Zemaria Pinto
Literatura Amazonense de Invenção
Foi Gaspar de Carvajal o primeiro
grande ficcionista do Amazonas. Seu relato fabuloso acerca das
índias guerreiras habitantes das margens do Nhamundá inaugurou, em
pleno século XVI, a literatura ficcional, e, por extensão, a
Literatura Amazonense. Talvez esse acontecimento fantástico tenha
inibido nossos prosadores, a tal ponto que a prosa amazonense só
volta a ter expressão mais de quatro séculos após, com os romances
de Paulo Jacob (Chuva Branca), Márcio Souza (Galvez, o Imperador do
Acre) e Milton Hatoum (Relato de Um Certo Oriente).
É curioso observar, entretanto, o desenvolvimento da poesia. O poema
épico A Muhuraida, de Henrique João Wilkens, escrito no último
quartel do século XVIII, é o marco inicial da poesia amazonense.
Durante muito tempo acreditou-se que fora escrito em língua
aborígine. Fantasiava-se que os originais haviam se perdido, ficando
apenas a "tradução" para o idioma civilizado. Ficções. Escrito em
português escorreito, A Muhuraida canta o triunfo da fé católica
sobre os gentios habitantes das margens do Madeira. Do ponto de
vista do colonizador, um rito de passagem. De nossa perspectiva
politicamente correta, uma epopéia do genocídio.
Mas nem o itinerante espanhol Carvajal, nem o português,
estabelecido em Barcelos, Wilkens mereceram a devida atenção da
crítica tanto quanto Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, cuja obra
poética só viria a lume, depois de inúmeras peripécias, em meados do
século XIX, quarenta anos após sua morte. Nascido em Barcelos, nossa
primeira capital, Tenreiro Aranha é figurinha carimbada em qualquer
antologia séria da poesia brasileira do período colonial,
especialmente pelos sonetos "A Maria Bárbara" e "A Um Passarinho".
Sua poesia é simples, com elementos árcades e barrocos, mas
prenunciadora do Romantismo. É o primeiro artista autenticamente
amazonense.
O século XX trouxe a riqueza efêmera da borracha e também uma grande
leva de poetas nordestinos. Jornalistas, médicos, advogados,
aventureiros, que, tal como a mão-de-obra não especializada, que
acabava escravizada em algum seringal distante, vieram atraídos pela
ilusão do látex e aqui fincaram raízes. Entre tantos, podemos citar
como mais expressivos Jonas da Silva, piauiense, e Maranhão
Sobrinho, cujo nome denuncia a origem geográfica. E veio o
modernismo, com todas as suas vertentes, as grandes guerras, a
grande depressão, a guerra fria, Hiroxima e Nagasaki. O mundo, e o
Amazonas no seu bojo, pareciam prescindir da poesia. Foi então que
aconteceu.
O poeta Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, no baixo Amazonas,
inaugura a segunda metade do século com Silêncio e Palavra,
instituindo uma nova ordem na literatura amazonense: não nascer aqui
passa a ser mero acidente. O que antes era literatura "no Amazonas"
passa a ser "do Amazonas". Toda a obra de Thiago e toda a literatura
que aqui se produziu ao longo destes últimos 45 anos está
intrinsecamente ligada à terra, mesmo quando universal - ou é
universal por isso mesmo.
Quando o Clube da Madrugada surgiu, na antemanhã de um dia de
novembro de 1954, deitou mais sementes dessa literatura que ainda
vem se construindo, se consolidando. O tempo certamente se
encarregará de inscrever nomes que serão lembrados no futuro, mas
não há como ignorar o trabalho já reconhecido de Jorge Tufic
(Varanda de Pássaros), Elson Farias (Ciclo das Águas) e Luiz
Bacellar (Frauta de Barro). Da geração imediatamente posterior, hoje
em torno dos 50 anos de idade, destacam-se os também poetas Aldisio
Filgueiras (Malária e Outras Canções Malignas) e Anibal Beça (Suíte
Para os Habitantes da Noite).
É inegável a vocação amazonense para a poesia. Isso não nos faz
diferentes, é claro, mas, com certeza, nos faz melhores,
individualmente. Porque, se a poesia não muda a ordem mundial, não
provoca revoluções, nem cataclismos, certamente ela nos torna,
autores e leitores, mais sensíveis, mais humanos, mais aptos a
compreender este mundo em que, por força das circunstâncias,
coabitamos.
Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma e
Fragmentos de Silêncio.
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