Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Zemaria Pinto


 

Maranhão Sobrinho, o místico de Satã

 

são páginas, talvez, feitas de gritos
(Maranhão Sobrinho)

Ninguém está só ao morrer.
(Antonin Artaud)



I - O calor provinciano
 

A crítica literária costuma olhar o passado com a perspectiva do presente. Autores são "revisados" sempre tendo em vista a sua aproximação com os contemporâneos. Autores que não lograram reconhecimento em vida, tendem a se perder no tempo, a menos que se descubra que o seu esquecimento foi fruto da incompreensão de sua época, por estarem à frente dela. Essa é a lógica da arte. Grandes poetas, sobram cinco ou seis por século. Os cânones vão se afirmando e colocando no esquecimento aqueles que não passam no crivo da permanência.

O que dizer, então, dos poetas provincianos, aqueles que não conseguem se impor nem mesmo entre os seus, que não reconhecem nele senão um a mais na horda dos que se entregam à indolente tarefa de espicaçar as musas? A província não tem história e nem mesmo veleidades de alta cultura. A arte é um subproduto do imediato, do que se consome em todos os lugares. A província não tem pudor por não ter cultura porque sua cultura é a cultura do mundo. De todo mundo.

Mas não use a carapuça ainda, meu caro leitor (assim me expressarei, leitora, mas só por conveniência; afinal, são milênios de patriarcado). A crítica de arte que se deixa levar pelo sentido ideológico, cobrando posições de seus artistas, é uma prática provinciana, seja em Paris, Londres ou São Paulo. Maranhão Sobrinho, o poeta-objeto desta breve análise, ainda hoje é visto como um produto da óbvia indigência das nossas letras na virada no século passado. Maranhão Sobrinho era um bêbado, um pária, um versejador medíocre, a quem a província sempre quis ver pelas costas. Entre seus pares, poetastros a grande maioria, era ridicularizado pelo exotismo de apreciar os poetas franceses malditos - que, aliás, já publicavam há 50 anos.

Essa pressão, exercida pela falta de respeito que a província tem aos seus artistas, fez de Maranhão Sobrinho um caso raro na literatura brasileira: um excelente poeta que, em não mais de 3 anos, se abastarda de tal modo que se torna irreconhecível até de si mesmo. Um caso raro de involução, pois o seu trabalho mostra um recuo radical em relação às propostas iniciais. Talvez em busca de reconhecimento, ele abdicou de sua obra, como um Fausto de opereta. Mas era tarde.


II - De Paris para o mundo, incluindo o Brasil
 

Ao final deste ensaio, o caro leitor perguntar-se-á por que não comentei acerca do Romantismo e do Parnasianismo, que, então, terão sido tão citados quanto o Simbolismo; antes que o faça, respondo. Na obra de Maranhão Sobrinho, é o Simbolismo o traço mais marcante, onde as tensões entre linguagem e realização poética atingem momentos de alta ressonância. E todo o resto é literatura, como diria Verlaine.

O Simbolismo enquanto movimento estético é uma tomada de posição no mundo. A sociedade burguesa da segunda metade do século XIX tem seus valores questionados por um grupo de poetas que têm as mesmas aspirações em vários lugares diferentes. Ao positivismo, ao naturalismo e ao materialismo que grassavam à época, eles opunham a valorização do individual e, por conseqüência, do espiritual. Adeptos de Schopenhauer e Nietzche, filósofos que pregavam o voluntarismo, esses artistas queriam passar ao largo das grandes aspirações românticas e, voltando-se para si mesmos, construir uma linguagem nova, que tivesse o mesmo poder abstrato da música: comunicar sugestões. A linguagem escrita seria representada não mais por objetos concretos, mas por símbolos que exprimiriam, de forma sugestiva, o que vai na alma do indivíduo. Desde as Flores do Mal, de Baudelaire, publicado em 1857, a crítica é unânime, ou quase, em apontar a obra de Stéphane Mallarmé como o ponto mais elevado do Simbolismo.

