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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2005 00:56
Subject:
Indaga sobre o poema
Feitosa,
as pessoas são iguais em toda a parte. É o que as imagens
mostram, dispensáveis as palavras. Mas, Poeta, por que você
escreveu aqueles versos, em "Uma canção distante"?
Arriscaria dizer-nos?
Grande
abraço,
LPSantana
Resposta:
Meu
caro LPS,
Realmente
de assombrar o nascimento de Uma Canção Distante: fogo,
muito antes da fumaça. A gente nunca sabe. Ou sabe?
Conto-lhe
que à primeira vez que vi o quadro de Andreas Achenbach, bem uns
cinco depois de ter escrito Uma Canção Distante, disse aos
meus botões:
—
Já vi!
Mas,
de verdade, jamais vira aquele quadro. A ligação com o Mar,
brutalmente mar, do poema, veio-me imediata. E agora,
também imediato, chega-nos o maremoto.
Luiz,
nunca vi um maremoto. Ou já vi? Não sei por que, desconfio que
sim. Anote aí, por favor: Já vi. Todos nós vimo-lo. E
escapamos!
Sabe,
Luiz, a gente traz consigo a tal memória ancestral. Você, em
Minas, muito longe do mar, sei que sempre sonhou com o mar.
Claro que sempre "viu" o mar, tudo por conta daquilo
que, indelével, nos tem sido passado de terror e sofrimento,
milênios e séculos. Todos nós, ainda que da cidade, temos
medo de cobras e bichos; sonhamos com eles,
"inimigos", ainda que jamais os tenhamos enfrentado.
Sonha-se muito mais com a tormenta (feras, águas e abismos) do
que com carros, trens e aviões, cuja memória, tão recente, ainda
não deu tempo de "envelhecer" no quengo de cada um de
nós.
Veja,
poeta, raramente sonhamos com o fogo. Só mui recentemente o
homem descobriu o fogo. Antes eram as feras, as águas bruscas
(a seca também) e os abismos.
Parece
que nos poetas essa tal memória ancestral, meio a la
Platão, está mais à flor. Acho que é isso. Deve ser.
Diga-me
se lhe mandei um "papé", Do 4º Panfleto. Se
não, amanhã mesmo mando um. Mande uma lista de seus amigos
para mandar para eles também. Com o grande abraço do Soares
Feitosa.
Resposta
nº 2:
Prezado
LPS,
Não
fiquei satisfeito com a resposta que acabo de lhe mandar.
Desconfio que me perguntou sobre o poema, «os comos e os
porquês». Ah,
meu caro Luiz, se assim é, assim foi, conto-lhe, por seu favor,
dois pontos:
Cidade
da Bahia, ano de 1996. Morava eu no Ondina Apart Hotel, uma das
mais belas vistas de Salvador, do Brasil, do mundo: desde que do
lado do mar, naquele hotel, que a banda da rua é de cortinas
fechadas, de sol e barulho. O Ondina não é em frente ao mar,
como normalmente entendemos prédios de frente para o mar, com
uma avenida entre o prédio e o mar. Não, meu caro Luiz, aquele
hotel põe-se à beira do mar, afrontoso, sem rua alguma. Desceu
uns batentes, já dentro do mar, molhando os pés — pronto, é
o mar!
O
pior é que o prédio, como se fossem as tenazes do caranguejo,
faz um côncavo para dentro do mar, cercando-o, ensacando-o,
engolfando-o, açambarcando-o. E o mar, como quem não refuga um
insulto, vem de lá, com a moléstia dos cachorros doidos!
Luiz,
eu morava no 10º andar, no 1003 ou seria no 1004, do lado do
mar, no centro do côncavo da mão. Lá embaixo, ele, o mar,
estalando, rugindo, estrugindo, batendo noite e dia, até
acostumar, que nunca acostuma, que a gente sabe que embaixo é
escuro.
Estava
sozinho em casa. Deixe-me conferir a data neste computador:
2.8.1996, sexta-feira, de tardinha. Num dos quartos onde
instalara minha "oficina", fazia eu um trabalho da
repartição ou montava uns panfletos como este, que sempre
gostei de fazê-los, mas isto, exatamente o que, por favor não
insista: faz muito tempo, estou velho.
Era-me
o costume, ainda é, recostar-me à janela. Sim, uma
irrefreável paixão por janelas. No intervalo entre um cálice
e outro, que nem os bebo tantos, um telefonema, coisa assim, os
olhos pregados lá embaixo, recapitulando a briga de sempre: eu
e o mar. Desculpe-me, não era exatamente este seu amigo quem
brigava contra o mar. Era um par de rochedos bem embaixo de
minha janela.
