Zemaria Pinto
Assis Brasil e a poesia brasileira
no século XX
O primeiro espanto que tive com Assis
Brasil deu-se há exatos 20 anos, através do romance Os Que Bebem
Como Cães. Impregnado, então, pelas leituras adolescentes de Kafka e
Dostoiévski, e, principalmente, tomado pelo terror cotidiano imposto
pela ditadura (cotidiano que eu não vivenciava diretamente), aquela
narrativa lenta, angustiante e monocórdia (a cela, o pátio, o grito,
repetidos à exaustão) transformou-se para mim em paradoxal alegria -
a de ter "descoberto" um novo autor. Bobagem. Publicando desde 1953
(Verdes Mares Bravios), Assis Brasil vencera, entre outros, o prêmio
nacional Walmap, de 1965, com Beira Rio Beira Vida, inaugurando o
que ele convencionou chamar de Tetralogia Piauiense. Os Que Bebem
Como Cães começava, em verdade, uma nova tetralogia,
convenientemente chamada de Ciclo do Terror, completada com O
Aprendizado da Morte (1976), Deus O Sol Shakespeare (1978) e Os
Crocodilos (1980), todos devidamente consumidos, mas já sem nenhum
espanto.
Assis Brasil, é preciso ainda que se
diga, é uma figura rara de escritor profissional. Nascido em
Parnaíba, no Piauí, em 1932, crítico literário militante, do Jornal
do Brasil (1956/61) à Tribuna da Imprensa (atualmente), tem dezenas
de livros publicados, estudos que variam de Joyce a Graciliano
Ramos, de Faulkner a Drummond, de Guimarães Rosa a João Cabral,
romances históricos, novelas, contos, narrativas infanto-juvenis,
além de livros didáticos e paradidáticos.
O segundo espanto com Assis Brasil
ocorreu-me ao tomar conhecimento de seu hiperprojeto, que consiste
em produzir antologias da poesia brasileira deste século,
organizadas por Estados. O primeiro volume, A Poesia Maranhense No
Século XX, saiu, em verdade, em 1994. Em 95, saiu o volume dedicado
à poesia do Piauí. Este ano, saiu A Poesia Cearense No Século XX. Os
livros, de excelente acabamento, são editados pela Imago, do Rio de
Janeiro. E quem paga a conta?, deve estar se perguntando o leitor
incrédulo. Eu diria que o próprio autor, se não, vejamos: na
introdução ao primeiro volume publicado, Assis Brasil lembra da
importância que a "economia invisível", o comércio clandestino e
marginal dos camelôs e afins, tem na manutenção do que resta de
equilíbrio social neste país, equilíbrio que impede ou adia a
explosão das massas, aviltadas por uma abusiva concentração de renda
e sem nenhuma perspectiva de participação no sistema neoliberal de
produção de riquezas, que ignora, por definição, a existência dessas
massas (abra o jornal, leitor, para saber do que estou falando:
sem-terra, sem-teto, sem-previdência, desempregado, esse é o perfil
da massa). Partindo do princípio de que há, então, uma "literatura
invisível", formada fora do eixo Rio/São Paulo, o autor partiu para
o levantamento da produção poética em cada Estado, contando com
inúmeros contatos, amigos de tantos anos, considerando que "apesar
da tecnologia gráfica avançada, tudo se faz precariamente, em meio a
províncias (o Brasil inteiro) que se conservam isoladas, com feudos
culturais, e os seus escritores, quase envergonhadamente, produzem
uma ‘literatura invisível’, com o mesmo sentimento de sobrevivência
(e de perseguição) e de tábua de salvação dos camelôs brasileiros".
Impossível é não lembrar de Octavio
Paz, ele que não deveria ser nunca esquecido, ao perguntar em um de
seus instigantes ensaios: quantos e quem são os que lêem livros de
poemas? E a resposta, ele mesmo a dá: uma imensa minoria! É essa
minoria que mantém viva a poesia como uma forma de manter viva a
língua e a arte. Uma Temporada No Inferno, de Rimbaud, teve uma
tiragem inicial de 500 exemplares, pagos pelo próprio autor. As
Flores do Mal, de Baudelaire, não teve mais que 1.100 exemplares na
primeira edição. Os quatro ou cinco primeiros livros de Manuel
Bandeira não tiveram mais que 500 exemplares por edição. São números
que mostram que a camelotagem da poesia é mais antiga que a poesia
amazonense. Não basta, entretanto, publicar: há que ir à luta,
brigar por espaço na mídia, impor respeito. E aí muita gente se
perde, ou por não ter paciência, ou porque prefere esperar que o
"descobrimento" aconteça como num conto de fadas.
Para esta coleção, que poderia se
chamar A Poesia Brasileira No Século XX, Assis Brasil aposta na
parceria com o Estado, mas não espera a garantia do pagamento para
começar a trabalhar. Pelo contrário, leva o projeto pronto à
apreciação dos possíveis patrocinadores e fica esperando só pelo
sinal verde para que a editora Imago possa por as impressoras para
funcionar. Assim é que, há um ano, ele espera pelo "sim" das
autoridades amazonenses para mandar imprimir a nossa Poesia
Amazonense no Século XX. Explico: o projeto já deu entrada por duas
vezes na Secretaria de Comunicação. Uma com o então Secretário
Robério Braga, outra, mais recente, com o atual, Ronaldo Tiradentes.
Ambos manifestaram imensa simpatia pelo projeto apresentado, mas
alegaram falta de "verba orçamentária". Pelo que o Assis me conta, o
projeto agora está na Superintendência Cultural, onde deveria estar
desde o início, com o nosso amigo Joaquim Marinho. Oxalá, agora
saia, para o bem de todos e a felicidade geral da nação poética baré.
Estão prontas também, para publicação, as antologias de Goiás e
Pernambuco. Mas lá não é muito diferente daqui...
Agora deixa eu falar um pouquinho dos
três livros publicados. Em primeiro lugar, do prazer de reencontrar
velhos conhecidos, como Maranhão Sobrinho, Taumaturgo Vaz, Jonas da
Silva e Quintino Cunha, que viveram boa parte de suas vidas no
Amazonas e por isso poderiam integrar "nossa" Antologia. Depois é
preciso dizer de como é bom rever nomes nacionalmente consagrados,
como Sousândrade, Bandeira Tribuzzi, Ferreira Gullar, Nauro Machado,
Mário Faustino, Torquato Neto, José Alcides Pinto e Francisco
Carvalho, ao lado de nomes emergentes como Luís Augusto Cassas,
Rubervan du Nascimento, Pedro Lyra, Adriano Espínola, Luciano e
Virgílio Maia, estes, meus companheiros de geração, ou quase. Outros
jovens poetas se expõem, expostos pela vitrine mágica das
antologias. Por fim, constato, com espanto renovado, quantos
poetas-camelôs ficaram pelo meio do caminho e agora são resgatados
pelo trabalho, belíssimo trabalho, de Assis Brasil. Não fora por
tudo o que se disse antes, só isso já teria valido a pena.
Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e
Fragmentos de Silêncio.
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