Em O Castelo de Axel, Edmund Wilson identifica duas vertentes principais no Simbolismo francês: a "sério-estética", onde se filiariam Baudelaire, Verlaine e Mallarmé, e a "coloquial-irônica", representada principalmente por Tristan Corbière e Jules Laforgue. No ensaio Antipoesia no Simbolismo, Augusto de Campos assinala que "não tivemos, praticamente, no Brasil, representantes significativos do "coloquial-irônico"(...), que se filiava ao gênero maldito do humor, da poesia-crítica, destinada, por equívoco, a não ser levada muito a sério pelos estetas da poesia-poética". Mais adiante, ele ressalva que a projeção mais radical da vertente "sério-estética", aquela que se formou sob o signo de Mallarmé, também não teve representantes no Brasil - "com exceções de poemas, mais do que de autores, e de versos mais do que de poemas". O que terá restado então do Simbolismo no Brasil, perguntará o leitor, cioso dos nossos patrícios simbolistas. No juízo de Augusto de Campos, nossos simbolistas não passaram de epígonos do satanismo de Baudelaire e da musicalidade – a música antes de todas as coisas - à Verlaine.

Cruz e Souza e Alphonsus de Guimaraens fazem parte daquele seleto grupo a que me referi no primeiro parágrafo deste trabalho. Eles são a matriz e a referência do movimento simbolista no Brasil e seu elo de ligação com o mundo, especialmente o da nossa língua, onde também merecem destaque, sempre tendo em mente o que se escreveu lá em cima, os portugueses Camilo Pessanha e Antônio Nobre.

Mas não se pode deixar de citar um garimpeiro de poetas, Andrade Muricy, que, em 1952, publicou, em três volumes, o Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Foi graças a esse trabalho brilhante, presente em todas as bibliografias que tratam seriamente a literatura brasileira, que muitos poetas, até então no ostracismo, a maioria já morta, aliás, voltaram à vida literária. Cito um caso: Pedro Kilkerry (1885-1917), baiano, que mereceu do já citado Augusto de Campos um livro inteiro de ensaios: Re-Visão de Kilkerry. Cito outro: Maranhão Sobrinho, que mereceu do mesmo bom Augusto, em O Anticrítico, palavras que só um poeta escreveria sobre outro. O título do pequeno texto, um quase-poema, sintetiza tudo: Stefânio Maranhão Mallarmé Sobrinho.


III - O que não se sabe sobre Maranhão Sobrinho
 

José Américo Augusto Olímpio Cavalcanti dos Albuquerques Maranhão Sobrinho, nascido em Barra do Corda, Maranhão, no natal de 1879, escondia por trás do pomposo nome uma personalidade retraída, tímida. Pouco ou quase se sabe dele. Membro fundador da Oficina dos Novos e da Academia Maranhense de Letras, as poucas anotações sobre ele mostram-no como um boêmio inveterado. Alcoólatra, provavelmente. Veio para Manaus, como vinham muitos aventureiros, em busca da fortuna fácil prometida pela borracha. Mas, quando aqui chegou, em 1909, 1910, talvez, já se iniciara o declínio econômico. Sem família, conta-se que morava sozinho num barraco paupérrimo no subúrbio de Cachoeirinha. Imagino o poeta, bêbado, pela madrugada, atravessando a monumental Ponte de Ferro, na 7 de Setembro, ao encontro da solidão. Augusto dos Anjos não teria deixado essa vivência passar em branco. Faleceu, de causa desconhecida, no dia exato em que completaria 36 anos de idade. Os fundadores da Academia Amazonense de Letras, dois anos depois, homenagearam-lhe postumamente como patrono da cadeira número 7.