Entre
um rochedo e outro, eu dizia, mas nunca disse a ninguém, que
ali, naquele vão por entre as pedras, era a Garagem do Mar. É
que havia dias, ele, o mar, igual a esses amantes violentos que
sabem, raros, encherem-se de ternuras, deixava aquela passagem,
entre um rochedo e outro – a garagem – bem limpinha, a areia
espelhando de nova, brilhante, vazando águas em pequenos
filetes, e ele, o mar, lá longe, tomando-se de calmas, como se
não fosse o senhor dos ódios, mas só do amor. Se assim fosse,
de calmas a manhã, mar e rochedos, pegava os carros, alguns de
osso, outros de boi, e também os de verdade, o chevrolet de
então e o primeiro fusquinha; pegava-os e descia, e os
estacionava na garagem do mar. Sem despregar da janela, é
claro.
Contudo,
meu caro Luís, tanta calma e ócio eram raros, porque, no
geral, ele, o dono da garagem, mar, passava noite e dia
querendo, por tudo no mundo, espatifar com aqueles rochedos.
Implicava com eles, o mar. Nem me pergunte por quê.
Vi,
da janela: ele, o mar, de pura fúria, tentava estragar aquela
passagem, na véspera tão chã, de entre os rochedos. Sim,
agora em pura ruína, só buracos, pedregulhos, abismos e
espumas.
Estalantes
– todos os chicotes do mundo – ele, o dono da garagem, mar,
brandia-os no lombo dos rochedos. Pegava-os,
rochedos, primeiro um, depois o outro, em seguida a ambos, e
metia-lhes a tranca!
—
Tomem, seus rochedos de uma figa! Eu sou o Mar-Oceano!
Sim,
Luiz, ele mesmo, desde as Colunas de Hércules, donde também
viemos, o Atlântico, este colosso. Eu, lá em cima. Súbito,
reparei na mão que estava junto aos lábios. Tremia. Tremiam.
Tremíamos.
Ainda
que fosse cabal o estrupício, havia instantes de calma,
insuficientes porém para um respiro. É que ele, o mar,
afastava-se ao leito do mar como um carneiro se afasta em briga,
e, aríete de ferro e brita, com idêntico trombetear da brita
no traço do cimento e da areia, tomava carreira, mar, contra a
cidade, contra o mundo. Atacaria ele o prédio? Pô-lo-ia a
pique? Então, plaft! Quebrava-se. Esmigalhava-se.
Espumas e berros.
Recompunha-se
bem rápido, mar, tomando velocidade outra vez, a se arremessar
muito mais cruel.
Luiz,
tal como meus amigos lá de baixo, rochedos, atravessava eu uma
situação nada aprazível. A empresa da família, açougues no
Recife, quebrada. Problemas no trabalho, agravados com a
preocupação sobre os filhos. Dias havia que me restavam
tão-só aqueles dois amigos, os rochedos lá debaixo e sua
areia bem plana, architectura divina, quando o mar
aceitava deixá-la plana e limpa, num leve rampado, perfeito
para subir e descer com os carros de boi e o trem de ferro, mas
o normal, já disse, a fúria do mar, a devastação a cada
açoite.
Sim,
indaguei-me, naquela tarde de violência máxima, como haveria
de ficar "minha garagem" que não era do mar coisa
nenhuma, era minha, retifique aí por favor: minha!
Reparei
atento, lá embaixo, no fragor da contenda. Sob as espumas e
gritarias do mar, vi que havia água. Uma água turva, mas
aparentemente calma, no lugar das areias da rampa (garagem) que
o mar escavacava ao osso. Tudo destruído. Ainda assim,
recomposto pelas águas. Os rochedos resistiam, cada vez mais
agudos. Reparei por entre as espumas. Vi que havia um pequeno
espaço para um bracejo, questão apenas de desviar. Não faria
mal algum ralar o bucho e os joelhos. Só isto: a perícia de
desviar. (Navegar é possível). Saltei.
Fechei
a janela. Bebi alguma coisa, um café, que sou viciado em café;
água ou teria sido uma lapada de quentes. Sei não, Luiz, o que
bebi, mas bebi. O computador aceso. Pedi-me que escrevesse. Dias
depois, escutei os gritos da Musa, em Salomão:
—
A onda é alta, Coronel!
Desconfio
que todo o bracejo de mar, de Salomão, fez-se naquela
janela, naquela tarde ou noutras muitas em que briguei com o
mar, em meu nome e em nome dos nossos ancestrais, desde o mar e
antes do mar.
Confirmo,
meu caro Luiz: a onda é alta. A vida é alta. Tudo o que você
vê, seus pais, desde os tempos, já viram e lho "passaram". Está no seu quengo impregnado, uma leitura
de decifrações – assim a Arte.
Nada
há de novo sobre o mar.
Não
creio na tabula rasa. Rasa coisa nenhuma! É apenas uma
questão de leituras. Arte!
