Zemaria Pinto
Frontões, de Hemetério Cabrinha,
um marco de passagem
No quase-vácuo que se forma na
literatura amazonense da primeira metade deste século, três poetas
se destacam do marasmo geral, trazendo consigo a marca da migração
que caracterizara a economia destroçada do ciclo da borracha: o
maranhense Maranhão Sobrinho (1879-1915), o piauiense Jonas da Silva
(1880-1947), e o cearense Hemetério Cabrinha (1892-1959). Os três
escolheram viver, produzir e morrer em Manaus. Os três deixaram
marcas profundas numa poesia que só viria encontrar sua verdadeira
identidade a partir da década de 50, com a movimentação instituída
pelo Clube da Madrugada, que sintonizaria a província ao que de
melhor se produzia no resto do país.
A EDUA, Editora da Universidade do
Amazonas, marca mais um gol de placa ao dar a lume a segunda edição
de Frontões, o último livro de Hemetério Cabrinha, publicado em
1958. Frontões é um marco de passagem na poesia amazonense, e não
por acaso Cabrinha dedica-o “aos ilustres membros do Clube da
Madrugada, na figura intelectualmente destacada de Farias de
Carvalho.” O tempo confirmaria na obra do então jovem poeta
homenageado (Pássaro de Cinza e Cartilha do Bem Amar com Lições do
Bem Sofrer) uma afinidade, um quase parentesco inegável com
Cabrinha.
Carpinteiro de ofício, na poesia
Cabrinha vai mais além, construindo “frontões que o coração entre
sonhos embuça”, como ele escreve em “Proêmio”, que abre o volume,
fazendo um paralelo entre sua poesia e os adornos arquitetônicos que
dão título ao livro: “Se meus versos não têm o esplendor de
obra-prima, / A pureza da forma e a nobreza da rima... / Se lhes
falta fulgor; / Há neles, entretanto, agudos sentimentos /
Suavizando o clamor dos grandes sofrimentos / Urdidos pela dor.”
Parnasiano na forma (“Oiro na ganga
bruta em rústica batéia”), a profissão de fé é de um nômade
pós-romântico, dilacerado pela incompreensão e injustiça humanas,
como podemos observar nestes fragmentos de “Resignação”: “O mundo me
foi sempre avesso, duro, escasso... / Existem para mim só aflições
extremas... / Em cada anseio meu há uma chaga aberta...” Não seria
nenhuma ousadia afirmar que além de Olavo Bilac - a quem parodia com
reverência, melhor dizer, intertextualiza, em “Tortura da Glória” e
“Lendo Bilac” -, o português Antero de Quental (“Só males são reais.
Só dor existe.”) freqüentava também a cabeceira de Hemetério
Caminha. Vem de Quental, talvez, seu gosto pelos poemas de idéias,
reflexões pessoais que transgridem o conceito de que a imagem é o
fundamento da poesia. Mas se a Quental atormentava e seduzia a
dúvida transcendente, Cabrinha sofria com a crença exacerbada, pois
boa parte dos poemas de Frontões deixa clara sua fé inabalável na
doutrina espírita, como podemos perceber em “Convicção”: “Tenho a
certeza de já ter vivido / Através de outros mundos, outras eras.” E
apesar de acreditar que “Entretanto, através do próprio lodo / Todo
o universo se transforma, todo, / E a própria Eternidade se renova”,
sua vida é um calvário só, onde o sofrimento não tem nome, não é
detalhado, mas existe acima de tudo, como em “Angústia”: “Quanto
tenho sofrido ultimamente! / Como este mundo me tem sido avesso!”
Outro autor da predileção de Cabrinha
é Augusto dos Anjos. Ainda que distante de alcançar o estro do poeta
paraibano, Cabrinha “apropria-se” de seu vocabulário antilírico, em
versos inteiros, como em “Monera, larva, lama, lesma, verme”, “Num
óvulo misérrimo e abjeto”, “Da podridão dos úteros inchados / dos
sangrentos refolhos das placentas” ou em expressões como
“embriogenia das moneras” ou “expansão genésica dos sexos”.
Esta aproximação superficial com
Augusto dos Anjos, bem como a possível proximidade de Antero de
Quental, deve levar-nos a refletir sobre o caráter contraditório da
“dor” em Cabrinha. É claro que sua poesia não melhora nem piora em
função de sua “sinceridade”, uma herança romântica que não acabou
com o Romantismo, e, muito pelo contrário, é ainda hoje uma prática
comum, a despeito do caráter intrinsecamente mercantilista da arte.
Em que consiste, afinal, essa contradição em Cabrinha?
O poema “Por Enquanto, Não” é
exemplar: “Disseram que eu morrera. Ainda é tão cedo / Para deixar
em paz o velho mundo, / Onde, por entre espinhos me enveredo, / Como
um simples rafeiro vagabundo. // Bem quisera eu fugir deste degredo!