A partir da leitura destes Papéis Velhos, nenhuma informação é acrescentada, especialmente porque, transitando entre o simbolismo e o parnasianismo, mantinha-se distante de fornecer dados concretos sobre sua vida pessoal. Chama a atenção um poema, "Anjo Morto", a despeito do extremo mau gosto dos últimos versos, em que o poeta refere-se a uma filha morta. No livro Vitórias Régias, esse tema retorna, porém como simples descrição de um acontecimento: "O Enterro". Mas alguns poemas parecem falar pelo próprio poeta, como "A Um Bêbedo": Alguma cousa terrível, vingadora, / no mundo estulto, te persegue, bebe!. A melancolia que domina seus poemas, fingida ou não, parece vir ao encontro dos versos de "Judeu Errante": Onde quer que se grave o meu passo maldito / sinto a terra gemer debaixo dos meus pés...


IV - Entre a veneração à Virgem e o culto a Satã
 

No ensaio Metafísica e Exílio, Ivan Teixeira inicia uma análise acerca da obra de Cruz e Souza afirmando que se deve entendê-lo como um "poeta pós-romântico, e não necessariamente um simbolista, etiqueta que não o caracteriza com amplitude nem com precisão". Esta é, na verdade, a chave para a compreensão de toda a poesia brasileira produzida no período entre os estertores do Romantismo e o advento do Modernismo. Parnasianos e simbolistas, na França, inclusive, trilham caminhos que se bifurcam num ponto e se entrecruzam num outro.

Reis Carvalho, citado por Assis Brasil na antologia A Poesia Maranhense no Século XX, diz que "em Maranhão Sobrinho a idéia é simbólica, o sentimento é romântico e a forma, parnasiana". Numa época em que um bom soneto poderia fazer a fama de um poeta, Maranhão Sobrinho parece passar ao largo das preocupações com rótulos. É um perfeccionista, como todo bom parnasiano, resvalando aqui e ali pelo sentimental, mas sem perder oportunidade de questionar seu estar-no-mundo, a partir de uma individualidade que procura ver mais além, embora limitado pelo dogma. E aqui temos a primeira das duas grandes linhas mestras que parecem conduzir a poesia de Maranhão Sobrinho neste Papéis Velhos: o misticismo, apoiado na fé cristã, mais precisamente, católica.

De um total de 87 poemas, pelo menos 14, todos na forma soneto, podem ser identificados dentro dessa vertente. "Soror Thereza" é o mais reproduzido entre eles, e embora não seja, a rigor, simbolista, trata de um tema caro à escola e a toda uma tradição herdada do barroco: o amor humano submisso ao amor divino, envolto num tênue véu de sensualidade, cujos principais expoentes são Santa Thereza D’Ávila, ela mesma, São Juan de la Cruz e Soror Juana Inés de la Cruz, esta mexicana, aqueles espanhóis. Latinos. Mas o poema é meramente descritivo. O poeta limita-se a descrever o que observa. Já no poema "Santa", é o poeta que se dirige à personagem do título, a mesma Thereza, com uma ponta de luxúria: Santa! O teu nome é meu tormento!. "Mãe" é outro poema na mesma linha, mudando o enfoque da sensualidade para a criação: brilha o teu vulto aéreo e sacrossanto / em cada verso que arquiteto e rimo!.

Esta Mãe idealizada é apenas um reflexo da Mulher dos ideais de Maranhão Sobrinho. Ela é a "D. Mística", o "Doce Bem", a "Musa Impoluta", a "Estrela Matutina", a "Cheia de Graça", a "Turris Eburnea". Todos esses títulos são usados para designar a Virgem Maria, o supremo arquétipo da mulher no cristianismo (perdão, no catolicismo: é que àquela época não havia muita diferença). Em "Salomé", do hebraico "Shalem", a perfeita, ele descreve a visão distante que tem da amada: Os teus seios em flor, que o meu beijo respeita, / são dois poços rosais em rosa florescência.... E conclui:

Só tu enches de sol minhas crenças remissas
e lembra o teu candor, que me traz sob algemas,
hóstias, círios, altar, turíbulos e missas!
 

Aos não iniciados, as palavras do último verso enumeram acessórios rituais do catolicismo. Em "O Salmo da Minha Bíblia", essa idéia é reforçada: Ó Mística Visão dos meus Pesares / (...) mil vezes santa e duplamente pura!. Mas é no ótimo "Turris Eburnea", torre de marfim, que Maranhão Sobrinho alcança o máximo da expressão místico-sensual:

Quero, deixando os pélagos e abismos
do mundo, ver-te, lá nos céus, sagrada
na grande Páscoa azul dos Misticismos!