O abraço do Soares
Feitosa
Resposta
nº 3
Amigo
Luiz, só agora, depois do segundo e-mail, dou-me conta do
título do poema: Uma Canção Distante. Por que,
meu caro Luiz, houvera de ser distante se ali tão próximos o
mar, os rochedos e eu lá em cima sob aflições?
Vem-me
esta outra pergunta de fim de noite: em comum, entre aqueles que
presenciaram maremotos (desde a descida das árvores), o
salmista (Sl 46, que exatidão de linguagem!), o pintor alemão,
a canção distante deste seu criado, e os acontecimentos
de 26.12.2004?
Comum
a todos: sobreviveram. Contam à posteridade o que viram e o que
seus pais têm visto há milênios. Puseram mãos sobre mãos,
recapitulando uma mesma e inesgotável história. Desde! Aliás,
meu caro Luiz, já falei isto no Primeiro Panfleto (Estudos & Catálogos –
Mãos): Poeta Virgílio, creia-me, o catálogo das mãos
é inesgotável porque as mãos dos novos hão de garantir as
nossas mãos. Por sobre, sempre por sobre, que assim tem sido.
Veja,
poeta Luiz, em Uma Canção Distante pede-se uma paisagem
verde, quando o normal é pedi-la azul, que nunca vi tantos
poetas gostarem de azul, como se o mundo fosse só-azul, que
não é. Por que o verde, ali?
Luiz,
o verde do poema implica milhares de anos de secas, aqui, sertões
do Ceará, rio Macacos, desde os índios. Implica também a
aspereza do tempo, de nossa herança milenar, Sael, terras d’África.
Poeta, nós "estamos" lá! Este seu amigo é branco
como um queijo de coalho, mas o cabelo é "ruim", um
pé n’África, outro na senzala. Nalgumas vezes, as mãos sob
o jugo; noutras, negreiro, de chicote em punho, no tráfico,
estalando-o. Sobreviemos, sobrevivemos. Não podemos fugir: de
terror ou júbilo, indiferentes.
Nestas
horas, meu caro poeta, é que detesto o azul, um céu sem
nuvens, azul-azul, de chuva nenhuma. Verde, Luiz, minha janela
há de ser verde, clamam-me os sangues.
E
águas, poeta, onde as águas? Sempre tenho sede, muita sede.
Onde o São Francisco que aqui não chega?!
Creia-me,
tenho que a Arte é fazer repercutir no traço – linguagens
– o trom dos deuses. Pelo bem e pelo mal, tanto faz. Terror e
júbilo, assim mesmo, deuses. A história dos sobreviventes, que
os mortos não têm história para contar. Ou têm? Contemo-la
por eles, a história deles, a nossa história – é a nossa
vez.
A
Arte há de manter navegável um córrego entre o atual e o
ancestre, seja de júbilo, seja de trágico – os deuses, de
dentro.
Linguagens?
Sim, meu caro poeta! Poesia, escultura, oratória, romance e
narrativa; música e pintura e dentre todas, o corpo. Sobretudo,
o corpo. Repare no Carnaval, a propósito desta sábado de
carnaval.
—
Já vi! — você bem que pode dizer, e deve, apenas para ficar em
coisa mais recente, livros, a partir da invenção da escrita, Êxodo,
23, 16, a Festa das Tendas, sete dias enfiados de festas:
«O
povo ficava nas cabanas durante sete dias de festa. Na primeira
noite da festa a área do templo era profusamente iluminada por
lâmpadas e tochas; danças rituais eram realizadas à esta luz.
[...] Chifres e trombetas soavam nos momentos importantes da
festa». Confira em John L. Mackenzie, Dicionário Bíblico, Paulus,
pág. 921.
Repare
agora na exatidão científica do salmo 46: qual o cientista
que, com toda a modernidade, descreveria melhor um maremoto?
[...]
E por isto não tememos se a terra vacila,/ se as montanhas
se abalam no seio do mar;/se as águas do mar estrondam e
fervem,/ e com sua fúria estremecem os montes.[...]
Instrumentos?
Para quê?! Basta o gesto, basta o silêncio (selá, a
palavra hebraica que traduz a pausa do texto, neste salmo, o 46,
repleto de selás). [Seria
tanto mais verdadeiro o texto quanto mais selás ele contenha?]
Desconfio!
Nossas
mãos, poeta, são muito mais velhas do que nós. O falar das
mãos. E seus silêncios. Fazer. O homo-faber.
Finalmente,
poeta, mas isto seria matéria de um outro panfleto, o modo
advérbio do poema: a negação do tempo, vide
Salomão, Segundo Movimento, Os Cantares de Pulso: Desliguei todos os
relógios,/ entortei-lhes os ponteiros,/ lancei-os no mar.
Com
este abraço nada silencioso. Soares Feitosa.
(Fortaleza,
5.2.2005, noite muito alta.)