/ Deste terrível lupanar imundo, / Onde, hoje, a vida é simplesmente
o enredo / De um romance de fel e dor fecundo. // Para que viver
mais, quem sobre os ombros, / A cruz da vida tem pesado tanto, / E
trá-la a tropeçar por entre escombros? // Disseram que eu morrera.
No entretanto, / Como um fantasma vil causando assombros / Ainda
arrasto o cadáver por enquanto.” Ora, em que acreditar, no ceticismo
quase cínico deste poema ou em toda a derramada oratória espírita?
Mais, ainda, no poema “Meu Aniversário”, o poeta lamenta “Mais um
ano de dor, mais uma folha lida / No romance real e vil de minha
vida.” A isso se contrapõe uma lírica amorosa romântica que ora se
realiza com toques eróticos (“Idílio” e “Cuidado”, por exemplo) ora
denota frustração, mas sem nenhuma tendência suicida, como no belo
“Encontro”, que narra um des/encontro na idade madura, e que, pelo
seu equilíbrio, merece ser destacado entre composições que beiram a
pieguice.
Parnasiano, místico, romântico,
epígono de Bilac, Quental e Augusto dos Anjos, embora isso tudo seja
contraditório, Frontões mostra-nos um autor que tem pressa de viver
e de mostrar sua produção. Assim, completa sua obra com poemas de
cunho social-romântico (“Preto-Velho” e “Itatiaia”), poemas de
inspiração parnaso-regionalista (“O Amazonas”, “Canção do Amazônida”,
“Boiúna” e “A Pororoca”) e os longos poemas narrativos, já
publicados anteriormente, “Satan”, “Caim” e “Cristo do Corcovado”.
Como curiosidade, a duas fábulas interessantes, “A Aranha” e “O
Grilo”, vêm juntar-se ao que hoje classificaríamos como poesia de
auto-ajuda: “Canção da Dor”, “A Caridade”, “Conselho”, “Filosofando”
e o execrável “Parêmias”. Bobagens, filosofices.
Seria inútil, até porque não é isso o
que se espera da poesia, tentar entender a personalidade de Cabrinha
a partir dos poemas de Frontões. Mas sua autocomiseração alia-se a
uma consciente marginalização, uma auto-exclusão do mundo que o
cerca, desde a dedicatória, no fundo bem-humorada: “Aos que me
repudiam; aos que me odeiam; aos meus inimigos, esses que me
ensinaram a perdoar e esquecer ofensas: esta página incolor.” Não é
muito provável que Cabrinha conhecesse aquele samba de Noel, gravado
em 1933 por Mário Reis: “O mundo me condena / E ninguém tem pena /
Falando sempre mal do meu nome (...)” A aura marginal do poeta de
Vila Isabel decorria do enfrentamento ao seu meio social. E quanto a
Cabrinha, qual a motivação da sua arenga com o mundo? Não seria isso
apenas um sintoma de seu romantismo?
E aqui me refiro ao romantismo
enquanto vertigem, e a esta enquanto sensação de ter o mundo girando
à nossa volta, ou, inversamente, de que giramos descontroladamente
no centro do mundo. A vertigem é a recusa às regras, aos modelos, às
normas - é o grito pela liberdade de criação. A vertigem não
comporta a arte vestida de linho branco sob a brisa de uma tarde
azul de domingo. Não, a vertigem é o caos, a anarquia, a aventura, o
desequilíbrio, a lama, a podridão, a escuridão. A vertigem é o não.
Mago, profeta, predestinado, o gênio
romântico sob a vertigem tem êxtases místicos, que lhe descortinam o
supra-real e o infinito. A beleza torna-se relativa e seus
ingredientes passam a ser antagônicos. As inquietações populares,
ele as busca enquanto elas ainda adormecem no seio do povo. O
romântico é um revolucionário. Sua pátria é o mundo. E ele parte em
busca de outros mundos, procurando a essência, o primitivo, o
primordial.
Mas esses dois parágrafos aí em cima
coadunam-se mais com o gênio romântico de um Antonin Artaud ou de um
Glauber Rocha do que com o nosso estimado Hemetério Cabrinha, que
não conseguiu romper a carapaça parnasiana, e longe de ser moderno
não foi autenticamente romântico. Para usar uma imagem
arquitetônica, tão ao seu gosto, Cabrinha foi ponte, foi passagem.
Sua importância histórica é bem maior que a discussão sobre a
in/sinceridade de seu autodilaceramento. Seus bons poemas ficarão
como candeias na noite tenebrosa de uma literatura que procura se
afirmar para além do convencional, além do óbvio. Cabrinha retornou
ao nosso convívio, e é ele mesmo. E isso é muito bom.
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Hemetério Cabrinha
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