Dos beijos teus tenho saudade e fome...
Minhalma vive, em dor, crucificada
nas cinco luas cheias do teu nome!
 

Ele faz planos para o além-vida, percebendo que a morte se aproxima. Seus sofrimentos físicos e morais cá na terra fazem dele um mártir, a quem a Virgem certamente acolherá. Essa é a única chance de unir-se à amada, de cujos beijos tem saudade e fome. Há uma tensão bem arquitetada entre o depressivo desejo de morte, "deixando os pélagos e abismos do mundo”, e a felicidade do encontro com a amada eterna, na grande Páscoa celebradora da permanente primavera mística, para, voltando os sentidos ao presente, entregar-se ao êxtase da dor, usando a imagem máxima representativa do cristianismo, a crucificação, na adoração das cinco letras do nome amado: MARIA.

Na cançoneta "O Amor", não relacionada como místico, de extração, aliás, claramente romântica, ele já escrevera: O amor é um límpido caminho / que vai direto dar no céu. Percebe-se que Maranhão Sobrinho trabalha o tempo inteiro, então, de caso pensado. A mulher idealizada é a Mãe, mas não a mãe mortal, sim a mãe suprema, o arquétipo da perfeição, da beleza e do amor femininos: Vives em mim num límpido desmaio, / santa nos beijos e nos olhos santa! ("Olhos de Amor"). Além dos já citados, o leitor poderá confirmar o que se diz nos sonetos "Caminho do Céu" e "Celeste". Com exceção de "Soror Tereza", todos esses poemas têm conotação propositadamente simbólica, embora a forma assuma por vezes ares arrebatadoramente parnasianos.

Embora não seja essa a intenção deste trabalho, quero abrir uma pista a futuros estudos sobre a obra de Maranhão Sobrinho, que optem pela vereda psicanalítica. Além dessa imensa Mãe citada, as figuras femininas que percorrem o livro são abstraídas do mesmo veio: "Sarah", representando a expectativa da morte, "Vênus", representando o amor, "Romana", o cristianismo heróico dos primeiros tempos, uma ou outra Sinhá romantiquinha, além de uma inusitada e bela "Fabíola":

As labaredas púrpuras do Vício
queimam-te as formas brancas, crepitando
como as chamas cruéis de um Sacrifício!
 

Perpassadas sempre de sensual calor, todas essas mulheres representam a pureza fria que emana da Mãe. Fabíola, entretanto, é antagônica, é exceção à regra estabelecida. Fabíola, diminutivo de Fábia, derivada do latim faba: fava, leguminosa muito consumida na Roma dos primeiros cristãos. Mas o poeta não a toca, apenas a observa. Isolando-a, o que temos? A Mãe, a mãe suprema, o arquétipo feminino a repetir-se em todas as mulheres. Um caso típico de sublimação edipiana, especialmente se observarmos que a única figura masculina representativa, além de Satã, de quem nos ocuparemos adiante, é a do próprio eu-poeta. Seria essa presença feminina massacrante, em oposição à ausência masculina, uma identificação irrestrita com o sexo oposto?

É de se observar ainda a recorrência de signos relacionados com a busca da pureza: anjos, olhos, lírios, ninhos, passarinhos, noivos, além do mês de maio e seus noivados. Ainda nessa linha, há também um medievalismo edulcorado, como neste terceto de "Romântico":

Desmaiam, cheias de ideais vertigens,
as almas virginais dos trovadores
sob o balcão das suspirosas virgens...
 

