprendo / as ciências desta selva que nos une". Há todo um aprendizado a ser resgatado ao voluntário exílio da terra natal. Quando partira, ainda em menino, levara certezas. Agora, humildemente, o poeta aprende com as "ensinanças da dúvida". Em Num Campo de Margaridas, de 86, ele se mostra senhor de sua geografia, como o fora, já, senhor do mundo: "o silêncio da floresta é sonoro: / os cânticos dos pássaros da noite / fazem parte dele, nascem dele, / são a sua voz aconchegante".

Poeta íntegro - pois fiel a si mesmo neste quase meio século - e em tempo integral - a veste branca, a vasta cabeleira, a palavra doce - ele faz-se em verso e transforma sua trajetória no mundo em poema de altíssima ressonância. Pois aí está o poeta: 70 anos de vida dedicada inteiramente à poesia, 45 anos de intensa vida literária. Senhoras, senhores: levantai-vos e aplaudi.


Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e Fragmentos de Silêncio.
 

 

Thiago de Mello

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20.10.2005