Esses signos, estejam entre os poemas francamente simbolistas ou entre aqueles de feitura romântica, antagonizam-se diretamente com a segunda linha mestra da poesia de Maranhão Sobrinho: o satanismo. Diretamente influenciado por Baudelaire e Cruz e Souza, Maranhão Sobrinho constrói uma poética sombria, desvinculada daquela vaporosa influência mística que caracteriza boa parte de sua poesia. Mas é aqui, nestes poucos poemas, que o poeta se realiza em sua plenitude. Pena que em seus outros livros ele não tenha voltado ao tema. Estatuetas (1909), pelos poucos poemas reproduzidos em antologias, e pelo que se abstrai de seu próprio título, seria um livro parnasiano. Vitórias Régias (1911), por outro lado, que eu tenho em mãos graças à generosidade da professora Ivete Ibiapina, que sempre me abre sua biblioteca de raridades, é um livro frouxo, desavergonhadamente romântico. Daí entenda, meu caro leitor, a comparação com Fausto lá na introdução a este trabalho. Poemas de juventude, Papéis Velhos, trazem rebeldia e ousadia marcantes, que seriam sufocadas pela ira e pelo desprezo da província, cujo bom gosto se guia, por absoluta falta de senso crítico, pelas referências consagradas e convenientes, nunca pelas inovações.

Por mera coincidência, são também 14 as composições onde a figura demoníaca ou sua sombra vêm à tona, ainda que apenas na atmosfera do poema. A começar por uma descida ao inferno de Dante, onde, no "O Oitavo Círculo", penam os maus conselheiros. Lá, Virgílio, a Voz do Bem, "mostrou-me Reis e púrpuras de Papas...". Em "Poetas Malditos", ele continua a desfiar suas preferências de leitura, numa alusão direta à coletânea do mesmo nome, organizada por Verlaine, publicada em 1884, que destacava os nomes de Arthur Rimbaud, Tristan Corbière e Stéphane Mallarmé. Maranhão Sobrinho ajunta-lhes uns outros malditos eternos, como Petrônio e Voltaire, para concluir com um verso inusitado, cuja fórmula de repetição seria usada ainda outras vezes: Satã! Satã! Satã! Satã! Satã! Satã!. "Na Espiral do Inferno" revela o "método" do poeta para alcançar mais força ao estro - a introspecção:

Quando em minhalma os plátanos do Horto
dos Sonhos gemem, como um kirie, ao vento, (...)

desço aos infernos do meu desconforto
nas asas triunfais do pensamento...
 

Mas é nos versos de "Satã", dispostos na edição original logo após "Turris Eburnea", numa clara provocação, que o poeta perde a melhor oportunidade de dar "asas triunfais ao pensamento", descrevendo, e apenas isso, com a melhor técnica parnasiana, um inferno ricamente ornado em pedrarias. Lendo os dois poemas na seqüência, o leitor defronta-se com duas visões antagônicas, mostrando o próprio desconforto do poeta em mantê-las vivas dentro de si: 1) o místico por temperamento e simbolista por ideal, de um lado; 2) o satanista por opção e parnasiano por escolha própria, de outro. Maranhão Sobrinho carrega esse impasse e pinta-o com cores fortes no poema "Rubro", vibrando nas sinestesias:

Cor de gritos! Clarim das cores! Serra
do emocional que o espírito retalha! (...)

Cor do Sol-Posto! Cor do Inferno! Cor
dos punhais e das lanças, difundida
por toda a terra, como a Luz e o Amor... (...)

Suprema cor da Morte e cor da Vida (...)
 

"Entre o Céu e a Terra", "Visões" e "Em Holocausto" podem ser lidos como relacionados entre si. No primeiro, "qual haste ao vento", uma visada da humanidade: vejo esqueletos, em visões dançando, / cobertos de oiro, de paixões e vermes.... No segundo, habitantes infernais vêm perturbar-lhe os sonhos: Brancas visões de Haydeas desgrenhadas. No terceiro, ele se entrega num ritual satânico: Serpe! podes morder meus sonhos que alanceias, / e enroscar-te no cedro augusto da minhalma!. Os três poemas são costurados pela linha tênue do sonho. Um recurso, aliás, que não precisaria ser explicitado.

"Rainha do Mal" e "Bacante" também têm traços comuns, além de serem primas distantes daquela Fabíola de que se falou antes. Aqui, a mulher é idealizada de forma negativa, longe daquela acepção maternal, sendo mantida sempre à distância. Simbolizam a própria morte, mas não sem um certo charme, como se observa neste terceto da "Bacante":

Há no teu seio, ó pérola bacante!
da brancura das brancas nebulosas,
toda a aromal luxúria do Levante.
 

"Memphis", a mítica cidade egípcia, é outro poema prenhe daqueles símbolos sombrios: Pairam sobre os destroços sonolentos / de Memphis sombras, de pavor pejadas. "No Horto de Getsemani", o caráter sombrio do poema, de novo descritivo, parece tornar-se mais leve quando constatamos, no verso final, em meio à tristeza pelo desaparecimento de Jesus, que era apenas o "vulto satânico de Judas", errante, arrependido, talvez. Igualmente leve, apenas sugerida, é a sombra a pairar sobre o já citado A Um Bêbedo, quase didática: bebes no vinho, diluída, a morte...

Mas o poema que se destaca entre todos, nestes Papéis Velhos, é o soneto "Interlunar", uma delicada descrição do anoitecer - da vida. O clássico retrato do poeta cosmopolita lembra ao lúcido poeta provinciano a tarde que se vai:

Veloz como um corcel, voando num mito hircânio,
tremente, esvai-se a luz no leve oxigênio
da tarde, que me evoca os olhos de Stefânio
Mallarmé, sob a unção da tristeza e do gênio!
 

Naquele retrato, feito por Manet, guardado nalgum fundo de gaveta, ele reconhecia a si mesmo, por certo, especialmente pela unção de tristeza e incompreensão, os olhos baixos, perscrutando interiores. No poema "Crepusculares", ele havia anotado, melancólico: Sei que mais uma tarde de saudade / leva-me o resto da manhã da vida...


V – A torre da concórdia
 

Há muito o que dizer do universo destes Papéis Velhos, posto que nos ocupamos de não mais que um terço dos poemas nele contidos. Há, por exemplo, um caráter alegremente romântico contrapondo-se a uma morbidez recorrente que precisariam ser melhor explorados. Além disso, passamos ao largo de uma análise dos extratos fônico e semântico. Não posso deixar de observar, contudo, uma vez que representa um ponto de tensão dentro da poética de Maranhão Sobrinho, o já referido desconforto diante da forma. Maranhão Sobrinho é o típico poeta-legionário. Ele não tem pretensões a líder, não quer fundar religiões e despreza a história oficial. Mas nem por isso desiste de criar seu universo pessoal, caracterizando-se, ainda que timidamente, como um poeta-demiurgo. E nestes Papéis Velhos, é fácil identificar a gênese desse universo: o desejo pessoal antagonizando com o desejo poético; o aplauso e o reconhecimento, dentro de suas limitações, versus a visão do futuro da arte poética. O poema "Torre de Sonho" parece evidenciar a chave desse conflito:

É a Torre do Triunfo, é a Torre da Conquista
pelos titãs da Forma à Emoção levantada
sobre alicerces de oiro, é a torre argamassada
com sangue a que só ascende a asa imortal do Artista!
 

A torre encantada é o ideal parnasiano freqüentado pelo poeta dos símbolos, que, mais adiante, afirma que "muitos têm sucumbido da vertigem" por vê-la de perto. Ele, porém, vê chegar o seu momento de ascendê-la, "com um par de asas mais por cima de teus braços". Sem esperança de alcançar a "suprema glória" (ver também esse poema) ainda em vida, o poeta, "alma em dor", vê-se alçado, conduzido até a torre sonhada, após o seu desaparecimento.
Era um recado inútil, a província não lhe daria ouvidos. Aos poucos, ele foi sucumbindo ao peso da própria sombra. E seriam precisos 90 anos para que seu livro fosse reeditado e o poeta se reencontrasse com seu sonho.


Zemaria Pinto é poeta, autor de Corpoenigma (94), Fragmentos de Silêncio (96) e Música Para Surdos, a sair.
 

 

 

 

 

20.10.2005